[No capítulo anterior: Madalena, prostituta, está morta na cena do Usina. Todos suspeitos, ninguém pode sair do local.]
Então fudeu, pensou o Contrera. Fudeu e fedeu. Não, ainda não fedeu; vai feder.
Enquanto isso, como toda vítima das circunstàncias, seria preciso ficar quieto, num canto qualquer, a rememorar, a recordar, a trazer de volta ao coração (re+cordare). Em que língua, não sei.
Se Madalena fosse viva, quem sabe lembrasse do seu élan interior momentos antes do crime. Não fora o que acontecera com Arguedas, o peruano, dias antes de enfiar aquele tiro de espingarda na cara. Em plena universidade. Deixou "El zorro de arriba y el zorro de abajo". "En la voz del charango y de la quena, lo oiré todo" 1. Quais seriam as vozes de Madalena? Quiçá nelas encontrássemos o buraco negro. Prostituição, buraco, xá pra lá.
Madalena quem sabe fosse uma moça de poucas palavras. Falar o que durante, afinal. Antes, tudo bem. "Isso eu não faço, isso outro só com camisinha, 2 reais a minha". Depois, "quer um cigarro? Pó, meu, nem fumar você sabe, não é assim, não, xá que eu te ensino". "Gostei de você, tão gentil". Como seria Madalena na cama? Qual nada, toda prostituta é igual. Pá-pum, que venha o outro. É preciso pagar a aeróbica.
Madalena quem sabe fosse daquelas moçoilas casadas disponíveis em pequenas cidades a todo consumidor eventual, insone ou não, como o Cioran da infància. "Aqui isso é absolutamente normal, amigo". "En la forma de pensar de aquel guardia descubrí el sentido común rumano y húngaro, el humor y mucho encanto" 2.
Contrera recordou então as conversas de corpo encurvado apoiado na bancada do puteiro com o leão-de-chácara romeno. Era engraçado ver todos aqueles mauricinhos babando na sala de espera para qualquer uma daquelas trabalhadoras do braço, das pernas, da boca, quando não de outros lugares. Valiam, cada uma, muitos daqueles. Muitos de si, inclusive, por quê não? Se não era vida aquilo, o que era? Era o jogo de sempre, toma lá, dá cá, não é mesmo.
Lembrou-se o Contrera também quão enlevante foi tirar o peso das costas ao sair do salão de gatos pingados que ouviam bocejantes aqueles comunicados sobre Hegel, Feuerbach, Schelling e o escambau no último encontro de filosofia. Perguntarão vocês, mas o que isso tem a ver com a história, afinal? Nada, não. A intenção é apenas fenomênica: comparar a leveza da brutalidade no puteiro passado com a leveza de se escapar da influência da palavra ignara ou ignota, essa inculcada pelo papo de qualquer especialista.
Se bem que fora por isso que o Arguedas estourara os miolos. índio de língua quechua, não tinha mais mundo a viver, apesar de ter ganho tantos prêmios por sua simpática obra. Em espanhol. Língua dos que mandavam. Dos que comiam as índias nas cocheiras, contra a vontade delas. Aqui, dizem, os estupros foram mais maneiros. Será? Não importa.
Madalena não mais falava. Quiçá falasse pouco, e mal, como todos. Quiçá falasse apenas palavrões, quiçá lembrasse das aulas sobre Camões, quem sabe fosse professora primária, como aquela, talvez no puteiro mais à vontade.
O pensamento ia e vinha, mas no salão nada mudava. Os movimentos da turma pareciam-me espectros, estertores de vidas que não conheciam o Moksa 3.
1 ARGUEDAS, José María. "El zorro de arriba y el zorro de abajo", in Un Mundo de Monstruos y de Fuego, Tierra Firme, CFE, 1993, pp. 187.
2 CIORAN, Conversaciones, Tusquets Editores, pp. 146.
3 A última das quatro metas de acordo com a filosofia indiana tradicional; redenção ou liberação espiritual. ZIMMER, Heinrich. Filosofias da índia, Editora Palas Athena, pp. 38.