Dizem que, no começo dos tempos, Deus criou dois paraísos terrestres, onde depositou os primeiros casais de todas as espécies. É lenda ou mito, com certeza, mas consta que deu a cada um dos homens quantidade bem grande de sementes, recomendando expressamente que fossem plantadas.
- Para que, Senhor, se temos tudo o que queremos?
Sábio e prudente, o Pai limitou-se a sorrir, dizendo-lhes que não comessem do fruto da ciência, bastando que se alimentassem das guloseimas da obediência, da fé e da verdade.
Adão, vamos chamá-lo assim, foi aquele que recebeu de Eva o estigma do pecado original. Quando se viu expulso do paraíso, estava a braços com problema sério: as sacas de sementes guardadas debaixo da árvore da vida.
Não podendo carregá-las todas, espalhou-as pelo chão, convidando as aves para que o ajudassem a transportá-las. E saiu de lá com as mãos nos bolsos recém-cosidos pela diligente esposa.
Ora, do outro lado do mundo, o jovem Quiasto, que não desobedeceu ao Senhor, ficou morando na terra santificada, sem comer do fruto da ciência. Procriaram, evidentemente, porque não havia pecado naquilo, pois era o que todas as criaturas faziam, inocentemente.
Também ali havia uma árvore da vida, debaixo da qual se achavam as sacas de sementes. Sem ter muito o que fazer, resolveu Quiasto que deveria atender à recomendação do Pai e pós-se a cavar o solo, esforçando-se por depositar nele cada grão, solicitando aos cães que o ajudassem a impedir que as aves descessem do céu para devorar as sementes.
A bem da verdade, muitas dessas aves atravessaram o oceano, porque correu entre elas que um bondoso senhor, do outro lado do mundo, lhes havia feito a doação de grande quantidade de alimento. Foram e voltaram, gordas e nutridas, prontas para se multiplicarem nas paragens natais. Quando chegaram, encontraram a planície coberta de touceiras esguias, desconhecidas e intrigantes.
Uma das aves, mais afoita, após ter ouvido que as sementes haviam acabado, solicitou permissão a Quiasto para provar daquelas intumescências verdes que as hastes iam deitando para fora.
- Vocês poderão fazer o mesmo que eu, ou seja, aguardar para ver o que acontece. Enquanto isso, divirtam-se com as larvas de insetos e outros animálculos que retirei das profundezas do solo. Ou busquem nos rios e lagos os excessos de peixes, para que não se dê que a falta de oxigênio nas águas matem a todos eles.
E assim fizeram.
Depois de alguns meses, cabeludas espigas se desenvolveram e se ofereceram para a colheita. Quiasto gostou do sabor delas enquanto tenras, reservando muitos pés para obter grãos maiores e mais ricos.
Davídia, a esposa, perguntou ao marido:
- Como chamaremos esta bênção de Deus?
- Você está perguntando porque já deve ter um nome. Diga-o logo, mulher.
- Gostaria de chamar de milho.
- Pois assim será.
Ora, Quiasto não sabia da existência de Adão, de sorte que não enviou a ele nenhuma espiga, nem a ninguém mais do outro lado dos mares.
Só muito tempo depois, descendentes remotos do homem que desperdiçou as sementes atravessaram corajosamente o oceano e conheceram aquela bênção divina.
A que vem esta história? Pois a mim me foi dada uma espiga, com a recomendação de que fizesse multiplicar-se. Mas eu, com fome de novidades, assei os grãos e os comi, gulosamente, esquecido da ordem natural das coisas.
Foi assim que passei a vida, recolhido ao lar, junto dos filhos e netos, ensinando-lhes a maneira mais adequada de encher a despensa, para ter o que comer nos tempos das vacas magras. Mas era tudo ilusão de quem sabia onde obter cada vez mais coisas, alijando os semelhantes de sua saúde e de sua inteligência.
Agora que atravessei o rio da morte é que estou tomando contato com a minha consciência profunda, achando-me verdadeira ave predadora, comendo as lições que poderia disseminar entre os menos felizes.
Quando recebi a incumbência desta manifestação, foi como se recebesse de novo aquela espiga graúda e saborosa. Desta feita, porém, estou esmerando-me para debulhá-la, sem perder um único grão, esperando achar terreno fértil e bem irrigado de amor e compaixão, onde poderá crescer e frutificar, produzindo a cem e a mil.
Boa sorte, companheiros! Que a sua colheita seja farta e feliz a sua existência, junto de uma multidão de criaturas bem-aventuradas!