- Sou. Mas sou também um sinal de novos tempos. Como sou sujo e pobre, vocês nunca me olharam durante décadas. Eu era inofensivo, uns roubos, uns assaltos mas, tudo bem... Vocês até me romantizavam... o Mineirinho, o Cara de Cavalo... Na época, era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, seca, desnível de renda... A solução é que nunca vinha... Os Mendes de Morais, os Lacerdas, os Negrões de Lima, os Chagas, os Brizolas... que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós éramos invisíveis... Quando havia um desabamento, algo assim, éramos, no máximo, manchete de jornal e motivo de angústia para uns intelectuaisinhos como você. Agora, arranjamos emprego na multinacional do pó... E vocês estão morrendo de medo... Danem-se... Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Há, há...
- Mas... a solução seria...
- Solução? A idéia de "solução" já é um erro. Não há mais solução, cara... Já olhou o tamanho das 450 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? O máximo que vocês podem fazer são esses movimentosinhos pela cidadania... Cadê os bilhões de dólares para uma "solução" profunda? Só que, agora, vocês não têm mais a grana... Está tudo reservado para manter a estabilidade fiscal, que pode ir para o brejo a qualquer momento... Vocês estão com um bode por fora e outro bode por dentro. O capital financeiro fora e nós dentro. E os bodes vão se encontrar no infinito sujo de vosso destino... Gostou da frase? Sou culto; ouve outra: "Capitalismo selvagem gera revolta primitiva." Aliás, tomara que quebre tudo... Vai ser mais fácil pra nós pilharmos vossas ruínas... há, há...
- Você não tem medo de morrer?
- Estamos no centro do Insolúvel, "mermão"... Vocês no "bem" e eu no "mal" e, no meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Vocês têm medo de morrer, eu não. Nós somos homens-bomba. Na favela tem 100 mil homens-bomba... É... Já somos uma outra "espécie", já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o "presunto" diário, desovado numa vala... Vocês, intelectuais, não falavam em "luta de classes", em "seja marginal seja herói?" Há, há... aí está... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Esse "parangolé" todo, né? Vocês deviam era expor a gente na Bienal, como "instalação"...
- O que mudou nas periferias?
- A gente hoje tem uma coisa chamada Poder... Por que transferiram o Beira-Mar para a Bangu 1? Pois é... lá ele manda... Você acha que quem tem 40 milhões de dólares não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro? Pelo amor de Deus... nego chama ele até de "doutor", tá ligado?
- Se você fosse polícia, agia como?
- Quer um "toque"? A burocracia policial segura tudo, por desorganização e de propósito. Nós somos uma empresa moderna. A gente não tem de arranjar ordem judicial, a gente não é dividido em municipal, estadual e federal; é tudo rápido, enxuto... Se funcionário bobeia, é despedido no "microondas"... Há, há... estamos ligados na tecnologia, na internet, nos armamentos sofisticados... E tem mais: se vocês tentarem acabar com a burocracia, com os atrasos administrativos, até se quiserem informatizar uma reles delegacia, vão dançar... sabe por quê? Porque a polícia "quer" o atraso... o atraso dá lucro... A polícia é feita de feudos, corporativa, delegados donos de pedaços da cidade... ninguém quer se modernizar, tá ligado?... É bom aquele clima de 1930, de carros quebrados, sem arquivos eletrónicos... Se impessoalizar, modernizar estraga a muamba... Além disso, estamos virando superstars da mídia. A imprensa dá idéias, sugestões, enche nossa bola do crime... Vocês estão nos dando uma ideologia, sem perceber... Já tem nego aí querendo armar esquema com a Al-Qaeda, podes crer... Outro toque: por que não pegam os "barões" do pó? Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidente do Paraguai nessa parada de armas e cocaína... Essa é que é a mina de ouro, nas fronteiras... Mas, não tem polícia pra enfrentar esse poder internacional, não... A gente é mixaria... A verdadeira Guerra do Paraguai vocês estão perdendo agora, tá ligado?
- Estão pensando no Exército...
- Ah... cara... Você acha que os generais vão querer acabar com aquele dia-a-dia dos quartéis, pra subir em morros de lama? Que isso, meu? Eles ficam jogando aquele basquete de tarde, marcham, tocam os clarins, cantam hinos... Mas, ir à luta com o PCC e o CV? Com risco de darem vexame? Pra quê? Eles dizem que são treinados para causas maiores, guerra profundas... Só se for com a Argentina... E também a gente já tem até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí... Já imaginou a gente daqui a uns dez anos? Pra acabar com a gente, só jogando bomba atómica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também umazinha, daquelas sujas mesmas... Já pensou? Ipanema radioativa? Bomba atómica é uma boa... Vocês arrasam tudo e depois as favelas se valorizam, viram bons terrenos para vender pros ricos... belas vistas... bons ares... podem até fazer Centros Culturais no Complexo do Alemão e na Maré... legal? Se não, a gente vai virar países estrangeiros... Vou fazer frase: "A miséria armada é uma outra nação, no centro do Insolúvel!" Gostou? Olha, meu chapa, só generais saídos da favela, da lama, com a mesma fome de vida e morte, com o mesmo ódio que nós temos, poderiam nos vencer... Nós saímos do lixo, não temos nada a perder... Pra vencer, vocês tinham de começar reconhecendo sua derrota policial e administrativa. A guerra é o reconhecimento do fracasso da política... É isso aí.... A bandidagem perdeu o respeito pela polícia... Agora, não tem mais jeito... Pra ganhar esta guerra, vocês têm de começar o Brasil de novo... Falei?