Nas ruas, um silêncio assustador. Não se via ninguém. Mas havia pessoas. Do nada surgiam encapuzadas, armadas e com muito ódio prontas para o ataque. Não esperavam anoitecer. A qualquer hora era possível ver uma casa incendiada. Ou mais. Alguém sendo torturado ou morto como um animal. Depois, o silêncio novamente. Timor Leste, setembro de 1999. A nova nação, que ganhara independência da Indonésia depois de um plebiscito em 30 de agosto, acabando com 25 anos de dominação, vivia sob escombros e medo. Os timorenses que não conseguiram fugir para as montanhas se escondiam em suas casas. Ou tentavam. A capital Dili foi cenário de cenas selvagens. Muitas, vistas pelo mundo inteiro através da TV. Nina assistiu tudo ao vivo, pelas frestas de sua janela. Seus avós rezavam e pediam um pouco de paz. Uma morte rápida sem sofrimento era o suficiente. "Vamos para a casa do Xanana", gritavam os soldados indonésios. Xanana Gusmão é um dos heróis da resistência timorense. Em 1975, a ex-colónia portuguesa no sudeste asiático foi invadida pelo exército da Indonésia. Houve conflito armado mas as guerrilhas locais não aguentaram muito tempo e sucumbiram ao comando do invasor. Xanana e seus soldados se esconderam nas montanhas. Estavam na ilegalidade até que em 1992, o líder da Frente Revolucionária de Timor Leste Independente (a Fretilin) acabou preso.
Priscila Maria Gusmão dos Santos, a Nina, é sua sobrinha. Por isso, a menina de 20 anos, assim como seus avós, era um alvo. Um troféu para os guerrilheiros. "Enquanto eu olhava para a janela, ouvia os soldados falando de meu tio.Meu coração gelava a cada segundo. Minha avó me chamou para rezar. Eu hesitei mas fui. No instante seguinte, um barulho de tiro. Uma bala acabara de destruir a nossa janela. No lugar que eu estava", lembra. Na parede, ficara a cápsula da bala perdida que deveria tê-la matado. "Guardei em minha mala como uma relíquia de vida. Mas a perdi porque nossa casa foi incendiada depois. Eu e meus avós só tivemos tempo de correr com a roupa do corpo. Eu estava viva, porém", explica. Era o dia sete de setembro. Não havia mais o que se fazer em Dili. Nina e seus avós partem para as montanhas, assim como fizera seu tio, para tentar encontrar o resto da família.
O trio perde a noção do tempo. Caminham horas e encontram vários acampamentos de refugiados. Mas nada de achar sua mãe, Armandina Gusmão (irmã de Xanana), o pai, Gilmar dos Santos, e os quatro irmãos. "Andamos muito. Não sentia meus pés no chão. Parecia tudo um pesadelo que não acabava", conta. Nina e os avós pararam num vilarejo próximo ao topo de um morro. Há uma igreja no local. Nina queria rezar. Depois de tantos dias no mato se esquecera de agradecer. Afinal, ainda não havia enlouquecido. Ajoelhada aos pés de uma santa que não lembra mais o nome estava sua mãe. "Ela chorava muito. Quando me viu parecia que não acreditava. Achava que eu estava morta ou nas mãos dos soldados sendo estuprada", revela. Sem ter o que comer, a família, agora reunida, resiste com a ajuda de amigos. Que tinham muito pouco o que ofecerer.
Por duas semanas permaneceram escondidos como ratos, como Nina não cansa de repetir. Ao retornarem, tristes constatações em meio a um sentimento de liberdade esquisito. Eram livres mas não tinham nada. A casa da família Gusmão, como todas as outras da mesma rua, estava destruída. Mantimentos comprados anteriormente foram roubados. Dona Armandina sentou e chorou novamente. Nina, sorriu. "Tínhamos as paredes. Tínhamos forças para recomeçar. Os indonésios foram embora. Timor estava de pé como aquelas paredes de nossa casa", explica. A vida voltaria ao normal. Ainda em setembro, Xanana Gusmão acabou libertado. A Organização das Nações Unidas definitivamente assumiu o comando da fase de transição que levará Timor Leste ao patamar de uma nação. Seu Manoel, avó de Nina, morreu em dezembro de 1999, vítima do coração mas sentiu o cheiro da liberdade, ao menos.
Nina cuida agora, com outros oito jovens, da Biblioteca Xanana Gusmão, que foi criada em junho de 2000. Quer terminar a faculdade de contabilidade. Faltam ainda dois anos e provavelmente serão concluídos em Lisboa, Portugal. Sem saber, no entanto, segue os passos do tio guerrilheiro. "Não faço política. Não gosto. Quero apenas tentar mostrar aos timorenses que podemos ser um só povo. A leitura é um passo para isso. Quanto aos indonésios, não tenho ódio deles. Só não entendi o por quê de tanta violência. Que cada um siga seu caminho", finaliza.
ENCONTRO COM O GUERRILHEIRO
Nina não tinha mais que 11 anos quando foi apresentada a seu tio. Sem saber, é verdade. As visitas de Xanana Gusmão aos seus familiares eram sempre clandestinas. A menina nem imaginava porque sua mãe, avó e tias, do nada, se colocavam a correr desvairadas a arrumar a casa. Nina achava que era aniversário de alguém. "Eu era muito bobinha", relembra. Xanana chegou naquela tarde sem fazer alarde, como sempre. A choradeira chamou a atenção de Nina. "Parecia um velório. Meu avó chorava como um menino. Aí, vi aquele homem de barba e despenteado. Ele se parecia com a minha mãe", conta. Xanana ficou empolgado com a sobrinha que mal conhecia. Colocou-a em seu colo e começou uma breve entrevista. "Você sabe quem sou eu?", perguntou. A garota arriscou. "Xanana?" O bate-papo entre os dois continuou animado. "Não lembro do que falamos. Só sei que virei para ele e disse Tio, você é mais bonito nas fotos . Todo mundo caiu na risada. Eu não fazia idéia do quanto aquele homem era importante para nosso povo", explica.
Nina ficou feliz com a decisão do parente em abandonar a idéia de ser o primeiro presidente do Timor Leste. "Me orgulha toda a sua luta mas para assumir um governo é preciso experiência. Ele não tem e agora, mais do que nunca, está na hora de nossa família ter um pouco de paz", espera.
REVOLTA
Quando os indonésios partiram de Timor em setembro de 1999 muito pouca coisa deixaram de pé. Exército e milícias fizeram questão de mostrar todo o seu rancor com bizarras cenas de selvageria. Hospitais, escolas, casas. Para quê deixar inteiras coisas que nós fizemos? Era o que pensavam. "Eu os odeio. A Indonésia conseguiu mudar o povo de Timor. Instalaram o ódio entre nós. Muitos perderam o orgulho de ser timorense. Os colonizadores fizeram bem seu serviço", revolta-se Armandina, de 54 anos. A mãe de Nina mostra um discurso totalmente diferente da filha. Ela, que lutou ao lado do irmão contra a invasão em 1975, não consegue perdoar. "Vi muitas coisas ruins nesse tempo todo. Não dá para apagar". Armandina nunca se formou mas dava aulas em Dili. Gostava de estar ao lado da garotada. Aproveitava também a escola para transformá-la num centro de resistência. Fazia questão de contar a verdadeira história aos jovens timorense. "Chegamos a produzir panfletos. Tínhamos que mostrar de alguma forma que não gostávamos dos indonésios aqui".
Claro que tanta rebeldia não passaria sem ser notada. Ficou famosa a frase entre os indonésios de que onde havia um Gusmão, havia problemas. Armandina e seu marido sempre foram perseguidos, eram detidos mas sempre libertados. Por isso permaneceram em Dili. Eles acreditavam que a polícia estaria atrás apenas de Xanana. Em outubro de 1992, o casal acabou preso. Sem direito a apelação foram condenados como subversivos. "Queriam levar meus filhos também. Implorei para que os deixassem fora disso", relembra. Gilmar e Armandina foram separados na cadeia. Vendados, os dois seguiam para intermináveis horas de depoimento. Assim foi por cinco meses. "Não fui torturada porque tive coragem de enfrentá-los. Na primeira noite presa arranquei as vendas dos meus olhos e encarei um por um. Eles se assustaram. Não colocaram mais a mão em mim. Eram uns covardes", fala. O marido não deu a mesma sorte. A escuridão daquele momento ainda faz Armandina chorar. "Ele sofreu muito. Todos sofremos. Fica difícil perdoar alguém que te machucou", confessa
Dois anos depois do referendo que transformou Timor em uma nação, Armandina tenta retomar sua vida como professora. Faltam salas de aula e por isso ainda não há espaço para tantos educadores. O desemprego geral é a grande herança deixada pelos invasores. "Minha forma de ajudar é educar as crianças. Tentar plantar neles sementes de civismo", pretende. Ela no entanto confessa um sentimento inesperado: a infelicidade. Depois de anos lutando pela tão procurada liberdade, Armandina acha que não valeu de nada. "Me decepcionei com o meu povo. Lutamos tanto e agora não sabemos o que queremos da vida. Sinceramente, só mudamos de dono. Agora estamos a mercê das Nações Unidas. Tenho medo que o povo daqui sinta falta dos indonésios", critica.
A irmã de Xanana reclama da falta de participação dos timorenses nas principais áreas administrativas do governo transitório da ONU, que é chefiado pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello. Por não falarem inglês, acabam excluídos. "Estamos apenas assistindo. Não consigo me sentir livre desse jeito", completa. A eleição que definirá o nome do primeiro presidente do Timor Leste deverá ser em abril deste ano. Um parlamento com 80 deputados foi escolhido em agosto passado. Enquanto isso, as casas, escolas, hospitais queimados na retirada indonésia continuam lá como esqueletos lembrando aos timorenses que há muito o que se fazer. Muito.
GUERREIRO SEM ARMAS
"Nosso exército era malpreparado, mal-instruído e mal-armado. Não tínhamos chance alguma contra os indonésios. Até hoje, não entendo como consegui sair vivo daquela história toda", reconhece Guilherme da Costa, de 47 anos. Ele tinha pouco mais de 20 anos quando a Indonésia invadiu Timor. Com os amigos, resolveu se aventurar na resistência timorense. Pela primeira vez colocou as mãos em armas. Pela primeira vez, viu a morte ao seu lado quando um colega de infància caiu baleado em seu colo. "Sempre fomos um povo pacífico. Por isso fomos massacrados desde o começo. Éramos muito ingênuos e tínhamos a esperança de que outros países viessem nos ajudar. Ninguém apareceu e os corpos começaram a ser contados nas esquinas", explica. Guilherme viveu na clandestinadade até 1980. Enquanto os amigos caíam, ele continuava. "Estava com o corpo fechado", orgulha-se. Um dia, no entanto, as coisas deram errado. Chamado para invadir e roubar a rádio difusora de Dili, sob o comando indonésio, o rapaz acabou preso pela polícia. Novamente, a ingenuidade falou mais alto. "Nunca tinha assaltado nada. Tremia tanto que o meu coração parecia que ia sair pela boca. Foi um erro atrás do outro", desabafa.
Guilherme passou por várias prisões durante os sete anos em que esteve detido. Uma coisa, porém, era familiar em todas: a tortura. "Quando arrancaram a unha da minha mão senti uma dor tão grande que eu pensei que iria morrer. Apanhava tanto que quis em me matar para não sofrer mais. Nunca imaginei que conseguiria ser tão forte", fala. O ex-guerrilheiro confessa que ficava mais tranquilo quando ouvia seus companheiros gritando nas sessões de espancamento. Era uma espécie de código. O silêncio apenas confirmava que mais uma havia sucumbido. "Eles não são humanos. Eu vi o que os indonésios fizeram, ninguém me contou", revolta-se.
Quando foi solto, Guilherme encontrou um Timor diferente. Os guerrilheiros que sobraram viviam escondidos nas matas. As ações paramilitares haviam diminuído e reinava a mais absoluta paz, sempre comandada pela ditadura indonésia. "Os timorenses estavam cansados do sangue e das armas. Foi um período realmente de acomodação mas nunca deixamos de trabalhar no escuro. Eles achavam que tinham vencido mas estavam enganados", conta o hoje empregado de uma ONG, a Ação por Timor Livre.
O ex-guerrilheiro (de corpo fechado, como gosta de lembrar) comemorou a libertação de seu país em setembro de 1999. A euforia deu lugar, no entanto, Ã triste constatação de que seu povo está perdido, sem saber que rumo tomar. "Ainda estamos tateando. A liberdade é algo estranho para muitos de nós. O simples fato de poder andar na rua de noite sem ser monitorado é novidade para nossos jovens. Por isso não dá para pensar que está tudo bem só porque estamos livres da Indonésia. Esse foi apenas o primeiro passo".
PARTIDOS QUE DIVIDEM
A ajuda internacional que aportou em Timor Leste em 1999 trouxe consigo a malfadada classe dos aproveitadores. Assim como há gente querendo ajudar, não faltam aqueles que querem levar vantagem. Como o futuro país ainda vive sob intervenção da ONU nada pode fazer contra os desmandos de organizações, digamos, pouco respeitáveis. "Não dão empregos para o povo daqui e ainda cobram caro por qualquer serviço. Não era essa a ajuda que precisávamos", bronqueia Gilmar Exposto, 42 anos. Ele tem razão. A reportagem não ficou imune aos valores exorbitantes cobrados por australianos, principalmente. Um aluguel de carro, por exemplo, por dois dias, saiu pela bagatela de US$ 180. Um quarto com uma cama e pouco mais de seis metros quadrados tinha uma diária de impressionantes US$ 40. "Foi uma invasão que realmente nos pegou de surpresa", conta irónico o ex-político.
O que tira Gilmar do sério mesmo é quando o assunto passa a ser a política timorense. Mesmo garoto, ele fez parte da Fretilin e acreditava que seu povo estava unido naquele momento. Depois da saída da Indonésia, as coisas mudaram. "Hoje, além de todos os problemas que enfrentamos com os estrangeiros, vivemos uma crise partidária. Cada um quer puxar para o seu lado, a libertação de Timor. Não há mais cumplicidade entre as pessoas", declara.
Dentro da Fretilin, nasceram outros facções que com a independência se tornaram partidos. A briga pela primeira presidência do Timor, nas eleições que deverão acontecer em abril, divide o país. O líder guerrilheiro Xanana Gusmão já disse que não participará como candidato no pleito. "Os líderes partidários querem chegar ao poder com velhas ideologias. Por isso resolvi me afastar da política. Percebi que as necessidades do povo não estavam em primeiro lugar", confessa.
Gilmar também tem um histórico de torturas em seu passado. Ele, no entanto, se nega a comentar os meses nos cárcere. Quer esquecer tudo. Prefere os debates políticos inflamados à s cruéis lembranças. "A dor maior está na minha alma. Os pesadelos são só meus. Por isso não entendo essa disputa estúpida pelo poder em Timor. Parece que essas pessoas não aprenderam nada com quase 25 anos de dominação", desabafa. Mesmo com o discurso radical contra os antigos companheiros, Gilmar se diz um otimista. "Claro que sou. Veja essas praias lindas, a criançada brincando. Não tem como não acreditar num futuro", comemora. Para Gilmar, quando a ajuda internacional for embora, o turismo será a base da economia do novo país. "As pessoas descobrirão nossas belezas. E o passado? Chega, não precisamos mais dele".
AJUDA ESTRANGEIRA
Em 12 de novembro de 1991, 271 timorenses foram assassinados de uma só vez. O episódio ficou conhecido como o Massacre de Santa Cruz, nome do cemitério onde os crimes aconteceram. As nações do mundo inteiro ficaram indignadas mas não fizeram nada. Em setembro de 1999, depois de proclamada a autonomia em Timor, sete mil timorenses foram mortos por milícias indonésias. Não havia como fechar os olhos desta vez. A ONU enviou suas tropas para o lugar. Hoje, há cerca de 12 mil estrangeiros trabalhando na reconstrução do país, em todos os sentidos. Muitas agências pegaram carona na empreitada. A Japan International Cooperation Agency (JICA) é uma delas. Montou um escritório em Dili com cinco funcionários. Tamako Ito, de 31 anos, é a única mulher do grupo. Japonesa, Tamako trabalhou seis anos na JICA entre 1992 e 1998. Chegou a morar no Brasil nesse período quando aprendeu a falar português. Em junho de 2000, retornou a agência, desta vez para trabalhar no Timor. "Conheci a realidade deste povo em 1991 quando estava na Universidade. Nossos professores de português lutavam pela independência do país. Eles levaram alguns timorenses que sobreviveram ao massacre de Santa Cruz. Fiquei chocada com os relatos. No Japão, não tínhamos acesso aquela verdade", explica Tamako.
Formada em estudo luso-brasilero, ela chegou a participar de alguns grupos de discussão sobre Timor. Mas Tamako admite que era muito pouco. "Tinha que começar a trabalhar. Deixei meus ideais de lado naquele momento. Sabia que um dia, porém, poderia fazer algo útil para esse povo". Mesmo com o desejo de trabalhar no Timor, a japonesa relutou a aceitar o convite. Já estava casada (seu marido Shiguero também trabalha na JICA) e não se achava capacitada para enfrentar uma nova vida. "Levei dois meses para me decidir. Usei meu coração para aceitar e meu marido ficou ao meu lado sempre", lembra.
Em Timor, Tamako é a responsável pelo acompanhamento de projetos nas áreas de saúde, educação e reconstrução. Seu contrato termina em julho desse ano. A saudade de casa é grande mas ela deve prorrogar sua estadia no país por mais alguns meses. Engana-se, porém, quem acredita que ela se sente realizada. A burocracia que impera na nova nação a incomoda. "São muitas agências com interesses distintos. Por isso é impressionante o número de reuniões que temos por dia. O que acaba me afastando de um contato mais próximo com o timorense", desabafa. Seu discurso coincide com o de Dona Armandina. Para a japonesa, o governo transitório está lento demais. Em resposta, os estrangeiros em Timor já não são vistos com tão bons olhos pelos moradores, principalmente pelos mais jovens. "Ninguém gosta de ficar só vendo. Eles querem participar do processo mas como não falam inglês acabam descartados. Aqui não é Timor, não me sinto em Timor", confessa. O telefone toca estridente. A entrevista tem que parar. Tamako é chamada para mais uma reunião. São seis da tarde de um domingo e o encontro não tem hora para acabar.
PESADELO QUE NÃO ACABA
A data é inesquecível. No dia 12 de novembro de 1991, Timor Leste apareceu para o mundo depois de um longo esquecimento. Norberto Gonçalves dos Santos, de 45 anos, ainda tem pesadelos com aquela tarde. Tiros por todos os lados. Um barulho infernal. "Precisou acontecer aquilo para que o nosso país conseguisse ser livre hoje", conta. Estranho? Norberto acredita que o massacre de Santa Cruz foi o maior erro da Indonésia em seu período de dominação. A morte de mais de 200 pessoas, entre crianças e velhos, chamou a atenção de toda a sociedade e mostrou que Timor vivia um regime sangrento. "Foram 15 dias de violência e os dois lados do conflito estavam para explodir. No dia 28 de outubro, um jovem timorense foi morto por um policial indonésio. Queríamos fazer do enterro do rapaz um ato de contestação contra o regime. Preparamos uma missa e depois aconteceria uma procissão até o cemitério de Santa Cruz. O problema é que um soldado indonésio acabou esfaqueado e eles quiseram se vingar", lembra.
A correria foi generalizada, rajadas de metralhadoras e os corpos caíam um atrás do outro. A manifestação pacífica, num primeiro momento, virou uma tragédia. "No início, o governo confirmou que apenas 19 pessoas tinham morrido. Depois aumentaram para 50. Mas, todo sabemos que o número ultrapassa os 200", explica. O erro estratégico do exército indonésio explodiu no mundo inteiro. Pela primeira vez em 16 anos de dominação, na época, se via o que de fato acontecia naquelas terras. "Uma pena que os outros países levaram tanto tempo para perceber isso", lamenta.
Norberto sabe do que fala. Ele esteve refugiado nas montanhas timorenses entre 1975 e 79. Não colocou a mão em armas mas trabalhou na área política da Fretilin. Quando voltou para Dili, começou a trabalhar numa organização não-governamental americana. Sua função era clara e bizarra: contar o número de timorenses mortos desde a invasão indonésia em 1975. Por causa disso acabou preso duas vezes. "Alguém precisava fazer esse serviço. Antes, nós nos adaptamos ao sistema. Fazíamos o que eles queriam porque éramos muito vigiados, mas depois, quando a poeira assentou, caímos na clandestinidade e começamos a fazer realmente o nosso trabalho", conta. Os relatórios de Norberto apontam um número impressionante: 200 mil pessoas teriam morrido nesse período, a maioria por falta de comida e remédios. Detalhe: a população atual de Timor não passa dos 850 mil. "Os indonésios atrasaram o desenvolvimento de nosso país em 470 anos. Eles destruíram tudo o que os portugueses fizeram em sua história e depois não deixaram nada do que construíram em pé", explica. Norberto é casado e tem seis filhos. Em sua casa simples, de pau a pique, ele ensina a molecada algo inesperado. "Não temos que odiar um inimigo que já perdeu. Temos que seguir em frente. A ONU, porém, não pode deixar os criminosos impunes. Isso é o que conhecemos por justiça", espera sem mágoas. No entanto, apagar da memória aquele dia 12 de novembro é impossível.
SECA E ORGULHO
Na parede da casa de madeira de Fernando Martins, de 56 anos, estão penduradas as fotos de seus 11 filhos. Para o agricultor, que vive em Fatubícia, no interior do país, não há prazer maior na vida do que ver um rebento crescer. Como vive nas montanhas, ele e sua família estiveram afastados dos conflitos armados entre indonésios e timorense. Isso, no entanto, não evitou que a tragédia batesse à sua porta. Três de seus filhos morreram por falta de medicamentos. "Nós não vimos as balas da metralhadoras mas também não vimos mais remédios e comida", lembra ele, num português arcaico quase esquecido.
Ao limpar as lágrimas dos olhos, Fernando passa a falar com deleite de seu maior xodó, a filha Glênia de 19 anos. Ela faz parte do 1º quadro policial de Dili, capital do país. "Vê-la ali de uniforme, bonita como nunca, me encheu o coração de alegria. Glênia está fazendo a nova história de Timor", baba o pai-coruja. "Só não posso falar muito porque os outros ficam enciumados".
Se os filhos são as alegrias do velho agricultor, o mesmo não pode dizer de suas plantações. A única que rende algum dinheiro é o café. A temporada, no entanto, dura apenas três meses. Insuficiente para se guardar algum dinheiro. Para comer, sua família faz uso da pequena horta, que fica nos fundos do casebre. Quando a seca dá uma trégua, os Martins conseguem recolher banana e mandioca, a base da alimentação local. "Por isso somos fortes desse jeito. Criei todos os meus filhos assim, na base da banana e da mandioca". A chuva começa a cair com força na região e a garotada sai correndo para se proteger. Fernando faz o sinal da cruz. Ao menos a comida, não faltará nesse mês.
CARA DE BRASIL
A Cidade de Ermera fica a 100 quilómetros de Dili, no meio das montanhas. Seus moradores vivem num estado de quase miséria, com pouco dinheiro e pouca comida. A presença de um estrangeiro na região é um acontecimento. Muitas crianças sequer conheciam uma pessoa de fora. Inês Marçal de nove anos não bagunça como seus amiguinhos. No colo, ela traz a pequena Natalie que não deve ter mais que um ano. Conversar em português é impossível. Nas regiões mais afastadas da capital, o Tetum (idioma deixado pelos indonésios) é a língua oficial. Mesmo assim nos entendemos de alguma forma.
Inês está arredia. Fica com vergonha de posar para uma foto. Sai correndo. Para surpresa de todos, ela volta com uma camisa passada e os cabelos penteados. Mesmo tímida, Inês quer estar bonita. Meu guia confirma. É a primeira foto que ela faz na vida. É um momento tão especial como o aniversário. Os olhos negros chamam a atenção. Ela deixa o bebê no chão, se ajeita e sorri. Click. Num português esquecido, Inês apenas diz. "obrigado".
Hora de partir. Ermera fica para trás. Inês não quer se despedir. Agora chora como menina que é. De sua casa, o sucesso de Leandro e Leonardo é como um recado: "Não aprendi dizer adeus".