Nossa tia Encarnación sempre foi diferente, a típica tia solteirona; vivia com sua mãe Sulamita por falta de opção e não que não fosse bonita, porque na juventude esfacelara muitos corações, mas porque a vida vai colocando a gente na parede e temos de fazer escolhas e ela fez a dela, viver ao lado de sua bondosa mãe. Sulamita é uma dessas avós-modelo: Sempre com a gemada na xícara a oferecer para os netos, sempre com o vinho do Porto para oferecer aos visitantes, sorriso leve e olhos cintilantes. Inventava de fazer comidas deliciosas e convidava a todos a comparecerem ao seu apartamento que ficava nos fundos de um conjunto de prédios silenciosos e habitados por muitos velhinhos que volta e meia morriam e deixavam cada vez mais vagas es suas moradias.
Encarnación não saíra de casa porque seu último namorado, Alfonso, queria que ela casasse e fosse morar com ele no estrangeiro. Ela queria levar a mãe e Alfonso decididamente não desejava ter a sogra nos calcanhares, coisa muito justa porque Sulamita era caprichosa e, não se sabe por quê, implicava com o futuro genro mais do que ele gostaria de suportar. Ele gostava de tocar piano e Sulamita reclamava do barulho das teclas do piano, porque decididamente não gostava de Beethoven. Ele era sofisticado, formado em música e Conservatório, encantara sua filha, mas ele não a enganava, queria pô-la em asilo e ela não queria sair de seu apartamentozinho em Potosi. Não!!
As discussões entre os dois amentavam na medida inversa em que seu amor crescia, até que chegou o muro e nossa tia foi colocada contra ele; saiu-se com a desculpa de que não poderia abandonar a mãe. Ele, de coração partido, viu que seu amor era menor que aquela simbiose, e partiu para o tão sonhado estágio em Paris, enquanto nossa tia amargava lágrimas de sincero arrependimento e orgulho ferido. Esperou por cartas que nunca vieram, espichava os olhos para ver se ele aparecia na rua de repente, sempre com o maço de flores na mão e o paletó na outra, cabelos divididos e porte marcial.
Nada!
Os anos passaram e Encarnación foi-se amoldando à rotina medíocre da vida de secretária adjunta de um subdepartamento da Prefeitura de Potosí. Sua mãe já tinha os achaques de velhice e para piorar a culpava de sua infelicidade, sempre se vitimando e carregando a culpa nas costas de Encarnación, que se tornou solitária e sem amigos. Suas carnes, outrora tão belas, murcharam de desgosto e sua beleza, antes luminosa, fanou-se em poucos anos. Os poucos amigos se mudaram e ela vivia com a mãe, cada vez mais esquecida de si mesma e dos outros. Sulamita dera para acordar aos gritos de noite, o que mais de uma vez causara confusão e vergonha à sua filha. No entanto, ela cozinhava bem e nossa tia engordou de tanta rotina e tanta comida boa.
Seu pianista era famoso agora, cercado de belas mulheres; ela decidiu então nunca mais se entregar ao amor; aposentou-se e vivia da pensão que Sulamita tinha do marido que fora oficial do Exército da ativa e morrera de tifo na Amazônia. Com este dinheiro pouco, as duas viviam reclusas, raramente passeando nas praças aos arredores do conjunto cinza de prédios onde moravam há séculos; Sulamita tremia e Encarnación olhava o infinito, ainda com esperança vã de um pianista esquecido lhe fazer a corte e leva-la a Paris, onde se casariam e viveriam noites de luxúria, Champagne e noitadas musicais, onde Beethoven faria a festa.... Não! Já prometera a si mesmo que isso não mais existiria!!! Voltava os olhos à mãe triste e calada, os olhos delas se encontravam na Noite e elas rezavam ao Senhor, uma embalando a outra na escuridão, um barco de ternura mútua e dependência recíproca na ilha escura da solidão em que se refugiaram.
Eu sabia pela minha mãe que tia Encarnación fora muito bela e ficara com a Vovó Sulamita por que “ficara pra titia” ao que meu pai dava risadinhas maliciosas e meu irmão mais velho virava os olhos de raiva (porque já nesta época jurava que nunca se casaria). Passei um verão particularmente quente por lá e as duas me mimaram tanto que tive medo que meus pais estivessem querendo se livrar de mim, já que meu irmão sempre inventava que eu era adotivo e que Encarnación seria minha mãe verdadeira. Eu morria de medo, mas, eu juro, poderia viver com elas o resto de meus dias que me empanturraria tanto que nem meus amigos me reconheceriam no futuro. Nossas visitas a elas se tornaram raras e com a doença de papai tivemos de nos arrumar em casa para dar conta das despesas. As duas então veriam crescer a sombra do esquecimento diante de si.
Nesse meio tempo papai morreu e foi a última vez que as vi, porque não fomos mais a Potosi, eu fui trabalhar e meu irmão caiu no mundo de motocicleta. Minha mãe era bela e logo se arranjou com outro colega, em dois anos casou-se e eu me mudei para Lima.
Tia Encarnación nem cartas mais me mandava, nem quando eu lhes mandei fotos de minha noiva e futura esposa.
Muitos anos se passaram. Cinco anos, para ser mais exato, quando recebi um comunicado para comparecer a Potosi para providências legais. Eu não tinha noção do que fosse. Pediram-me para comparecer ao apartamento de Sulamita e Encarnacion.
Cheguei pelas nove horas.
Fizeram-me entrar em seu quarto.
Lá estavam as duas, mumificadas há cinco anos, deitadas de mãos dadas, o terço nas mãos.
Antes de morrer, Encarnación deixou uma cartinha: “Deixo a vida porque mamã me abandonou há nove dias; não tenho ninguém, ninguém se lembra de nós, somos esquecidas do mundo e eu não sei o que fazer comigo; desculpem-me, se um dia nos acharem. Adeus. ” |