Ainda não sei ao certo como começar, mas já sei como acaba. Isto eu deixo com vocês, porque não quero estragar minha história. Vocês, hoje em dia, têm esta mania deslavada de terminar uma coisa sem antes sequer terem começado: Deixa-se o sanduíche pela metade, caros atoleimados. São de uma impaciência ímpar e é talvez por isto que tenhamos chegado aonde chegamos, nesta barafunda interminável de contragolpes rocambolescos que fariam autores de novelas se esvaírem em risadas fenomenais, não fossem hoje uma classe extinta e devidamente controlada pelos mandantes da moda, os Cultores que vivem atrás de nossas ideias. Ah, eu e minha mania, estragando tudo. Qualquer dia destes eu lhes conto sobre o que aconteceu aos autores de novelas. O fato é que das manias que eu tenho, certamente a de contar histórias é a minha mais rematada versão. Conto as histórias e me dou o direito de confundir tudo em suas mentes e embaralhar tudo o que digo porque aqui, neste mundo, onde eu vivo (e vocês certamente sabem que mundo é), eu me dou o direito de plasmar as formas do jeito que eu queira, em nome de uma verdade que nem sempre é devidamente verdade ou mentira. Vejam, tudo depende de como se vê a verdade, ela pode ser uma mentira deslavada, mas pode passar por verdade se houver fatos que a liguem a determinados outros que podem ser considerados como verdades absolutas; portanto, aqui onde eu moro, nesta casa, na rua onde eu existo, bem, aqui onde meu corpo se faz matéria e eu posso respirar o mesmo ar que vocês respiram, eu dou as cartas.
Tudo o que eu digo aqui é verdade, sem sombra de dúvida. Estes armários, estas cortinas sempre verdes, sempre sujas de moscas, este vento que entra fedido pela janelazinha do fundo de meu quintal onde soçobra uma figueira brava, estas gaiolas vazias onde antes cantavam pássaros de múltiplas cores...tudo aqui sem sombra de dúvida é verdade. Também é absolutamente certo que eu, em minha toalete, depois que sai meu marido com sua barriga que segundo ele tem a “marca do sucesso” e dá partida no carro que engasga como ele, em sua volição desenfreada e sua esperança ridícula, eu em minha toalete matinal já maquino minhas saídas pelas ruas amesquinhadas deste subúrbio onde pessoas cinzentas passeiam com cachorros pulguentos que me olham desconfiados.
Eu aprendi a sorri maquinalmente. Faço as compras no mesmo mercadinho de sempre, compro pão, gilete e frutas secas, velas para a falta de luz das sextas-feiras, suco de manga e ameixas gordas que eu como sozinha no sótão da casa que tem tábuas soltas e tem um vento encanado que meu marido imprestável nunca repara. Pois este fluxo de congelação sobe entre minhas pernas e eu chupo minhas ameixas amarelas e gordas sozinha, ouvindo o incansável trabalho dos ratos que se enraizaram em cantos escuros do sótão. Ah, como eu mordo as ameixas suculentas, imaginando a carne tenra que um dia tive nos lábios e que secou na terra, crestou na fonte, abandonou-me as cascas de uma coisa chamada amor que nunca houve, nunca se consolidou.... Apenas se transformou em papadas, em cheiro de suor e cervejas de baixo calão.
Eu digo, tudo isto cheira a verdade. Verdade que, em absoluto, vocês não conhecem ou fingem não conhecer. Vivem aí, espraiados em cadeiras, emitindo mecânicos barulhos que teimam em esconder de companheiras e companheiros ao longo da vida melancólica que vivem, mergulhados em absoluta placidez e monotonia. Eu mordo as ameixas gordas, relembrando as tenras carnes em que meus dentes antes mergulharam em atônitas mordidas ensombrecidas, em suaves revoluteios. Não! Nem tudo deve ser dito, tem de haver um toldamento, uma diafaneidade, um ritmo que os conduza a um progressivo entorpecimento, como se o conhecimento da verdade lhes intimidasse e os fizesse mudar os olhos para a visão mais agradável de uma coxa de frango ou, melhor ainda, um corpo estendido numa liteira ou mais ainda, uma boca vermelha molhada de suor entre gemidos.
Eu lhes digo que toda presença vem precedida de eflúvios, perfumes, essências. Antes da presença, podemos delinear seus passos como que por passe de mágica; toda personalidade antes de tudo é essência e seus comportamentos refletem basicamente o que foi antes de ser razão e depois, moldado por fatos que lhes fogem à inteligência, progressivamente assumem o que devem fazer em geométrica progressão. Sempre me veio à mente, nestes delírios de morder minhas ameixas, que somos autômatos programados para uma vida plena de solidão, como a que me acompanha neste lugar abafado, empoeirado e pleno de ratos que é o sótão odioso da casa que habito com meu marido. Eu afirmo que em essência, este companheiro que a vida me pespegou tem um quê de ridículo, um tanto de Quixote e um tanto mais de Pança.
Veem meu sorriso irônico? Claro que não. Estão aí, esfaimados, olhando sem compreender, vendo sem entender, respirando sem absorver. Eu, mordendo minha fruta suculenta, posso mais em meu mundo do que imaginam suas vãs filosofices. Pensa meu acompanhante que ele vai trabalhar para sustentar meus luxos e, em princípio, minhas loucuras. Temo que ele esteja errado, pois o que mais faço é fazer brotar do pouco que ele ganha um pouco mais, e sempre mais, para que possamos ter à mesa a sopa de couve e o quarto de frango que ele insiste em comer às sextas, justo às sextas-feiras.
Mordo minha ameixa. Verdade seja dita, se existe um fruto do mal, é este. Engana-se Lúcifer, eu sei que a maçã não passava de representação desta delícia que é esta pele aveludada, arrepiada como as fracas e tremeluzentes carnes que eu abocanhei... faz tempo.
O que estão olhando? Espantados? Pois sim, dirão, o que nos interessa saber sobre esta amalucada que nos confessa que morde a ameixa de Lúcifer comprada num mercado suburbano, com sorrisos matinais mecânicos e cachorros que soltam pelotas que os transeuntes recolhem para deixar as ruas limpas de toda vida e micróbios? Ora, este é meu mundo. Saiam daqui! Deixem-me só! Estou aqui, sozinha, e se os trouxe até aqui foi para mostrar o quanto vocês não passam de seguidores da verdade alheia; não sabem, eu repito, não têm a mínima condição de criarem um caminho próprio, onde volição e realidade se choquem e se produzam estradas para o verdadeiro conhecimento. Ficam esperando! São um bando de mexeriqueiros! Pois sim!
Mas esperem! Daqui, de onde me encontro, posso ver os vizinhos. Posso ver que nos fundos das casas pulam pássaros feridos de azul, outros de um verde mórbido e talvez alguns de um amarelo-ocre, com piados lúgubres; eles vêm por uma razão bem específica: Comida, alimento, grãos. Só os mais ingênuos podem ver em graciosos voos rasantes o afeto que sempre lhes faltou. Eles querem comer, como todo ser vivo quer nesta cadeia infinita de alimentar-se, encher-se de energia, copular, reproduzir-se, brilhar por um tempo e aceitar o Machado de Occam da vida. Ó céus, a mordida me traz o suave sabor da vida, entre os dentes.
Daqui onde me acho, posso ver que o casal vizinho, ela loira e rabugenta e ele, duro como pedra, ambos já saem para o dia de trabalho.Isto significa que...que eles saíram; sua casa está vazia, (não há espaço para bebês hoje em dia). Todos trabalham, sem pausa, para pagar as meias verdades que são ditas em nome de uma mentira e meia. Lá vão eles: Um beijo frio como a manhã sela o pacto entre eles, que saem cada qual em direções opostas.
Mastigo minha porção edênica mais lentamente ainda, já fruindo do prazer de poder fazer o que me traz, então, os prazeres mais proibidos que posso lhes contar. Ah! Um níquel por seus pensamentos! Aposto que já me consideram uma equivocada tortuosa, um monstro mental capaz de deixar a semente da morte numa casa desvalida. Aposto, quase com certeza, que já me veem entrando silenciosamente na casa deles e roubando por artes de furto mágica uma estátua de jade, um quadro pintado a óleo de raro brilho ou uma jóia trabalhada em ourives excelente; consideram-me tão pouco confiável assim? Consideram-me uma ladra comum? Uma assassina?
Não!
Eu me infiltro sub-repticiamente e silenciosamente pelas portas destas casas sem dono porque me é irresistível, porque definitivamente é meu modo de vida. Sou um vulto que perpassa a porta, num vão de lado efêmero. As portas eu as conheço de cor e eu prefiro as que não têm alarme. Disso eu quero distância. Então, esqueço os sabores antediluvianos que se assenhoraram de meu paladar difícil e olho, respiro a casa que eu invadi sem ruído e sem medo. Respiro e vejo o que me aguarda: Lençóis desfeitos, camas mal-ajambradas, cortinas até de um tipo admirável, mas com um quê de decadente: Toda casa jovem quer aparentar o que se tem de melhor, mas esconde em profundezas abissais um odor de vilipêndio e pecado.
Um copo com meia dose de uísque! Uma xícara com marcas de batom barato! Um cesto de lixo cheio de papel usado! Uma pia pingando, ping, ping, ping, ping, irritantemente, no silêncio tumular de um lar abandonado às pressas ! Ping ping ping ping. Céus! Que caos é este que habita esta casa deplorável?
Cá estou, depois que saiu meu marido confesso, depois que fiz as compras do dia a dia, depois que vi os cachorros desconfiados, depois que um balanço estacou súbito depois do vento de maio. Minhas pegadas me trazem até esta casinha apertada num canto de um mundo insuportável, plena de desordem e cheiros de um banho recém-tomado e uma saída que deixa as marcas previsíveis de alguém que se apressa contra sua maior natureza: A preguiça! Esta, nossa maior companheira, que faz tantos políticos se elegerem, que nos obriga a tantas horas gastas frente a televisores, esta que faz tantos casais roncarem lado a lado. Obriga-me a confessar a vocês que aqui chegaram: Não sou nada fã de tal natureza estúpida! Não tenho a mínima paciência com tal gênero! Eu cerro os punhos e contenho-me para não gritar, porque só vejo estupidez, vergonha, preguiça e mansidão em tais desmazelos!
Então, eu me acalmo porque eu sempre tenho um plano prévio; de uma rápida olhada eu sei exatamente onde começar, onde atacar primeiro: Os lençóis! Estes malditos lençóis manchados de noites voluptuosas, que pedem uma muda! Estes cinzeiros com tocos de cigarro manchado de batom !. Estas fronhas estupidamente amarfanhadas. É aqui! Aqui é meu elemento! Exatamente aonde reina a desordem, eu ordeno a energia! Aqui, onde domina a entropia intrínseca à preguiça, cai minha ordenação como uma luva! Lá onde se acumula o lixo, reinará a limpeza, a desinfecção, a ordem e a paz da assepsia!
Mãos à obra, porque mais tarde, depois de horas, do mesmo modo que entrei, sairei sem deixar vestígio.
Subo ao sótão aonde saboreio então a dor de estar cansada e de, pelo menos em parte, fazer do mundo um lugar mais pacificado.
Só não sei que surpresa eles terão quando chegarem exaustos do trabalho. |