03:27. Uma madrugada de merda. O vento frio atravessa sorrateiro e invade a casa mobiliada parcamente. Estou cercado. Não há por onde escapar; existem poucos abrigos atrás dos quais me proteger. Minha última chance seria efetuar uma manobra arriscada; tentar, num esforço homérico, levantar-me e travar um combate corpo a corpo com esta entidade gelada, conquistar terreno pacientemente, avançando passo a passo até chegar à janela e fechá-la, vingativo.
"NÃO FAÇAM PRISIONEIROS! NÃO FAÇAM PRISIONEIROS!" Esta frase repetida até a exaustão por nosso comandante ainda ecoa no interior da minha cabeça, bem como os estampidos secos dos tiros disparados e os gritos e urros que soltávamos exasperados entre os arbustos e trincheiras (explicados como sendo instrumentos de uma guerra psicológica para confundir o inimigo e enfraquecê-lo, mas que sempre me pareceram serem expressões dos nossos próprios horrores e medos).
E tudo era somente treinamento. Preparavam-nos para uma guerra distante, mas real e presente. Preparavam-nos para uma expectativa: "se for necessário, nós estaremos prontos!" Chamaram nossos pais e mães para justificar o "sequestro" que se prolongaria por alguns meses e lhes disseram que seríamos enviados, sim, se fóssemos chamados. Segundo nosso comandante, em suas palavras carregadas de emoção, esta possibilidade começava a configurar-se cada vez mais em sua tangibilidade.
E se ele privava nossos pais e mães de nossa presença e nos submetia a extenuantes treinamentos diários que prolongavam-se por incontáveis e ininterruptas voltas dos ponteiros do relógio -- dias inteiros, madrugada a dentro --, se nos roubava noites de sono, se eu havia emagrecido cinco quilos e meio e menos de uma semana e se minhas olheiras cavavam-se fundo em meu rosto, era porque ele "queria o nosso bem ao mesmo tempo em que cumpria seu dever": nos enviaria para a guerra, mas nos enviaria prontos, verdadeiros homens capazes de sobreviver e orgulhar a "bandeira sob a qual e pela qual lutavam". Muitos de nós sabiam que isso nunca iria acontecer e nos aborrecíamos. Outros acreditavam e temiam. Alguns desejavam muito embarcar para o Golfo, outros apavoravam-se com essa idéia -- esse terror constante. Outros amaldiçoavam o simples fato de estarem no quartel, dia e noite. Nunca fomos. Não foi necessário. A guerra acabou antes disso. E esse foi o motivo da frustração de muitos de nós: aqueles que se tornaram "neuróticos de guerra" sem terem embarcado. Gente que não podia ouvir um estampido, um estouro de cano de descarga de um carro mais velho, e já estavam jogando-se ao chão para se abrigarem dos projéteis imaginários. E ainda durante muito tempo as crianças se divertiram à s minhas custas jogando seus estalinhos e traques aos pés da minha mesa no Chopão.
Lembro-me de tudo isso agora, nesta madrugada gelada que me faz recordar um acampamento, brincando de Rambo, enquanto nossos comandantes queriam ser Duque de Caxias, todos se preparando para um apocalipse que ainda não veio, mas que já começou a deixar suas sequelas.
OBS.: Crónica originalmente publicada no jornal "O Plenário", Belo Horizonte, fev. / 1997, p. 2.
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