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cronicas-->Lidia -- 05/06/2016 - 01:18 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A senhora de semblante majestoso, ainda não de todo grisalha, fitava sua biblioteca reunida com o esforço de anos de trabalho e mais anos ainda de estudos perenes: Ela olhava um Compêndio de Direito aqui, outro de Vara Cível lá, mais um de Direito Penal acolá, todos reunidos em harmonia perfeita com a literatura e a ficção. O que havia de mais moderno e o que havia de mais vetusto se combinava ali em mistura perfeita de cidadania e palavra, de realidade dura e invencível com a ficção mais etérea e impoluta. No silêncio daquela que fora praticamente mais sua vida que a dela própria, ela refletia sobre as longas noites em que examinara um caso particularmente difícil ou que tentara libertar da injustiça um caso praticamente perdido. Ela era assim, como sua coleção admirável de livros: Uma mistura de justiça e poesia.

Folheando um livro de sua autoria, onde destilava seus passeios por janelas etéreas e chuvas que insistiam em tamborilar nas telhas de sua casa, ela aguardava sua neta na penumbra de toda a origem de sua riqueza e de todo o segredo de sua solidão que ela transformara em vitória sobre a origem humilde. Ela se arrepiava de pensar há quanto tempo fora que tudo começara a mudar, num dia sombrio onde chegara a pensar no fim, coisa que ela repelira com veemência então.

Ouve-se um passo lá fora e um tilintar precede o ruído da maçaneta girando de leve, num disfarce que ela já conhecia: Ali vinha sua neta predileta, como se os seus outros netos de suas outras três filhas não soubessem disto. Ela, farfalhando silenciosa seu pequeno vestido de estudante, achava que a avó dormia a sono solto, quando ela na verdade disfarçava estar roncando para lhe pregar uma peça.

--Vovó?

--...

--Vovó?

Ela, num movimento rápido, dá um beijo no rosto da menina que dá um pequeno grito, misto de surpresa e alegria: Estão felizes as duas, estão realizadas as duas, uma em sua plenitude de potência e esperança realizadas, outra no alvorecer de uma consciência fluida e curiosa. Ela como sempre dá uma mirada nas prateleiras de livros que a avó lhe promete há alguns anos que serão seus: Este é seu tesouro, seu verdadeiro tesouro e elas sabem ser verdadeiro o que ali se projeta em luz de conhecimento e em terno afeto.

--Como vai, minha neta querida?

--Vou bem, quero saber é como você está!

--Agora melhor, minha querida, muito melhor.

--É verdade o que o vovô me disse?

--O que aquele tratante lhe disse?

A menina, encabulada, olha de soslaio aos livros mais próximos, como se eles já soubessem o segredo há muito tempo.

--O vovô me disse que você vai fazer uma viagem muito longa.

A avó olhou os olhos castanho-escuros da menina, um fiapinho de gente que lhe lembrava muito a sua infância, os cabelos encaracolados caindo pelos ombros, o vestido mal ajambrado que vestira quando tinha a idade dela—como tudo mudara, quantas dificuldades sobrepujara, quantas noites passara em claro vendo a mãe na lida para manter a casa aquecida nos invernos do campo enquanto seu pai tirava da terra o sustento de seu lar, estourando os músculos das costas lá na lavoura enquanto a mãe costurava as roupas poucas que lhe serviam de vestido para poderem estudar ela e seus irmãos; quanta tristeza tinha no coração quando os meninos mais bem de vida a olhavam com desprezo pois que viam seus poucos sapatos esgarçados, suas meias puídas e seus casaquinhos cada vez menores. Quantas e quantas vezes não se apavorou com os trovões no céu e a estorvaram as gotas que caiam nas goteiras e enchiam baldes para que sua mão pudesse lavar alguma louça.... Quando tinha a idade daquela graça que ali a fitava como um anjo, ela própria fora um anjo para a mãe e para o pai, sempre extenuados e nunca deixando faltar o mínimo, ainda que este mínimo fosse o mais que podiam esperar de meses compridos que nunca terminavam.

Ela lembrava de uma certa noite em que acordara com um barulho que pensara ser o vento movendo o galo de metal que o pai fizera e pendurara numa mangueira sob a qual as poucas vacas ainda pastavam, cheias de fome e sede; estava com o pijaminha listrado, o único que ainda lhe servia, e o vento soprava lá fora sem cessar e ela podia ver, logo adiante da árvore, as nuvens se movendo à velocidade máxima, alumbrando o céu com clarões de uma lua fugidia e de sonho.

Sentiu sede e foi à cozinha, onde a bilha gelada lhe trazia os melhores goles de que ela se regozijara, até então; no entanto, de passagem, tinha de andar por um corredor que era aquele onde todos haviam de passar ao amanhecer, ao acordarem para sua faina: Seu pai e tios, sua mãe e sua avó, seus irmãos, o gato, a vida e os fatos.

Passou pelo banheiro e ouviu que era dali que saíra o estranho som.

Olhou para o alto e percebeu uma sombra.

Muda, entrou no quarto da mãe, encontrou-a pelo tato, puxou sua manga:

--O que é, praguinha? Não é hora de dormir não?

--Mas que coisa; daqui um pouco levanto; que é que esta menina quer?

Ela puxou a mãe, muda continuou. Levou-a até o banheiro.

A luz acesa revelou a cena que a fez molhar-se toda.

Olhou terna e longamente a neta, que nascera de sua última filha, a mais nova e a mais rebelde, a que jurara que ela amava mais aos livros que ela própria; a que um dia proferira terrível sentença, a de que ela não a queria mais ver, nunca mais que fosse. Lá estava a filha dela, sua neta mais querida, depois das dores apaziguadas e da compreensão de sua filha pródiga de que ela fizera o que pudera, dadas as circunstâncias que vivera e tamanhas as cicatrizes que lhe doíam na alma; ela, antes de tudo, amava sua família e a justiça. Ela criara todas à imagem e semelhança dela: Nunca provara ser a dona de toda a verdade, senão de uma boa parte dela e sabia também que a verdade pode ser moldada, daí talvez saber exatamente quando intervir para que a verdade fosse um reflexo da Verdade maior, a verdadeira compreensão dos homens do que pode ser justo, do que em verdade precisa ser aceito, mais ainda do que deve ser feito para que se mantenha a civilidade e a sociedade coesa.

--Quer dizer que eu vou viajar?

--Vai fazer uma longa viagem...

E sua neta fazia assim movimentos com as palmas das mãos, imitando um pássaro ou talvez um avião, onde ela podia ver do alto os contornos que ganhara ao acreditar nos próprios sonhos e perceber que aquele momento que vivera talvez houvesse moldado todo o seu futuro, porque seu tio morrera de pobreza, louco de tristeza com a dura vida que lhe negara o direito mais básico: Ser feliz.

--Seu avô é um mentiroso.

--Isso não é justo!

Abraçada com a neta querida, espalhou sua luz para toda a coleção de livros que sussurravam histórias, poesias de uma vida toda, lutas lancinantes, memórias incansáveis.

Viu, então, que toda sua vida se realizara.

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