Aos quinze anos de idade, impressionavam-me os crimes hediondos que feriam as pessoas inocentes. Estudioso, descobri que as guerras causavam males tremendos aos povos, cada vez mais à s mãos do poder bélico. Os prisioneiros cadavéricos expostos ao mundo pela cinematografia me deixaram aterrado, tanto que resolvi escrever uma carta endereçada a todos os homens e mulheres responsáveis no mundo.
Em mais de quinze laudas de papel almaço, em letra miúda, execrei todos os vícios e apontei culpados, principalmente os governantes e o alto comando das forças armadas.
Terminava assim:
"Se Deus não os mandar para as profundezas dos infernos, será porque vocês vão aprender o caminho sozinhos."
Cinco anos depois, achei aquele escrito juvenil no meio de uns cadernos de rascunhos e sorri desapontado, já que não encontrara meios de publicar o libelo.
Li o texto e encontrei muitas incoerências, terminando por suspeitar que o melhor mesmo foi guardar o trabalho, esperando amadurecer a inteligência e a sensibilidade. Por desfastio, busquei corrigir os exageros do estilo veemente e abreviei a composição, mantendo o tom reprovador, acrescido de outros muitos acontecimentos ainda mais funestos para os humilhados.
Concluía assim:
"Outros tempos virão em que os homens saberão honrar seus compromissos para com a verdade."
Um chamado telefónico me fez esquecer a preocupação de caráter universal, acabando a missiva escondida na mesma pasta jogada no fundo do armário.
Formei-me, casei-me, desquitei-me, tornei a casar-me, gerei três filhos e, aos trinta e cinco anos de idade, de mudança para uma casa maior e mais confortável, revirando os pertences antigos, deparei-me com a tal carta reescrita.
Não me lembrava do conteúdo mas sabia tratar-se de um impulso juvenil. Sem emoção, antes de jogar fora o produto de minha jovem concepção do mundo, percorri rapidamente o texto. Fui estimulado a refazer o conteúdo, crendo-me absurdamente mais confiante no poder de compreensão do espírito humano.
Comecei riscando frase a frase, substituindo parágrafos inteiros por meras anotações esparsas. Ao cabo de algum tempo, estava diante de um rol de termos essenciais para levar à consciência da humanidade um sentido bastante profundo, filosoficamente arquitetado.
Elaborei alguns pensamentos, recomendei aos leitores que se esforçassem para não praticarem nada de que pudessem arrepender-se mais tarde e encerrei assim:
"Façam o que quiserem, desde que mantenham as pessoas cónscias de seus deveres e obrigações."
Aos setenta anos, ainda cheio de viço, experiente nas lutas contra a miséria humana, auxiliar dedicado nos serviços de assistência de uma casa espírita, tendo precisado de espaço para guardar as obras que ia adquirindo, topei com a tal pasta das cartas derradeiras.
Puxei pela memória, mas não pude situar-me perante as três versões, parecendo-me que não passavam de um exercício escolar qualquer. Não atinei com a progressão textual, já que pouco havia restado dos dois primeiros exemplares. Apenas o terceiro estava completo.
Li buscando criticar o autor, sem me preocupar muito com o destinatário. Achei meio burlesca a recomendação final e coloquei a papelada toda no lixo, considerando intimamente:
"Se cada qual fizer o que escreveu em seu programa de vida, dando oportunidade a que o bem supere a maldade cristalizada por várias existências desperdiçadas, todos os homens e mulheres poderão progredir, segundo as suas próprias obras. Deus cuidará do Universo."
Não achei aquela meditação definitiva. Parecia-me que algo não estava batendo com as teses doutrinárias que vinha estudando há uns quinze anos. Embatucado por não decifrar exatamente onde se situava a falha do pensamento, resolvi escrever o pensamento, colocando-o como marcador dentro de "O Livro dos Espíritos", de Kardec.
Agora tinha constantemente sob a vista a reflexão de um dia. Contudo, terminei o estudo da obra, levando-a a um lugar de destaque na estante. E lá ficou a observação pessoal esperando pela sorte de ser encontrada.
Pouco antes de abandonar a carcaça, julgando necessário distribuir pelos netos e pelas instituições que frequentava todos os meus pertences, topei com a anotação. Procurei minha lupa, que a vista estava deveras arruinada, mas logo me apareceu um bisneto, exigindo de mim que o levasse ao parque. Foi a última lembrança que guardei daquela folha amarelecida.