"Minha vida não foi um romance...
Ai de mim... já se ia acabar!
Pobre vida que toda depende
De um sorriso... de um gesto... um olhar..."
-Mário Quintana-
Dize, espelho, se poderia eu ter amor a dois homens ao mesmo tempo. Não vês que estou defronte a ti, caminhando pra lá e pra cá, com mente e coração em desalinho? Dize se poderia eu conviver impunemente com o sagrado e o profano. Sim, eu. Sempre tão correta. Não mais, talvez, porque em breve serei uma mulher casada e aqui estou, totalmente entregue a tais pensamentos.
A nova casa onde vou morar, os filhos que terei, o vestido de noiva que usarei, está tudo planejado. Na noite em que a lua será confundida com um langoroso favo de mel, estarei nos braços de um homem maravilhoso, o homem que escolhi para envelhecer ao meu lado, para ser o pai das minhas crianças, amigo e amante de todas as horas, meu escudo, meu abrigo. Definitivamente.
Sim, eu.
Que bobagem. Como posso supor que... ora, não há nada de diferente, está tudo normal, como antes. Mentira! Mentira!
Ai!
Estou querendo enganar a mim mesma. Como sou vil! Droga! Por que esse temor? Deus, o que está acontecendo comigo?
Deveria ser só mais um dia de trabalho, só mais um bater de ponto no relógio sem tempo da rotina. Então ele apareceu. Ele e outros tantos em busca de conhecimento. E daí? Nada aconteceu naquele momento. Ao menos comigo. Não tinha de ter o raio da tal primeira impressão? Nada. Fui lá, fiz meu trabalho e nada. Ocorre, amigo espelho, que gosto de pensar que algo aconteceu sim, mas que não percebi porque andava muito ocupada com qualquer coisa, trabalho, família, futuro, essas coisas.
Aparentemente ele nem me notou. Como se eu fosse lá grandes coisas. Porém, aos pouquinhos, ia descobrindo a essência daquilo que sou. Não que perguntasse diretamente, não era assim que acontecia. O danadinho simplesmente despertava em mim, inicialmente em ligeiras conversas, a vontade de falar de meus gostos, meus sonhos, meu passado. De vez em quando precisei chamar sua atenção porque ficava com o olhar meio que perdido, vagando por não sei onde. Engraçado, só agora me dei conta de que nunca lhe falei dessa minha realidade mais afetiva, desse relevante fato de ser eu uma mulher quase casada. Isso ele descobriu circunstancialmente.
Pouco tempo antes dessa descoberta, mostrei-lhe até umas fotos muito pessoais, minhas e da família. O que isso quer dizer? Não sei, mas logo fiquei conhecendo a família dele por meio de fotografias. De seu lado, tratava-me já com delicadas mesuras, lisonjas e mercês dignas de uma linda princesa. Quando a verdade fatal veio à tona, procurou se afastar. Eu, muito mal acostumada, de certa forma, encorajei-o a agir com os mesmos modos. Mas que bobão! Droga! Ele é muito trouxa!
Tinha de dizer que havia se apaixonado por mim desde a primeira vez que me viu? Tinha de dizer todas aquelas tolices romànticas? Tinha de ficar me enviando todos aqueles poemas? E pior, droga, tinha de se afastar de mim daquela maneira, quase em silêncio? Pudera! Como fui rude! Por que tinha de cortar suas asas tão cedo? Alguém diz que me ama e eu digo tudo bem, sei, olha, isso me ofende, tá, então, não digas, parece que não me respeitas, melhor esquecer tudo. Esquece.
Em um rasgo de dor e sinceridade ele disse... eu vou tentar... juro que vou tentar.
E pediu desculpas por tudo, desculpas por não ter sabido separar seu lado afetivo do nosso relacionamento estritamente profissional, desculpas por ter de alguma forma me ofendido, desculpas até por não ter sido original ao me colocar um apelido carinhoso e diferente, mas que era justamente aquele pelo qual minha família me chamava e pediu pra seguir só em seu caminho, porque só assim haveria de me esquecer, dizendo que não poderia mais ser minha companhia de todas as noites na hora de voltar para casa, que precisava de tempo e distància, que iria viver sua vida e deixar que eu vivesse a minha, que isso, que aquilo... e assim fez... desgraçado, filho da puta, como póde?
Sabe, espelho, ficou meio chato, ficou meio esquisito. Já éramos amigos e aqueles episódios não poderiam estragar tudo. Se é que se pode ser amigo de alguém que já disse te amar. Cedi um pouco e fui procurá-lo. Queria-o perto de mim. Ansiava por isto. Andava aflita com muita coisa e de repente tudo começou a dar certo em minha vida. Contei-lhe tudo que se passava, nos mínimos detalhes. Poucas vezes mais pude presenciar seu sorriso fácil, sua palavra amiga. Essa reaproximação foi só um jeito de lhe dizer adeus, de lhe dizer o quão ele era importante pra mim, porque minha atividade profissional logo estaria centrada em outro canto da cidade, longe dele. Dele, que até o último minuto ficou comigo. Dele, que se havia autoproclamado meu trovador.
Hoje, apesar do silêncio de estrela miúda que reina entre nós, somos amigos sim. Amigos.
Espelho, espelho meu! Consegues porventura reproduzir o vazio que existe em mim? Sei que não, tu não me prestas mais, e já aviso que em dez segundos haverei de quebrar-te junto à quela parede, porque há dez minutos estou defronte aos teus cristais, tentando acertar o penteado dos meus cabelos e não consigo porque em ti eu vejo unicamente não o meu reflexo... mas o do meu distante trovador.