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cronicas-->Jonas -- 04/10/2016 - 11:38 (flavio gimenez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Acho difícil começar contando assim um fato estranho, quanto mais um desses que toda gente duvidaria. Eu me atenho aos fatos, mas, se ora e vez esquecer um detalhe, não deixa de ser talvez uma fraqueza ou por alguma dificuldade de relembrar toda a verdade que se sucedeu, uma vez que a mente prega peças por demais sutis e o silêncio é melhor à mentira inventada por puro exercício de prazer mesquinho. O que relato aqui tem a ver com a exigüidade dos espaços ocupados por pessoas que, à falta de outros, ocupam os menores possíveis, até porque a invisibilidade os premia com o sossego e com a paz que almejam há anos.

 

Ele se chamava Jonas. Morava de favor num posto de gasolina; a comida arranjava-se, a higiene era a possível e o vento era seu melhor companheiro nas noites solitárias. Nestas noites frias e límpidas, ele costumava ver o céu coalhado de perfeitas gemas que lhe falavam dos destinos do mundo. Lembrava-se parcamente das constelações, doze ao todo, que regiam os suspiros dos homens. Jonas aprendera a ler os destinos de tantos...No entanto, mal entendia o dele mesmo. Lembrava-se pouco de como viera parar ali, no caixote de papelão cedido por companheiros piedosos que ressonavam à volta, enquanto que ele iluminava os céus com o fogo fátuo de seus olhos febris e via, uma a uma, subirem a pinças de Escorpião, derramarem-se as águas de Aquário, o Touro majestoso esfregando as patas no cosmo, a beleza triste de Virgem...

 

--Dorme aí, véi.

--Deixa de ser otário, mano. Cheira uns bagulhos aí que a fome passa.

--Qunzinho!!

--...Diz, maninha.

--Deixe Jonas em paz.

 

E Jonas recordava-se de um céu menos claro, lustroso e pleno de sais e peixes. Jonas via talvez no horizonte as vagas de um calmo oceano e uma vez que não se lembrava de nada fora os rangidos no escuro de quando acordara no vento de seu barco improvisado que flutuava no abismo das nuvens sobrepostas, ele construía a realidade apesar dos fatos que recebia serem pulsos de uma verdadeira obsessão. Construía sua lenda, erguia paredes imaginárias, pensava na bocarra medonha e na escuridão de escolhos e mastros, imaginava o mau cheiro da putrefação, enclausurado para sempre no fedor da morte e do medo. Nestas horas, costumava acordar agitado, sem repouso...

 

--Ihhh, cara, o véi ta surtado de novo.

--Mano, quando ele grita assim, parece que a voz dele vem das profundas.

--...Quinzinhooooooo!!!!!

--...Fala, porra!

--Deixe Jonas em paz!

 

Eu que conto isto, mas quem me passou o conto foi um outro que se disse amigo do mais velho de sete irmãos, todos os quais viviam à beira do abismo do viaduto, todos abandonados pela mesma mãe desnaturada que fugira com o sétimo padrasto deles. Sete vezes ele me disse a mesma história, no oitavo dia descansou e dormiu sete dias seguidos depois que o peso sobre seus ombros se desanuviou. Ele me contou que, um dia, Jonas acordou bem. Foi até a fogueira acesa com um sorriso de lado a lado. Nem parecia o mesmo Jonas sufocado de sempre.

 

--Bom dia!

--Bom dia, véi.

--Mano, tu ta brilhando ou é impressão?

--Ói! Tem um treco aqui na cabeça dele...

--Quinzinhooooooooooooooo!!!!

--...Que é, porra? Velha pirada!

--Deixe Jonas em paz!!!!!!!!!!!!!

 

E ele tomou o café sete vezes, sete vezes sete vezes setenta, e ninguém deixou de ver que do bule todo amassado brotava café sem parar, assim como dos cantos do viaduto brotava leite e mel; o maná caiu do teto todo decomposto e as crianças se alimentaram, tudo isto antes de acontecer o que eu relato agora. Não há que duvidar e, se não me engano ainda mais, Jonas foi então, engolido por um ônibus em cheio, enquanto sorria no meio da avenida engarrafada.

 

Não se fala mais nada lá onde ele estava. Sabe como é, impera o silêncio nestas comunidades distópicas. Eu já não sei se isto é lenda, ou fato, ou mesmo se o que aconteceu faz parte de minha mente perturbada por ligeira depressão, ou delírio, ou sonho. Espero ter sido claro. De minha parte, Jonas trouxe o peixe.

 

Agora, ele descansa em paz.

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