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cronicas-->LAMENTO BRASILEIRINHO -- 08/07/2001 - 14:35 (ANTONIO ELSON RODRIGUES SIQUEIRA) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Lamento Brasileirinho

A mim não me foi dado o título de deus. Não o ostento hoje. Não o ostentei noutros tempos. Todavia, é certo que honrei o séquito de Baco, estive em companhia de suas ninfas e de seus sátiros, contemplei sua vindima. Fui testemunha de seus feitos, fui cantor de suas jornadas. E, é claro, protestei junto a Homero, por não ter referido meu mestre em sua gloriosa poesia.

Ouvi os lamentos de Afrodite na floresta, justamente quando a deusa do amor e da beleza procurava seu amado Adónis, já morto, vítima de um impiedoso javali. Conta-se que ela se feriu nos ramos espinhosos e que das gotas do seu sangue que caíram por terra brotaram rosas. O que não se conta é que eu, almejando confortá-la, fui agraciado com uma gota ínfima do líquido escarlate que trespassava seu amargurado coração. E Erato, musa da poesia, se me revelou desde então.

Segui outro rumo. Fui ter com Orfeu. Baco pensou que eu o tivesse traído e lançou sobre mim a mesma terrível maldição com que exterminava seus inimigos. O fim desse episódio é sabido. As bacantes deram fim ao copioso sofrimento do apaixonado Orfeu. Escapei com vida e aqui estou, carregando o peso de outra terrível maldição: a da vida eterna! Sim, porque os poetas, em verdade, são um só corpo e têm às eras perpassado em função de uma só musa, a Poesia.

Bebi do vinho de Baco, bebi da lira de Orfeu, Bebi um pouco da engenhosidade de tantos outros: Ovídio, Dante, Petrarca, Cervantes. Oh, quantas vezes saboreei do vinho em companhia do gentil amigo Dom Quixote De La Mancha! Quantas vezes não o ouvi, com olhos lacrimosos, falar de sua mui amada Dulcinéia! Quantas vezes não fomos castigados com sovas impiedosamente aplicadas por malfeitores que cruzavam nosso caminho! Quantas vezes o Cavaleiro da Triste Figura não demonstrou preocupação para com minha pessoa, quando perguntava: Tudo bem contigo, amigo Sancho?

Quando o mundo só falava em Revolução Francesa era eu um caixeiro viajante. A convivência com diferentes povos e suas crenças acendeu em mim a flama de uma espiritualidade que ia de encontro às ortodoxias de então. Não me contive e principiei a pregar minha própria doutrina a quem se interessasse. Desagradei aos inquisidores.

Levado a julgamento, tive de explicar meu mister: "o paraíso não teria sentido algum se não fosse pela existência do inferno. E vice-versa. Uma alma que tenha merecido adentrar os portais dourados do paraíso precisa saber do inferno, precisa saber das tantas agruras que sua trajetória correta o houve livrado, pois essa é a única forma de justificar toda renúncia a quaisquer tentações que se lhe afiguraram em vida. Já a alma desgraçada que, pelos seus atos e omissões em vida, a final tenha sido condenada pela justiça divina ao eterno suplício do inferno precisará saber da existência do paraíso e das benesses com as quais seria agraciado se outra houvesse sido sua trajetória. Esse conhecimento é indispensável para o arrependimento tardio e vão dessa alma amaldiçoada, o que só aumentará seu martírio, agravando seu penar, justificando seu castigo. Mas o que sei eu de céu ou de inferno? Convenções, meras convenções". "Blasfêmia!", disseram. Fui condenado à forca.

Já no cadafalso, perguntei a Deus por que havia me abandonado e quem era ele, afinal. Eis que sua voz tonitruante se me revelou: "Eu sou seu nada que tudo oferece porque você não me conhece nem busca conhecer". Uma tempestade repentina se formou, fazendo com que meus algozes se recolhessem às suas casas. Quando voltaram para encerrar de vez meu martírio, não mais me encontraram. Viram apenas os grilhões que outrora me prendiam.

Cá estou, após tantas vidas. Quem sou eu agora? Sou um triste brasileiro. Apenas mais um dentre tantos outros. Foi difícil viver até então, mas nada se compara às sensaborias que tenho de vencer todos os dias. Viver sem quase ter perspectivas ao menos razoáveis de melhoria é muito dolorido. Ai, dor sem igual! Antes de dormir, desfaço-me em orações, juntando os meus aos anseios mais urgentes da nação. Não me contenho... e choro.
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