Há muitos anos eu vinha poupando. Cem reais num mês, trezentos no outro, as vezes uns quinhentos, fazendo um esforço extra, deixando de comprar aquele vestido maravilhoso, evitando jantar fora, tomando vinho barato, enfim, segurando o que podia para ter meu carro novo.
Ah! Um carro novo! Cheiro de novo! Aquele cheirinho é único e especial, não existe nada parecido. Que delícia. Rodinhas alinhadas, pintura impecável, direção hidráulica, ar condicionado, preparação para som, sem vidros e sem travas elétricas, afinal, são dispensáveis. Para que eu abriria o vidro do carro tendo ar condicionado?
Pois bem, foram anos de miséria, para juntar aqueles incríveis vinte mil reais. Olha que a tentação de gastá-los com outras coisas - uma lipo, por exemplo - foi enorme.
Finalmente achei que era hora de comprar o carro. Os pátios das fábricas lotados, todas as concessionárias prometendo mil descontos, o governo reduziu o IPI e tudo conspirava para a realização de meu sonho.
Peguei minha bolsinha, meu talão de cheques e fui à luta.
Não tinha escolhido a marca, só sabia que o modelo seria "um ponto zero´. Ainda sobraria uma graninha para comemorar com os amigos a vitória alcançada.
Fui em todas as concessionárias de todas as marcas que se dizem populares, acessíveis, nacionais, etc.
Meu dinheirinho, simplesmente, não era suficiente para comprar nenhum deles. A não ser que eu desistisse do ar condicionado e da direção hidráulica. Como? Como eu poderia desistir de dois itens tão importantes para quem anda num trànsito infernal, num país tropical e com pouquíssima vagas para estacionar, que muitas vezes demandam horas para uma baliza milagrosa?
Eu perguntava aos vendedores onde estavam as promoções e não obtinha nenhuma resposta satisfatória. E os pátios cheios? E a redução de impostos? E aí? Não tem nada que eu possa comprar com meus suados vinte mil reais? A resposta, acreditem ou não era sempre a mesma: "Infelizmente, não temos o carro que a senhora gostaria".
Como entender? Uma pessoa adentra a uma loja de carros e diz: "Tenho vinte mil reais, quero comprar um automóvel" e o vendedor simplesmente a trata como uma infeliz pobre mortal.
No início cheguei a ficar arrasada, mas depois fiquei irada e com vontade de mandar os vendedores plantarem batatas, porque de vendas eles não entendiam nada.
Não me abalei com tanta humilhação. Chegou o Domingo, sol de estalar mamona. Vesti meu jeans mais agarradinho, coloquei uma batinha estilo hippye branca, calcei um tamanco de 15 centímetros de salto, soltei as madeixas louras, pintei bem a boca, botei meus óculos de sol e lá fui toda perfumada para o "Feirão do Automóvel".
Para início de conversa, nunca me senti tão linda em toda minha vida. Aqueles homens todos, vendendo seus carros usados, olhavam para mim como se eu fosse a única mulher do mundo, e realmente era, pelo menos ali, naquele mundo machista de vendedores e compradores de carro.
Achei um semi-novo impecável, lindo. Se fosse zero custaria o dobro do dinheiro que eu tinha. Enfiei a cabeça pela janela do carro e lá dentro estava ele, o vendedor. Cara de pobre, bariigudinho, dentro daquele carrão. Sorri, pedi licença para entrar. Ele ficou com a boca entreaberta sem responder direito. Entrei, sentei-me ao volante. O carro era tudo de bom, completo, bancos novíssimos, 23.000 quilómetros rodados apesar dos três anos de uso, dois ponto zero, sedan, rodas de liga leve, tudo, absolutamente tudo elétrico. Achei que era esmola demais. Desconfiei. O preço? Vinte e três mil reais.
Trocamos telefones e eu segredei, ainda dentro do carro: "Só tenho vinte mil para gastar, não é uma pena?".
Saí do carro, continuei circulando entre as dezenas de automóveis que ali estavam. Parei para conversar com um outro sujeito que estava vendendo um modelo igual. Perguntou se eu era casada. Não gostei da conversa, mas anotei o telefone para tentar negociar o carro mais tarde.
Mais adiante, outro carro, igualmente lindo, igualmente caro, o dono me convidou para almoçar. Sai de fininho e continuei meu passeio entre os automóveis.
De repente ouço meu nome. Olha para trás e quem estava me seguindo? O barrigudinho. Aquele do carro perfeito. Chega bem perto e me fala baixinho: "Eu faço por vinte".
Gelei! "Aí tem", pensei. Não é possível. O carro perfeito, quase novo, modelo luxo, maravilhoso e no preço que eu queria. Só poderia ser trambique.
Fiz-me de difícil, disse que ligaria no dia seguinte e levaria o carro num mecànico de minha confiança. Sim, menti descaradamente, nunca tive um mecànico de confiança.
Na Segunda-feira acordei com o carro na cabeça e o talão de cheques querendo pular da bolsa. Pensei: "Calma, muita calma nessa hora".
Conversei com todos meus colegas no trabalho, ouvi os mais diversos conselhos, mas telefonei para o barrigudinho e levei o carro num mecànico indicado por um amigo. Batata! O mecànico aprovou o carro, disse que estava novo mesmo, etc e tal.
Segurei o ímpeto mais uma vez e fiquei de pensar até o dia seguinte.
Um amigo meu, muito querido e sábio me aconselhou: "Dinheiro é para ficar no banco e não sobre quatro rodas, você está louca? Pra que comprar um carro tão caro? Faça as contas de quanto ele vai lhe custar por mês. IPVA, seguro, manutenção, fora a depreciação e do dinheiro que você poderia ganhar investindo, mesmo que fosse na poupança".
Pensei, pensei! Lembrei-me do sacrifício que eu fizera para juntar aquele dinheiro todo e comecei a achar que tudo não passava de um sonho bobo. "Carro bom para que? Pode até acabar em sequestro, principalmente com um porta malas daquele tamanho".
A noite de Segunda para Terça foi longa. Acordei com cara de pastel frito, chato e murcho. Fui trabalhar, pensando no carro tudo de bom.
Cheguei, sentei-me à mesa de trabalho e comentei com as garotas da sala: "Gente, não sei o que fazer.; Compro ou não compro o carro?". Na hora uma das garotas gritou: "Não é o seu sonho? Então compra, vai. Tá esperando o quê?"
Eu só precisava ouvir isso. Peguei o telefone e fechei o negócio. A noite já não havia um centavo em minha conta, mas eu passeava dentro do meu sonho.
Muito dinheiro sobre quatro rodas, sim, muito dinheiro, mas se comparado à s aventuras e desventuras que tive em concessionárias, valeu à pena. Meu semi-novo ainda tem um pouco daquele cheirinho bom.
A gerente do banco nunca mais foi a mesma comigo, mas em contrapartida, dentro daquele carrão eu fiquei bonita. Ah, como fiquei bonita. Todo mundo olha, nem se for só para conferir.
A lipo? Fica para daqui à dez anos, comecei outra poupança.