Eu me lembro dela, fiquei de falar com a moça. Acontece que nas brumas se perdem as memórias e a moça virou fantasma e minha fuga foi uma vergonha. Digo vergonha porque nem de verdade aconteceu nada, foi tudo na imaginação, a posse, os sentidos, o cheiro dela, tudo, as curvas, o tom dos olhos.
Eu imaginei que fosse o que jamais poderia ser e ela, iludida por um manto de estrelas que prometia com os olhos, caiu como uma dócil andorinha na rede de uma armadeira que estivesse ao sótão. Engraçado como nas brumas lembramo-nos de nossas impudidícias e fracassos. O coração bate mais rápido quando temos de confrontá-lo com um mínimo de verdade, sabendo que mesmo a mentira tem um fundo de fato.
Abre-se um fosso entre a virtude e o sonho, somos possuídos pelas possibilidades que nunca se realizaram, eu repito. Ela já, na certa, imaginava-me parceiro, as alianças, o beijo sob o véu.
Cobria-me então o manto da vergonha por abandoná-la assim, Ã sombra da volição negativa. Nada de luz a amparar aquele anjo, somente o brilho de uma possível--pois que irrealizável--paixão. E eu fui, sem freios e sem dó alguma. E eu corri, distanciado de seu pranto inesgotável que enchia os lagos das florestas. Eu fugia da enchente de sua perda e eu mesmo, de mim mesmo, nada havia de perder.
Eu me lembro dela, ali, na mesa, retocando a maquiagem, esperando um encontro que nunca houve, porque o combinado se descombina a olho nu e a falsidade se refaz com força própria. O desencontro é mais prático do que o amor escasso.
Melhor para ela.
II.
Para mim está claro como o dia, eu não preciso de nada disso. Para mim, bastam-me as pernas, meus passos, esse sol, as águas poderosas em suas circunvoluções ancestrais, seus animais abissais nos intestinos da mudança;a mim bastam-me os sinais todos que tenho no corpo, os signos da luta, a minha esperança.
Não preciso de vocês. Nenhum de nós precisa de outrem, somos seres monadais, únicos e preciosos. Cada um de nós carrega cosmos enxutos, particulares céus de vertigens próprias. Cada um de nós carrega as colossais diferenças que nos fazem a todos tão iguais e temerosos do futuro.
Eu queria tanto dizer isto, faltavam-me palavras, porque sua beleza quase que me sufocava quando você disse que ia embora, para sempre. Não conseguia acreditar que tudo terminara; eu apenas levantei meus olhos e mirei o zênite, conformei-me aos planos deles lá e fui em frente.
Desde então, tenho sido o melhor que pude, mas cheguei à conclusão insofismável: Nunca precisei de vocês, nem aqui, nem algures. Sou um nó egoísta, preso em uma garrafa, solto num oceano, flutuando no espaço, sendo gravitado por milhares de partículas de luz iridescentes, claras como seus olhos de despedida.
Nunca estive tão só, neste Infinito que é a casa de nosso bem.
III.
Pensem no que fazer durante o frio. Não se precipitem. Vejam o que aconteceu com Marcos Júpiter Ding Dong. Ele estava a dirigir o seu automóvel e atendeu seu telemóvel ao volante. O moço, além de estar dirigindo, estava com a janelinha aberta. Seu erro maior foi esse: A janelinha aberta. Então, estava parado no farol a debater idéias com uma conhecida sua, Míriam Minnibounger, quando viu um amarelinho( não confundir com um amarelão, aqueles que se foram de Moscou). O amarelinho, que não é bobo nem nada, olhou para ele e fêz o clássico sinal:
--Top top.
Marcos, Júpiter, cónscio de que o amarelinho não era amarelão, como ele pensara que fosse, foi mal-educado: Mostrou a língua. A janelinha aberta! Marcos sentiu a friaca invadir-lhe o intumescido apêndice que matracas usam à beça e que os ditos linguarudos exercitam sempre que podem à s suas costas. A língua de Marcos ficou dura e gelada imediatamente. A seguir, consta o que falou o infeliz jupiteriano Marcos:
--Caalho, inha íngua ongelou, acete.
--Hã? Que foi? Não entendi amor.
--O aaelinho me ultou, aaralho, e eu us a ingua pra ora...
--O Aecinho te insultou e você jogou o baralho na nora?
--ào ãaaaoo óo acete...A íngua ongelou, aralho...
E seguem-se enxurradas de palavras chulas congeladas de Marcos Júpiter Ding Dong. O idiota ficou nervoso e, vendo que a multa era inevitável, resolveu então encostar a cabeça na janelinha, ao que sucedeu-se imediata aderência de sua já maltratada e sofrida peça bucal ao vidro gelado .. Tentou arrancar a cabeça de perto da janela mas era tarde, São Paulo é cruel com os ineptos. A namorada Miriam já não entendia os uivos do raivoso Marcos, que quanto mais salivava, mais se comprometia, pois que a saliva congelava ao contato com o gélido ar paulistano.
O amarelinho multava Marcos e mais uma meia dúzia de imprevidentes falastrões. Não notou que Marcos desviava seu carro para a calçada; só viu que algo acontecia quando o carro de Ding Dong ficou emborcado na guia.
Aproximou-se do automóvel e lá estava Ding Dong, grudado à janela e com o dedo do meio levantado, congelado no instante mesmo em que a ofensa se iniciara.
--Isso que dá abrir a janelinha no frio de São Paulo.
IV.
Televisão chiando, algo como um gol ou um noticiário. O mundo em dó sustenido, a voz em fá reprimido, o chiado em si bemol, esse é o eterno drama de se ter um ouvido musical. Ouvido total, dizem, total. Eu me enxergo, Ã s vezes, como um morcego, mexendo o narizinho em direção a sons nunca dantes navegados nesse caos absoluto que o mundo reserva a todos. Queria ter com o órgão olfativo a mesma precisão que a tem meu ouvido musical. Não posso passar em um farol, plec plec plec, lá está o timer aguardando a música dos passos sobre a calçada, ou correndo nos pavimentos esburacados da cidade desperta.
Esta cidade, multípede mulher pelada que se expõe nua de manhã abaixo do sol que se esconde em brumas cinzentas de inversões carbonadas. A cidade que exala seus sais e miasmas dos pàntanos que a cercam e que realimentam seus ciclos feéricos e voltaicos. Esta multidão que murmura sozinha seus cantos escuros, em casas escuras de um mundo escuro e de chantagens roucas. Eu posso ver cada língua intumescida pelos roncos das janelas fechadas dos edifícios, posso ouvir um som colorido na casa da menina liberada, posso ouvir os cupins roendo as árvores que no verão vão cair na chuvarada.
--Impressionante, o senhor viu?
--Não.
Não, eu decididamente não vi, o garçom olha para o alto e todos murmuram, como se possuídos pela luz violácea que sai da tela esbugalhada no aparelho ainda de tubo catódico. O chiado diz que saíram treze.
--Treze?
--Quem foi que saiu?
--O senhor não viu?
--Não.
Meu humor se modifica com as chantagens diárias a que somos submetidos. Nas contas, dos bares, nas ruas, nas multas, nas contas. Tenho um chumaço delas guardado no bolso. Posso ouvir a intensidade das dobraduras e estalidos do papel timbrado: "Pague, ou..."
--Chega!
--O que foi, senhor?
--Vai mais uma dose, Júnior.
--Mais uma pro Maestro aqui.
E me preparo para sair, ouvindo longamente o rangido das solas de sapato, o estalar das cartilagens, a melodia dos ventos internos, o piano dos dentes rangendo. A música, ah, esse ouvido total, eu, o Maestro de meu corpo, esse Templo de Delfos, eu, andando como um gigante decaído.
E lá se vão os meninos, todos os treze, para casa.
VI.
Falamos de resgates; o resgate dos sonhos submersos nas profundezas infinitas de catedrais escondidas no sumo dos mares revolvidos da história. Também podemos falar de partos, partos renovados e renascimentos: Olhar o sol pela última vez, como se fosse a primeira e pela primeira vez como da última vez que fosse.
Comovente.
Renascer a plenos pulmões, num parto a fórcipe do escuro de uma grota, em ondas de espantosa nitidez. Antes, ali, o medo; agora, aqui, a certeza de se saber vivo. Vivo, latente, pulsante, atuante. Comovente.
Falamos dos resgates que a vida nos dá e dos futuros que certamente há em sementes de amor, por toda parte. Não falamos sobre o que estiola, falamos sobre o medo do abismo e da sofreguidão das paixões que se eternizam num beijo puro, prolongado, cheio de brilhos nos olhos.
Falamos sobre o amor comovente que move nosso mundo, nas diversas espécies de amor que têm como pano de fundo a Natureza.
Resgates de amor, resgates de paixões aprofundadas, o medo da dor suplantado pela força dos amores infinitos, a certeza da saída esperada, o gesto que é a pura ritualização do impossível, os olhos do bebê e do mundo todo.