Certa noite tive um sonho estranho. Nele, eu acordava para ir trabalhar, tomava café, fazia a barba e me trocava, como faço todas as manhãs. Foi quando sai de casa que as coisas começaram a ficar diferentes, não sei bem como explicar, mas havia algo estanho no ar, não se ouvia nenhum barulho, nem um carro, nem um pássaro, nada. Olhava para as casas da rua e me parecia que todas estavam abandonadas, as folhas das árvores se moviam suavemente, com uma brisa sem som. Próximo ao banco da praça, um cachorro todo encolhido, tremendo de frio (eu não sentia frio), me encarava seus olhos negros e tristes.
Ao chegar no ponto de ónibus, comecei a ficar preocupado, não havia ninguém na avenida, nem um carro passava em ambas as mãos. Uma densa neblina impedia-me de enxergar além de cinquenta metros. Estava olhando na direção em que costumava vir o ónibus, quando este surgiu do meio da neblina, devagar, sem emitir nenhum som.
Dei sinal e o ónibus parou. Quando subi olhei para o motorista e me toquei que ele era a primeira pessoa que eu encontrara naquele dia. Foi então que aconteceu... ao olhar para o motorista, conseguia ver toda sua vida passar pela minha cabeça em um piscar de olhos. Vi as intermináveis noites em que ele ficava bebendo cachaça em bares sujos, rindo de histórias indecentes. Vi ele voltando para casa cambaleando, com uma terrível dificuldade de se manter em pé. Vi a aventura que era tentar achar o buraco da fechadura de sua própria casa. Vi ele vomitando no quintal e via o olhar triste de sua mulher e o olhar de repugnància de seus filhos. Vi o dia em que ele dera uma bofetada em sua mulher sem ao menos saber porque. Vi sua mulher indo embora com seus filhos e vi as lágrimas escorrerem em seu rosto quando ele estava sozinho. Sentia toda a amargura deste homem, toda desilusão de toda uma vida perdida, afogada na bebida.
Sacudi a cabeça para livrar-me de tais pensamentos e fui em direção à roleta. Quando estendi a mão para dar o passe ao cobrador, aconteceu de novo. Vi o cobrador, ainda garoto, chagar na cidade segurando fortemente a mão de sua mãe. Vi ele olhando sua mãe trabalhar de faxineira para que eles pudessem comer alguma coisa. Vi ele passar toda sua adolescência pulando de um emprego para outro, e dando quase todo seu salário para que sua mãe conseguisse pagar o aluguel de um apartamento que era só sala e banheiro. Vi ele segurando a cabeça de sua mãe, que não podia mais trabalhar pois estava muito doente. Sentia seu desespero quando gastava todo seu salário comprando remédios para sua mãe. Sentia a dor da fome em seu estómago e a solidão de alguém que nunca teve o amor de outra pessoa sem ser sua mãe.
Passei apressadamente pela roleta e dei graças a Deus quando notei que havia apenas uma pessoa no ónibus, um senhor de idade, sentado em um dos bancos do meio ao lado do corredor. Tentei não olhar para ele apertando o passo até o fundo do veículo em movimento, mas do canto do olho percebi que ele estava com a cabeça baixa e que segurava um porta-retrato entre os dedos. De onde estava, podia ver claramente a foto do porta-retrato, era a imagem de uma senhora, com bochechas rasadas e sorriso simpático. Então as visões recomeçaram, vi o velho e a senhora passeando de mãos dadas em um parque. Vi os dois abraçados, sentados juntinhos na varanda de sua casa, trocando juras de amor em uma tarde fria de inverno. Sentia o amor que o velho senhor sentia pela mulher, o mais puro e lindo amor. Vi ele olhando para a mulher na cama de um hospital, e aproximar seu rosto do nariz da mulher para sentir seu último suspiro. Vi ele de pé, sozinho, olhando para um caixão que descia em um buraco escuro.
Olhava com pena para o velho com aquele lindo retrato em suas mãos. Notei que uma gota de lágrima pingara no centro da foto e escorria lentamente.
O ónibus parou em um semáforo, só que não havia carro algum no outro sentido. Olhei para o lado e, da calçada, um mendigo olhava fixamente para mim. Desviei rapidamente o olhar e tentei pensar em alguma coisa para que as imagens não voltassem. Respirei aliviado quando o ónibus recomeçou a andar.
Minha parada chegou e dei o sinal. Desci pensando na loucura que tinha acontecido e no sofrimento daquelas pessoas, quando um garoto maltrapilho segura no meu braço pedindo trocado. Olhei para o rosto sujo do menino e as imagens se formaram em minha mente. Vi o garoto chorando em um beco escuro agarrado ao corpo inerte de sua mãe. Vi seu pai abusar sexualmente dele, dando-lhe socos nas costas cada vez que ele reclamava de dor. Sentia toda sua angustia e desespero quando tentava dormir sob céu aberto, toda carência e solidão de uma criança que não tem ninguém que lhe dê carinho, que lhe diga uma palavra de amor. Isso foi demais para mim, retirei bruscamente a mão do menino de meu braço e sai correndo pela rua deserta. Fechava os olhos e pensava: Meu Deus, é uma criança, apenas uma criança.
Continuei correndo até perceber que não havia mais nada ao meu redor. A cidade havia desaparecido. Estava sozinho no meio de uma estrada e não tinha nada em lugar nenhum. Sentia uma grande angústia dentro de mim, como se a solidão fosse um bando de pássaros que botavam seus ovos em meu coração, e estes ovos cresciam dolorosamente.
Acordei pensativo deste sonho e percebi que tinha feito uma visita ao reino da solidão, onde as pessoas tristes e amarguradas vagam eternamente procurando uma razão para viver. Roguei aos céus para que não tivesse mais um sonho tão terrível. Pedi que a força da solidão ficasse bem longe de mim. Implorei para que me mandassem alguém, para dar um novo sentido à minha vida, para que eu pudesse lhe dedicar todo meu afeto e que me fizesse feliz. Para quebrar os ovos em meu coração e fazer com que os pássaros da solidão voassem para bem longe.