Olavo tinha vizinhos muito estranhos. Frequentemente espiava por cima do muro as coisas que estavam acontecendo do lado de lá. Certa vez, enquanto aguava o jardim, Olavo viu uma Kombi parar na frente da casa. Um anão segurava uma espécie de cetro dourado no banco do passageiro e olhava fixamente para a frente. Olavo póde ainda ver que nos dedos curtos e gordos do anão brilhava um enorme anel de ouro. O motorista da Kombi, que vestia um terno preto, desceu e ficou dez minutos dentro da casa. Depois, foram embora. Olavo nunca mais viu a Kombi, muito menos o anão. Teve pesadelos terríveis naquela noite.
Em outra ocasião, numa tarde muito quente, as sibipirunas estalavam suas vagens e Olavo se abanava no alpendre, tomando uma limonada gelada. De repente, uma sombra tampou o sol e Olavo se assustou, pensando ser um urubu gigantesco. Mas não, era um pára-quedas. O paraquedista caiu no quintal dos estranhos vizinhos. Trinta segundos depois, uma BMW preta arrancou da esquina. Dois homens vestidos de macacão azul desceram rapidamente, agarraram o paraquedista e o enfiaram dentro do carro, que partiu queimando os pneus. Olavo viu Aguinaldo, o vizinho estranho, sair não se sabe da onde, pegar o pára-quedas, dobra-lo e leva-lo para a edícula.
Olavo era tão curioso quanto uma pessoa mantalmente sã pode ser. Mas aquelas coisas estranhas eram demais pra qualquer um. Todo mês, praticamente, acontecia algo novo. Olavo já tinha os melhores locais para espionar o que acontecia. Misteriosas reuniões à s quatro da manhã, carros luxuosos com mulheres que pareciam saídas de filme americano usando enormes decotes nas costas e nas pernas, homens de cartola, mulheres gordas fumando com piteira, aquele casal de zebras que passou duas semanas no quintal, misteriosos sons de cravo e violino durante as tardes de quinta-feira. Uma vez Olavo viu três homens fantasiados no quital do vizinho, um vestido de castor, outro de tirolesa e o terceiro, que era o próprio Aguinaldo, vestido de bebê (estava de fraldas e com aquelas chupetas de plástico gigantes). Ensaiavam uma complicada dança, que envolvia espanadores e gritos animalescos. Olavo estava ficando doido. Começou a deixar suas coisas de lado, o emprego, a família, só pra espiar o vizinho. Não conseguia fazer nenhuma conexão, tinha infindáveis peças que nunca se encaixavam naquele bizarro quebra-cabeças.
Um dia, uma lindíssima loira vestida de feiticeira etrusca tocou a campainha da sua casa perguntando "Aguinaldo?". Olavo pensou em dizer que era a casa ao lado, mas observou que a lloira estava puxando uma coleira presa num gordo ornitorrinco sonolento. Sentiu uma nova excitação, e um desejo de aventura correu pelas suas veias. Arriscou, levantando forçadamente uma sobrancelha, como fazia quando queria impressionar alguém ou quando mentia descaradamente. "Eu mesmo". A feiticeira não disse nada, apenas entrou rapidamente, puxando o ornitorrinco pela guia.
Seu coração parecia que ia saltar do seu peito. A mulher tinha um rosto lindo, mas ao entrar na sala e fechar a porta, ela tirou o misterioso capuz e Olavo póde ver que seu corpo era simplesmente deslumbrante. Olavo pensou "É hoje!". Perguntou se ela queria beber alguma coisa. "Me prepara um dry Martini. Mexido, não batido". Olavo nem sabia que raios era isso e disse "Isso eu não tenho, serve uísque?". "Serve", ela disse.
A mulher sentou-se com as pernas cruzadas e Olavo agradeceu ao inventor do decote pelas coxas tão perfeitas que se exibiam roliçamente para ele. Ficou tão extasiado com a visão que derrubou o uísque falso paragauio fora do copo, boquiaberto. Ela usava uma cinta-liga preta. Olavo suava. Ao entregar o copo para a feiteceira, ele percebeu que tinha algo a mais naquela cinta-liga. Uma beretta calibre 22, aninhada entre as pernas. "Yeah!", pensou, animado.
"Aguinaldo, você sabe por que estou aqui, não sabe?".
"Sei". Pensou um pouco e arriscou mais uma vez "pelo ornitorrinco, não?".
A mulher soltou uma gargalhada, virando a cabeça para trás. "Bem que me disseram que você era um cara hilário. Vou sentir muito na hora de te matar. Adoro caras divertidos". E sacou a beretta.
"Espera um pouco, dona! Eu não sou o Aguinaldo, sou o vizinho dele! Ele mora ali, ó". Não adiantou. A feiticeira etrusca atarrachava calmamente o silcenciador na arma. Olavo começou a se desesperar "Eu não sou ele, não sou ele, meu nome é Olavo!". Então ela disse com firmeza "Sua hora chegou, Aguinaldo. Eles decidiram que você sabe demais". E desferiu três tiros certeiros no peito do Olavo.
Caído no chão, agonizando, Olavo viu os pés da mulher caminhando na direção da porta puxando o ornitorrinco pela coleira. Aliás, essa foi a útima coisa que viu.
Renato Cação Cambraia tem simpatia por todos os mamíferos, mas nunca confiaria em um que bota ovos e tem bico. beco@netonne.com.br
BECO - JORNAL A SEMANA, 22/09/2002