"Doutor, eu vim aqui de peito aberto. Sim, de peito aberto porque nem todo mundo entende. Vim contar minha história. Eu vivo assim, com minha família, sabe? Eu vivo assim na minha, em casa, minha mulher que é uma santa é que me trouxe aqui, sabe? Eu vivo um tanto lá com eles. No momento, faço nada porque perdi o emprego. Acontece que um dia o capeta me atentou e eu fui fraco, cedi.Deus me livre do capeta, se o senhor me ajudar será Deus no céu e o senhor na Terra.
Ninguém entende o que vai na minha cabeça e minha santa esposa já me aguentou é muito...Porque, doutor, porque eu fui fraco. Estava limpo há uns dois anos. Perdi o emprego. Ninguém me chama nem pra levantar muro! Nem pra lavar calçada...Porque eu usava droga. Qual? Cocaína. Minha família acha que uso crack. É cocaína, doutor, das caras, das que filhinho de papai cheira nas festinhas de madame. Eu estava sem emprego, vendo a pobreza se instalar, minha santa mulher trabalhando que nem louca e eu...fui fraco.
Como foi? Eu comprei umas gramas, por aí. Quem me vendeu? Carece de saber não. Gente das quebradas, doutor. Não faz bem saber que estão aí. Bem pertinho. Gente graúda, cheia de força, gordo que nem porco. A gente então se acaba. Fiquei uns cinco dias no meio do mato. Peguei meu carro e sumi, e toca cheirar todas. Sozinho, que não quero que me veja assim. Pensei em morrer mas a branquela não me deixava morrer, o paraíso estava ali à frente! Um brilho, a alegria, mil ideias...e eu me acabando.
Ontem, o pessoal estava alvoroçado. Ninguém me achava, mas eu procurei: Estava mal, pensando na dor que tinha no peito e na falta que me faziam os filhos. Os dois, pequenininhos. Ela? Chora não, minha santa, chora não. Não valho uma unha de seu pé mimoso! Pois é. Aí, fui num orelhão, quebrado! Quebrei todo. Fui num outro, mudo. Aí, cheguei a um bar, tinha lá uns malacos bebendo. Pedi uma ficha, tinha graninha. Os caras me zoaram, disseram que eu era maluco e estava noiado. Noiado! Eu estava é morrendo! Me ofereceram um trago. Eu bebi, mas liguei para meu irmão. Ele me salvou, doutor! Ele achou meu carro, ele veio e me levou ao hospital.
Quase morri!
Hoje estou aqui para contar a história. Não deixe que me esqueçam, doutor! Não deixe que me esqueçam. Eu não quero morrer. Internação? Pode me mandar. Prefiro ficar limpo a morrer na desgraça. Não quero dar exemplo aos filhotes. Eles são pequenininhos...O mais novo tem três anos e já me pegou no flagra...Não quero.
Me interna, seu doutor? Vai ser Deus no céu e você na Terra, assim na Terra como no céu.