O camarada estava só: Sentado à mesa, uma taça de vinho à mão. Não havia ninguém com ele: Talvez as longas presenças de outras pessoas, outras palavras; era ele, a taça de vinho, a vela acesa meio de lado e o cardápio que tinha uma capa de couro elegante e um acabamento impecável. Ele já tinha os cabelos meio brancos, o que lhe daria o quê? Talvez um tempo que lhe fizesse mais bem do que mal.
O garçom observava à volta e dava-lhe boa atenção porque ele era cliente antigo da casa. Sabia de seus gostos, conhecia suas preferências e já anotara tudo o que precisava para mandar fazer seu prato predileto, acompanhado de uma entrada mais que perfeita para completar as lacunas do que conhecia daquele homem já entrado em anos, de especial temperança e mais ainda de intensa vida interior. Ele sabia, como seu cliente tinha ciência, que o que ele gostava passeava diante de suas vistas, mais do que ele próprio pensava nisto, de tal forma que o longo olhar que dirigia ao palavreado escrito em frases curtas do cardápio apenas reforçava o que ele conhecia de si mesmo, de sua vida, de sua intimidade. Talvez, ele às vezes temia, ele soubesse mais dele do que o outro imaginasse, o que não era vantagem nenhuma naquele momento crucial: Por isso mesmo, mantinha-se à espreita, o pano discretamente estendido sobre sua mão esquerda( era canhoto) e um olhar vívido às mãos elegantes e circunspectas de tão notável presença.
No senso próprio dos que acham que controlam tudo à volta, no oceano de caos que é a vida, esta perfeita vida mecanizada nos gestos aprimorados com os anos, um certo erguer de sobrancelhas, um maneirismo ao mexer no bolso, talvez um cacoete ao olhar meio de lado, o servidor já se coloca em ponto de máxima atenção: Virá de lá o chamado, a frase inicialmente balbuciada mas que ele, com a percepção aguçada por anos de observação perfeita dos tipos mais comezinhos aos mais absurdamente sofisticados, saberá distinguir, como um milagre alvissareiro em meio aos tantos pedidos que lhe fazem durante os dias, e mais durante os outros e mais ainda durante tanto tempo em que se soube envelhecer, envilecer e endurecer com o mesmo pano grudado ao seu braço bom, porque o outro lhe serve de contrapeso.
Ah, como é bom se saber útil, nesse e noutros momentos, ele pensa, como servir é bom, "quanto vinho eu pude sentir entre os lábios, mesmo sem os beber e quantas fragrâncias eu pude fruir, mesmo sem ter as taças à mão": Soube sorvê-las na imaginação, soube seu sabor aromático por conhecer outros sabores mais vãos dessa rude existência entre mesas...
Quantas brigas sutis ele viu, casais se odiando profundamente, dentro do silêncio constrangedor das carências insatisfeitas, quantas insolências ele soube relevar em olhares de cima a baixo de pequenas damas metidas em vestidos de luxo, quantas olhadelas irônicas teve de suportar para sempre sorrir o mesmo esgar entre dentes aviltados pela dureza dos músculos rangentes da face que lhe era oculta, ah! Como é bom servir!!
E aquele homem insuportavelmente só, com seu terno engomado e seu relógio dourado resplandecendo em pelos brancos de um braço que já se deixava destroçar pelo final das aparências sãs, aquele camarada estava ali, com a vela acesa à sua esquerda, o vinho na taça brilhante e bruxuleante sobre a toalha alvíssima de sua mesa esquecida a um canto onde ele dedilhava seu provável pedido com a avidez dos quase cegos, ouvindo os tinidos dos quase surdos e batendo os pés como um quase manco.
...Como é bom servir!
Abrem-se os lábios: O ar se esvai, num suspiro que exala o tédio sem culpa de ser o óbvio e formam-se as palavras que cascatearão sobre a toalha, depois se espalharão sobre a mesa, voarão até ele em mil bemóis e sonidos musicais, as taças batendo entre si, os olhares que se voltam, a ironia de um risinho volúvel e o que deixará a boca daquele ser detestável que se empertiga como se quisesse emitir um flato sem ser ouvido, diz o que é provável que se escute a um milímetro mas que ele, por saber ler os lábios, já anota em sua cartilha miserável:
--...O de sempre. |