Há, sempre, momentos em que julgamo-nos sozinhos no mundo. Sem alguém que compartilhe ao menos nossas preferências. Mas alguém sempre lembra.
Havia aquela professora hermética e politicamente correta, a professora de Português (ops, não; de Língua Portuguesa) da faculdade. Faculdade: relação impessoal mestre/aluno, apenas seis meses, um ano ao máximo de contato - e rara aproximação profunda, em consequência. A professora de português não fugia à regra; já estava lá, com os alunos, há quase um ano. Mas muito restrita. E extremamente, mas, no entanto, aparentemente, superficial.
Era aquela professora, que acreditava que as mulheres eram, todas, maquiavélicas. "Isso, segundo Freud, é projeção", diziam alguns alunos mais estudados. Nada muito concreto. Aparentemente sozinha e muito profissional, a tal professora não parecia ser significativa para a carreira acadêmica dos alunos. Não lhes prejudicava; não lhes tornava melhores.
Mas, veja você, superficialidade depende do ponto de vista. Uma flor, por exemplo: deveria ser de extrema importància para alguém sensível como Mozart, ou até Max Cavalera, ainda que de maneiras diferentes; mas poderia ser inútil para um pedreiro que buscasse construir uma edifício sobre suas raízes. Do ponto de vista de um aluno, uma professora que fala a norma culta da Língua Portuguesa, puxando o "s", e tagarelando quase sem parar é apenas irritante. E ele acaba nem se lembrando do que diz a ela ou do que faz na sua presença. Afinal, no seu modo alheio de ver, sua relação é superficial.
E assim, se seguem os dias em que pensamos que somos nada para o mundo, apenas partes da multidão que segue com a ajuda do vento. Mas alguém sempre lembra. Lembra do que somos, do que gostamos, do que falamos, a despeito de nosso próprio despeito com a realidade e com as pessoas à nossa volta - todas elas, do gari ao chefe. Mesmo uma louca professora de português da faculdade se lembra.
Ela sabia de alguma forma, que uma de suas alunas era apaixonada pelas músicas do poetinha Vinícius de Moraes. E não hesitou em trazer uma delas, "Tarde em Itapoã", para a tal jovem em uma das aulas que tratava sobre canções. Especialmente para a aluna. Para mais ninguém. Relação superficial, maquiavélica? Depende do ponto de vista. Quem prefere ignorar, continua sozinho. Do contrário, sabe que pode ser lembrado. Mesmo que seja por quem menos esperava.
Imagine, a professora se deu o trabalho de procurar o CD que continha a tal música porque lembrou de uma aluna, dentre as muitas que tem. E insistiu para que a aluna ouvisse. Alguém sempre lembra. A aluna nem pensava, vivia mais uma dia corriqueiro de inércia do vento. Mas, puxa, seu dia, ao final, mudou. Alguém sempre lembra. E o vento, aos poucos, acaba não sendo mais a Roda da Vida.