Um dia acordei incompleta, como ontem e antes de ontem... Acordei faltando um pedaço e ainda sangrando e não lembrando direito quando meu foi arrancado... E abri os olhos, sentindo dor, e não chorei ou gritei... porque essa dor estava comigo ontem e antes de ontem e não me lembro direito quando me foi arrancado...
Levantei, lavei o rosto, segurei o cabelo e me olhei no espelho procurando incessantemente por alguma cicatriz, algum órgão jogado pra fora, alguma fenda aberta respingando sangue, algum lugar de carne viva, vermelha, alguma bolha se formando cheia de pus depois de alguma queimadura ainda ardente, algum cheiro de carne podre, alguma garganta cortada, algum pulso aberto... Olhei no espelho e me vi, de novo, como ontem... Aquela menina de pele cadavérica de um branco fora do comum e cabelos não cortados há tempos e corpo mal tratado há tempos, olhos grandes e cansados... Tudo igual... Não via a ferida, mas sentia a dor... A dor que começou desde quando... Talvez desde sempre... E dei as costas ao espelho, fui me vestir e começar de novo o ontem, que foi, e será hoje e amanhã e eternamente repetido sabe se lá até o quê, perfeitamente igual e horrível por ser... E fui respirar a vida... Porque viver há tempos que não vivo... Eu só ando e respiro como se ainda tivesse algum ar bom para isso, algum motivo para transformar este oxigênio envenenado, nutrir o corpo e respirar, sem viver... E coloco as roupas, me escondendo, a ferida, o rosto. Qualquer sinal que deixe transparecer algo vivo em mim, algum resquício de gente... Tento esconder a dor e minhas partes amputadas e trocadas a força por carnes deformadas, transfiguradas e horrendas, sem reação, mas continuo a sentir fundo a dor, a ausência de algo, porque coça, irrita, sangra internamente, sugando cada parte de um organismo já tão sujo, de uma alma tão poluída... E eu choro sem derrubar uma lágrima salgada sequer pra correr o rosto e molhar a boca desidratada até desaparecer... Me faz querer fim, gritar já sem voz, arranhar as mãos arrancando um pouco de carne destas em desespero, segurar o pescoço e sentir o ar não passando por alguns segundos, sufocando de prazer... É o que tira meu sono e o que me faz escrever estas palavras quase perfurando com a caneta vermelha estrangulada pela força de meus dedos, este papel amassado que encontrei no chão do meu quarto tão mal iluminado... É o que me alimenta e me dá forças para dizer palavras sufocadas, uma a uma me esgotando, reconhecendo e assumindo o que escondo a cada dia e deságuo sozinha de noite, me dando os últimos suspiros para poder parar de respirar... É o que penetra minhas entranhas e brinca tão doce e cruelmente aqui dentro enquanto a dor me aperta forte até arrancar um sorriso... Corta minhas pernas, arranca fios do meu cabelo, revira dentro do meu estómago, e me dopa deixando a enxergar nada mais que trevas ilusórias dentre o negro de minhas pálpebras enfim livres da estafa de ver alguma coisa... É o que me faz querer cuspir e atirar palavras feias, esperando por resposta arguindo contra mim mesma e sentindo um amargo maravilhoso na boca por dizer coisas que não sinto e sentir coisas que não penso... É o que me faz querer a morte... apenas como um pedido de vida.