O frio cria raízes fundas até os ossos debaixo do viaduto. Uma pequena fogueira faz as vezes de lareira para uma pequena multidão; o vento corta a carne, levanta folhas de um pinheiro seco e de ipês aguerridos que lutam para crescer entre as lajes arruinadas e fedorentas de mijo e miséria. As flores saem dos galhos mirrados e brilham, brilham à luz seca do sol covarde. Nem o sol escapa à covardia destes tempos frios e sombrios, enfumaçado pela fogueira feita de pedaços de cadeiras moídas, madeira podre de lei que nunca se cumpriu. A lei é papel prensado, com palavras incompreensíveis ao vulgo, a lei pode até estar inscrita em tábuas de Roseta, mas ela apenas é letra morta...pelo menos ali, em torno do fogo baço, crepitando na escuridão, espalhando um pouco de calor aos olhos que bruxuleiam no esquecimento e na turva razão dos acontecimentos que preparam o sono eterno de todos.
Um deles remexe nas brasas, estrelas descem à Terra, fogos fátuos do mundo que não se sustenta, não se recria e não se transforma nunca. O braseiro apenas reforça a ideia de que o Indizível apenas esconde o Inominável e o perpetua num eterno ciclo de cadeias informes de sobrevivência impossível. Quem ali chega sequer perto do conceito de imortalidade? Quem pode dizer qual deles levanta os olhos do braseiro e sublima o que tem à volta de si? Covardia do sol. Covardia das estrelas, do infinito e da memória coletiva. Eles tendem a crescer, pois a um se ajunta outro, mais um se agrega desvalido e é ali, na vala comum do desespero, que todos tremem de frio e fome, e vazio.
O Homem do Centro da Fogueira coça a barba grossa, cheia de crostas. Ele é um dos mais velhos ali; de certo modo, sente que a invasão dos Novos cresce dia a dia. Ele se calou há tempos, aprendeu que é melhor calar para melhor sentir direito o que pensa, porém, melhor às vezes ficar de ouvidos moucos e de olhos enxutos, porque ao que existe dentro dele ele sobrepõe o que já foi ali e como um rei sem a coroa, jaz nu e sem reinado onde todos procuram o calor e esperam...não sabem bem o quê. Ouve-se o estalido das brasas, um chiado que é a voz dos ratos. Os ratos reinam no reino do rei nu e mudo. Há os menores que são os que mais procuram ali entre o pouco que lhes pertence, há os maiores que rosnam lá fora, nos paredões pichados da droga e os maiores ainda andam de avião e arrotam caviar. Há maiores ainda, mas dali em diante, tudo se turva à mente do Rei Da Fogueira, que remexe com um pedaço de pau as brasas que relembram galáxias aos curiosos.
O Rei olha sua plebe: Ele nota a moça tiritando lá no fundo, perto da parede riscada de giz e tinta barata.
--Quem é a novinha?
--Sei não.
--Cê não sabe de nada, é nunca. Cê só sabe dos piolhos seus.
--...Só sei, chefe, que nada sei.
--Ô moça!
A moça ergue os olhos, tremendo dos pés à cabeça.
--Sim?
--Que diabos você faz aqui?
--Aqui estou.
--Você faz o quê da vida?
--Eu era pedagoga. Com a crise, minha escola cortou professores. Eu já tinha me endividado, não pude pagar aluguel. Daí fui fazer curso de aprendiz de pedreiro!
--Aprendiz de pedreiro? Certo perdestes o senso...
--Deixa ela falar, ó filósofo da ventania! E daí?
--Daí que não achei emprego de nada. Estou só com a roupa do corpo.
O Rei a olhou e viu que era bem-apessoada tal pedreira pedagoga. E era bom.
Ao lado dela, tiritava um outro novato, com barbicha e rabo-de-cavalo. Tinha ares importantes que, dado à sua longa tarimba, o Rei sabia que perderia, como se perdem os tais anéis que dos dedos ficam. Ou outros!
--Você aí!
O barbicha esticou o queixo.
--Eu?
--É, é você mesmo. Eu é que não sou!
--Ah, eu.
--Você. Que faz aqui?
Cofiando a barbicha, nosso herói deu uma olhada de esguelha à nova pedreira e antiga professora, e viu que era bom.
--Deixe de ser metido a besta que eu estou lhe manjando! Diga a que veio!
--Eu? Sou jornalista. Andei fazendo umas coberturas aí que me valeram certos inimigos...fecharam-me as portas...E não me deixam trabalhar!
--Ah, a tal imprensa livre. Filósofo!
--Hein?
--Existe imprensa livre neste mundaréu?
--A paga ou a oficial?
--..Deixe pra lá, ora. Filósofos! E aquele ali, o dormideiro?
--Realmente, quando ele dorme, dorme...
--E você, sabe o quê dele?
--Não o sei, deveras.
--Como sempre. Psiu!! Você!!!!
O dormideiro roncava a sono solto. Acordou do mundo de Morfeu assustadiço e de olhos turvos, respondeu rápido...
--Eu? Eu sou um médico!
--Ora ora! Quem diria!!! Como raios você veio parar nestas plagas, ó discípulo de Esculápio?
--Primeiramente, boa noite a todos!
Todos o olharam e uns acenaram mãos enquanto outros se empertigaram para saber de sua desgraça.
--E segundamente?
--...Então, eu era um médico em início de carreira, todo cheio de esperanças de mudar meu país, endireitar a saúde pública, com projetos de primeira...
--E aí?
--... O caldo entornou quando um certo camarada descobriu que éramos como o sal. Daí teve uma mulher que inventou de chamar uns médicos de longe...
--Ah, essa mulher...aquilo tem pacto com o canhoto!
Muitos punhos bateram no chão, à guisa de madeira.
--Daí que minguaram os recursos para a saúde, faltaram verbas para nos contratar e...estou aqui.
--Barbaridade!
Um murmúrio correu pela pequena multidão. Até um deles! Oh!
Notando uma figura apagada mais à esquerda, com um cigarrinho apagado pendendo dos lábios, o Rei perguntou:
--E você?
Os olhos rápidos do fumante inveterado se ergueram...
--Fui engenheiro. Virei suco.
Gargalhada geral. Ninguém escapa!
--Meu caro filósofo, quem diria...tão nobres companheiros!
O vento batia forte nas muretas e um ou outro carro fazia tremer aquela caverna moderna...Todos os estômagos roncavam e os olhos se dirigiam ao final, na embocadura da ponte, onde uns vultos parece que chegavam carregando alguma coisa...
Agitou-se o povo todo, a fogueira se avivou até pela brisa forte e uns e outros se animaram: Chegava a boia, trazida por anjos anônimos que todo santo dia batiam ali regularmente o ponto...
Ninguém havia notado a moça que chegara. Ela estava de olhos brilhosos, os cabelos longos e escuros esvoaçavam em torno do rosto suave e seu corpo estava coberto por panos de cores diversas, como se ela houvesse achado jogados mil vestidos e os tivesse misturado a todos num só...
Todos se preocupavam com a comida, a fila se formava...ela se chegou ao mais velho deles, disse suavemente:
--Estou grávida!
O Rei a olhou e pela primeira vez, ele pode sentir algo parecido com a esperança...
Abrindo caminho entre os pobres, ela sentou-se à direita do Rei e fez-se um banquete.
E foi bom. |