O moço ruivo, solitário em seu quarto, confere a hora: 22h.
Difícil explicar a causa da estranha sensação que percorre seu corpo nesse instante. Um calafrio, assim sem mais nem menos...
"Coisa incómoda!" - resmungou.
"Cena banal, procurar dormir mais cedo. Que diferença faz este súbito interesse pela cama?" - acrescentou.
Certas reações íntimas ficam nebulosas, quando a pessoa tenta controlar situações irreversíveis. Esquecendo-se que as coisas são como são. Aos poucos, o subconsciente denuncia a manifesta intenção de ignorar a realidade dos fatos. E fornece novas imagens para a memória.
Ao se dar conta da importància do momento, o jovem começa a matutar:
"O problema...Problema?".
Talvez não seja certo referir-se assim a circunstàncias especiais. Simplesmente, algo previsto, nada mais que isso. No entanto, é assustador saber que o instante aguardado está chegando. Será amanhã cedo. Uma dormida e pronto. Ao romper da aurora...
Ele ajusta o rádio-relógio, companheiro de muitas jornadas. Não há como sair dessa. Perder a hora, nem pensar.
Sentado na cama, observa a fumaça do derradeiro cigarro. Quem diria... Está tão próximo... Uma noite de sono e pronto! Logo de manhã...
Uma estranha coincidência. No programa "Sucessos Eternos", da Rádio Jovem Luz de Araçatuba, uma antiga gravação de Roberto Carlos... faz detonar o coração do moço:
- "Amanhã de manhã. Vou pedir..."
"Minha nossa!". - repetiu o ruivo. "Vai ser mesmo amanhã de manhã!".
Apagou o cigarro e a luz. Encostou a cabeça no travesseiro. Logo percebeu que teria dificuldade para conciliar o sono. Sentiu naquele exato momento as coisas já automatizadas, encaminhando-se celeremente para o ponto determinado.
"Até amanhã de manhã, nada mais resta fazer!". - ponderou. Nenhum fato novo mudando esse curto espaço de tempo. Entre dormir e despertar, para essa importante passagem da vida.
Uma vez mais procurou desembaralhar as idéias.
"Quanta gente, nesta mesma noite, enfrenta situações análogas!". - refletiu.
Alegrias, tristezas, esperança, saudade. O relógio do tempo disparou. Nada mais parece capaz de deter a marcha dos ponteiros. Correndo para o fim desta noite. Só isso conta. A própria vida representa estar garantida até amanhã. Sem nada para atrapalhar a certeza desta espera.
"Quando amanhã chegar, logo de manhã..." - suspirou.
Derivando a linha de raciocínio, lembrou-se do trecho de uma crónica de José Simão, da Folha de S. Paulo, assim: - "Pão-duro não é a dona Armênia. Pão-duro é aquela perua recheada de dólares que foi para um motel e cantou para o amado amante aquela canção de Roberto: Amanhã de manhã. Vou pedir UM café pra nós dois. Rá-rá-rá... "
"Essa é muito boa!". - admitiu o ruivo. "Um café para dois... Nunca havia reparado nesse detalhe".
Porém a música realçou seu dilema.
"Se ao menos fosse igual à outra, que diz: Amanhã, talvez. Mas não. Vai ser amanhã, mesmo. Logo de manhã..."
Respirou fundo.
"Sabe de uma coisa? Vou dormir. Jamais conseguirei mudar a ordem dos acontecimentos. Amanhã cedo estarei pronto para o que der e vier!".
Na escuridão do quarto, olhou para um ponto na parede, onde sabia estar o retrato da sua amada,
"Gostaria que você estivesse aqui comigo, nesta noite especial. Mesmo assim, boa noite amor. Até amanhã. De manhã..."