Os ruídos da noite ecoavam nas paredes da casa, numa mistura de grilos e rãs a chorar em ladainha. Ouvia-se também o contar incessante do relógio da parede, lento, como que querendo parar a qualquer instante. A Lua ocupava todo o pouco espaço aberto da janela em sua frente, inundando de luz todo o seu rosto e corpo. A iluminação costumeira, repleta daquele prateado quase metálico fora substituída por um certo amarelo, impregnado na visão como se o dragão desse uma última baforada de fogo antes de submeter-se à espada de Jorge.
O porão estava escuro. Nem mesmo a porta para a rua ou os três palmos de altura da janela lhe conferiam iluminação. Do mesmo modo se encontravam os outros cómodos do sobrado. A luz sequer chegava a toda extensão da cozinha, peça dos criados e, por isso, atrás, bem ao fundo do prédio. Apenas a pequena criatura sob a mesa da cozinha se mantinha frente aos raios que atravessavam a janela. E de tal forma imóvel que, Ã passagem de qualquer outro ser vivente por ali sua presença ficaria desapercebida. Ninguém passaria, ainda assim nem um músculo ou piscar de olhos, só a respiração, rápida, ofegante, fazia aparecer, mesmo com o calor, um vapor opaco da boca semi-aberta.
Ao menos o porão estava fechado, isolado. O único acesso pelo interior da casa ficava na despensa: um alçapão que o Senhor trancara a chave antes de saírem. A porta da frente da casa também fora bem fechada, não havendo maneiras de entrar sem forçar. A viagem demoraria algumas semanas, por isso todos os criados tinham sido levados. Ninguém imaginara ter esquecido a pobre criança embaixo da mesa. Nem nome possuía, chamavam-na de Negrinha. Filha de uma jovem escrava morta durante o parto. A Senhora teve pena e permitiu aos empregados, por pedido do marido, criá-la. Dava-lhe de comer e dormir, porém sem demonstrações quaisquer de afeto, evitava dirigir-lhe a palavra e, provavelmente, ignoraria sua ausência durante a viagem. Apenas o Senhor lhe fornecia algum carinho e cuidava de sua educação. Dizia que se tivesse uma filha gostaria de vê-la ler e escrever.
O resto do tempo passava com os criados da casa, ajudando nos serviços. Só detestava ter que ir ao porão, tanto que, se houve algum momento em sua ainda jovem existência que seus pés tocaram o subsolo da casa, ignora-se. Exceto o dia de seu nascimento, já que a negra sua mãe, em vez de dar a luz na senzala, mo todas as outras, o fez sozinha no porão, morrendo com a filha nos braços pouco depois. E a criança só sobreviveu porque seu choro chamou a atenção do Senhor. Ela sabia disso tudo desde muito cedo, quando aos seis anos ouvira duas escravas conversando. Também sabia de outras histórias sobre o porão, como a do porquinho que uma vez entrara lá e jamais saíra. O mesmo com as vacas e as galinhas que se atreviam a adentrar suas portas. Os próprios escravos, quando voltavam traziam as marcas da luta em seus corpos. Desconhecia o que lutava com eles e desejava continuar sem conhecer. Os senhores da casa eram os únicos a passar por lá livremente.
Pensava nisso enquanto o sono vinha pesar-lhe as pálpebras. Queria que o senhor viesse buscá-la. Ele poderia salvá-la do porão. Como poderia tê-la esquecido, justo ele. Quase dormia quando, Ã s badaladas do relógio saltaram-lhe os olhos esverdeados sob o então amarelo da lua. Moviam-se rapidamente, de um lado para outro, acompanhando a respiração ainda mais ofegante. Cavalos passando na rua e um novo salto. Ao fim das badaladas estacaram os cavalos. Também calaram as rãs e os grilos. Só o relógio prosseguia e quando novamente uma rã atreveu-se a espalhar seu choro pelo ar o estrondo do alçapão fez explodir o grito estridente da Negrinha. Paralisada, gritava incessantemente enquanto a luz de um lampião mostrava a figura enorme vindo em sua direção. Parou de gritar e veio o choro em meio a soluços. O corpo magro com pouco mais de um metro cortou o ar erguido pelos braços do homem pousando em seu peito e seguindo novamente em direção ao porão, enquanto o choro ia, aos poucos cessando.