Eu não durmo bem desde o acidente de carro que eu sofri. Sei lá, eu decidi contar essas coisas porque as pessoas se interessam pelas vidas dos outros de uma maneira torta, porque se não fosse assim, ou fosse de outro modo, teriam notado meu retraimento, minha reserva. Não, ninguém pergunta nada, como assim? Foi por isso que sumiu dos lugares? Como assim? O que eu sei é que a estrada parecia tranquila naquele feriado e eu, de alguma forma, me distraí. Olhei para um lado e o carro foi para outro; em questão de uma fração de milissegundos (a morte pode ser rápida!) eu vi o paredão de aço do caminhão lento à frente. Tive tempo de frear e, em càmera lenta, minha filha estranhava o comportamento da cachorrinha que nos recebeu e sumiu seis vezes antes de sumir a sétima vez e ela me chamar:
--Pai, a Julieta está tendo bebês!!
Eram sete, sendo que a pequena cadelinha separou um filhote dos seis outros; minha filha não se conformava com isso, e Julieta novamente o separava dos demais e só aí, depois de duas horas, fomos ver que o sétimo pequenino estava à morte. Morreu a seguir, sob as lágrimas de minha filha...
--São seis airbags!
--Como você sabe disso?
--Conte!!!
--Verdade! Senhor! O senhor pode me ouvir? Vamos tirar você daí.
Eu, flutuando em um mar de plástico, suspenso sob a capota do automóvel destruído, apenas recordava do sétimo selo, aquele que a morte fecha ou traz.
--São sete!
--Ele está confuso!
--Tirem ele daí, porra!
Metal serrado, luzes e sirenes, maca e céu estrelado...
Desde então não durmo direito, apesar de não haver sofrido absolutamente nada em meu corpo, fora o ligeiro corte na testa. Desde então, só ando de trem, metró e ónibus. Guardei o dinheiro do seguro do carro para na eventualidade de comprar outro, usá-lo em um mais barato.
Pego os trens da CPTM, que em geral são cheios. Dou uma parada em Osasco, antes de seguir para o interior, onde eu moro. Em Osasco eu tomo o ónibus que me leva ao meu destino, a cidade de A. Pequenina, eu moro lá há muito tempo. Tem suas problemáticas, como assaltos de quadrilhas em caixa eletrónicos, atropelamentos de animais na estrada, transeuntes que preferem andar de bicicleta pelo acostamento da Castello Branco, loucos varridos pela droga que gritam que Jesus está perto e mulheres que ficam esperando os clientes embaixo das pontes com bolsas enormes.
Minha filha cuida dos seis filhotes sobrantes da pequena cadela que, exausta com o parto, mal dá conta da cria.
Em Osasco, tipos curiosos se misturam na estação onde faço uma pausa antes de pegar o ónibus.
Um vendedor ambulante se ocupa de um policial, que sorri do descaramento dele ao tirar um relógio da bolsa preta onde os carrega, dizendo que são legítimos da marca Fake e que ele vende por cinco reais. "Se chegar lá e oferecer por dez, quem vai comprar? Ninguém lá no trem tem dinheiro pra isso, irmão!". Uma moça de olhos compridos distribui papéis onde se lê "Ajudem" e duas crianças recolhem as eventuais moedinhas e notas de dois reais. Um outro vende chocolates e balas, tem a clientela fiel; não é por acaso que, bem pertinho, há uma clínica odontológica popular, deve haver um acordo. E ele vende bem seus chocolates que são de boas marcas e balas de mel com recheio dentro que estalam na boca e espalham o sumo adocicado depois de muita luta entre sua casca e a língua.
Os garotinhos já se afastam porque a mãe faz um gesto seco para que lhe entreguem os trocados, ela tem o rosto chupado de quem tem poucos dentes, o mais velho tem cabelos encarapinhados e o novinho, dois anos se muito, tem ranho no nariz e olhos vivíssimos. Fico me perguntando qual será o futuro de tal raça esfaimada, cada vez mais espalhada por aí, sem destino, sem saúde e sem trabalho.
No meio de todos, um rapaz, bem vestido, de boa aparência, monta uma pequena mesa onde coloca um quadrado de plástico transparente onde está o bolo que a esposa fêz para que ele vendesse. Eu o olho: Poderia ser meu filho, ou futuro genro mas está lá, em meio a toda aquela gente, vendendo pedaços de bolo como os outros vendem chocolates ou pentes de plástico ou relógios Fake de última geração.
O policial se contrista e comenta com o vendedor de relógios:
--Não está fácil para ninguém...
--Não, mesmo. Esse aí não estava aqui na semana passada, mas a mulher dele sim. Dois lutadores, pelo jeito.
Entro na fila para a compra do bilhete para A. Chegou adiantado! Muita gente que adota o hábito de chegar em cima da hora vai perder a viagem. Compro o meu bilhete e entro. Ali é o ponto inicial de uma viagem que chega até S., cidade bem planejada do interior. Tem ciclovia, riacho despoluído (até peixes tem!) e uma bela praça central. Mas meu destino é A. Sento no corredor, ao lado de um senhor avantajado, que mal cabe em seu assento por causa da gordura e dos pacotes que traz aos pés. Emana dele um cheiro azedo, dos que não têm tempo de tomar banho porque trabalham sem parar. Ele me conta que é pizzaiolo e faz um bico na capital antes de trabalhar quase todas as noites em A., fazendo a melhor pizza da região; ele sabe ser bom, tem até convites na capital, mas arrega na hora H:
--Aquilo ali é loucura; levei três horas para ir ao Mercado Central e comprar azeitonas pretas. Mais duas para chegar até aqui. Quero chegar em casa e tomar um banho antes de meu turno na pizzaria. Hoje é delivery, pauleira!
Tem quatro filhos: Duas moças, um adolescente e um menino de três anos (!). Com a mesma esposa!
--Com a mesma mulher. Mas que veio tarde, ahhh, veio. Quem cuida dele é minha filha mais velha, porque dá aulas e o leva para a creche, que minha mulher trabalha para fora, fazendo faxinas em casas de ricaços. Minha outra filha é professora e o moleque do meio dá trabalho, porque aqui tem muita droga, das pesadas; ai dele se cair nessa! Tem uma quedazinha pra ser vagabundo, mas eu levo no cortado.
Eu sinto o cheiro vindo dele em emanações distantes e lembro de uma pizza de calabresa que é meu fraco. Enfim, vamos descer juntos, teremos o mesmo destino e ele seguirá seu rumo de produzir o alimento dos outros para poder alimentar a si e à família, que agora, a esta hora, deve estar reunida jantando antes que ele se vá para trabalhar; todos agradecem a Deus por terem o que comer nesta época tão sofrida. Eu caminho nas ruas de A., mas ainda vejo as estrelas quando estava na maca, respirando o ar frio da madrugada, saindo do ventre de seis airbags que me pariram outra vez ao mundo: Nasci de novo, nada me faz mais mudar mais minha trajetória...
--Ele está respirando!
--Tirem ele daí, porra.