Depois de muito caminhar cheguei na hora aprazada, no momento errado, no lugar que não escolhi. Aqui ficarei deitada esperando o trem apitar. E para que não me arrependa do meu ato, por muitos considerado tresloucado, já pedi a um grande amigo que me deixe amarrada, bem presa aos trilhos, de modo que não possa fugir (como se o quisesse...) E que, por seu turno, se afaste bem rápido, visto que a corda arrebenta sempre no lado do mais fraco.
Já que este é destino que deliberei vamos cumpri-lo em alto estilo. Pena que esteja vestida de jeans, o mais adequado seria um vestido de baile, todo branco e bordado, evidenciando a pureza que nunca tive e jamais provei.
Quando o maquinista divisar-me aprisionada pensará que sou vítima de algum criminoso celerado. Portanto, os jornais lamentarão a pobre vítima de mais um "serial killer" e não se cogitará da verdade. Tanto melhor...
Haverá, naturalmente, a tentativa frustra de brecar a locomotiva. No máximo se conseguirá diminuir a velocidade, o que não impedirá em absoluto que se faça do meu corpo uma massa retorcida de carne e ossos, empapada de sangue. Espero que me decepe a cabeça, que, aliás, nunca valeu grande coisa e que esta ao rolar desamparada, separada do resto do corpo, vá parar em um campo de futebol. Já imaginaram o espanto da garotada? Uma cabeça fumegante, com os olhos vazados e os cabelos entrelaçados como serpentes - uma moderna Medusa do século XXI. Mas ninguém precisa ficar preocupado pois estes olhos não são de petrificar. No máximo podem ser usados como bola de gude, de ínfima categoria, pois são castanhos, cor banal.
Quanto ao pobre maquinista talvez fique um pouco traumatizado, mas uma boa dose de sedativos logo o fará esquecer deste pesadelo louco.
Meu amigo estará bem, ele comunga dos meus atos e sabe que este é o fim que me convém.
E assim acaba minha história, da mula que se fez gente, mas que de tanta teimosia esfacelou a cabeça e acabou se suicidando na linha do trem.