Nada como conhecer pessoas diferentes. Felizmente elas existem, pois a vida seria mais insossa se não houvesse pessoas diferentes!
Lia, por exemplo, que conheci há algum tempo, pode ser considerada muito diferente. Além de diferente, parece interessante, sobretudo pelo perfil que ela própria gosta de definir. Mulher livre e liberada, cabeça aberta, sem tabus e nenhum preconceito, de bem com a vida, pronta para tudo, principalmente para animadas curtições.
Seus quase 50 anos ficam imperceptíveis sob a roupa jovem que ela gosta de usar. Cabelos de tons alegres, tatuagens e penduricalhos que divide com filhas e sobrinhas. Quando não faz muito calor, costuma calçar coturnos, comprados numa loja de artigos militares A genética ajuda em parte. Ajuda porque seu corpo, enxuto por natureza, combina com quase tudo que a moda jovem produz. Atrapalha um pouquinho porque, com 20 centímetros abaixo do que ela gostaria de medir, está sempre se esforçando para não passar a imagem de baixinha.
Mas não é exatamente isso que faz de Lia uma mulher diferente. O que há de diferente é que ela parece interessante pelo seu jeito livre e tão dona de si, mas é interessante mesmo por outros motivos. Confuso? Vou trocar em miúdos. Lia é diferente porque é interessante (não pelo que parece ser, mas por outros motivos que a gente descobre quando se aproxima dela). Tentarei explicar de outro modo.
Como já deu pra perceber, discrição não é seu ponto forte. Convencional também não é. Passiva ou submissa, jamais! Careta? Insinue essa blasfêmia e você vai ver a mulher virar uma onça. Mas chega de dizer o que ela não é. Vejamos o que Lia é efetivamente.
Entre uma e outra gargalhada na roda de amigos, ela confessa sua simpatia incondicional pelos movimentos sociais alternativos. Diz nunca ter praticado qualquer forma de preconceito. Adora gays, embora não suporte certos bofes caretas. Os "certinhos" e bem-casados, então, são insuportáveis. Direitos iguais é palavra de ordem. Para ela, entre homens e mulheres há que existir igualdade em todos os sentidos, sempre.
Engajou-se na luta feminista e defende a criação de leis para assegurar escolas e empregos exclusivos para gays, mulheres e negros. Também defende a existência de ónibus, táxis e logradouros públicos exclusivos para tais grupos. Tem gente que acha tudo isso muito incoerente, mas ela vai além. Recusa-se a ter amigos ligados a religiões patriarcais e certa vez cuspiu na cara de um chefe quando descobriu que ele era neto de uma família com formaçao machista.
É claro que, Ã s vezes, ela exagera, pega pesado. Mas suas intenções estão acima de tudo isso. Tem um bom coração, muita vontade de fazer justiça e é sempre uma amigona para todas as horas. Não se deixe enganar quanto ao ótimo caráter dessa moça incomum.
Mas que ela causa impacto, que ela consegue chocar, isso não se discute. Quando foi gerente de uma grande loja de shopping, tentou implantar um critério de seleção de funcionários que acreditava ser liberal e avançado. Só admitiria empregados de opções sexuais não conservadoras. Mas aconteceu um probleminha. Um fiscal, segundo ela muito enrustido, resolveu enxergar preconceito nesse método de seleção. Também houve um problemão. Irritada com o tal fiscal, Lia mandou publicar anúncio nos classificados, no qual citava as exigências que fazia aos candidatos ao emprego, ressaltando que não seriam admitidos homens heterossexuais.
As reações foram imediatas. Logo, o episódio deu origem a uma mobilização pioneira. Para resumir a encrenca: a reação culminou com a criação da primeira Delegacia de Proteção aos Homens Normais e com o surgimento do Movimento Masculino de Repúdio Geral ao Sexo Oposto. Na época, alguns historiadores e antropólogos arriscaram prever o advento de uma onda mundial de adesão à viadagem, possivelmente em decorrência da decepção masculina com a forma agressiva com que algumas alas femininas estavam politizando a sexualidade.
Mas não pense que Lia tem medo de homem. Foi casada por três vezes (com homens) e separou-se sempre pelo mesmo motivo. Os três companheiros não concordavam em colocar em discussão o ónus biológico da gravidez. Nenhum deles tinha a cabeça aberta a ponto de aceitar que a gravidez deixasse de ser uma função feminina e que o aparato genital de cada um deixasse de ser a justificativa para rotular pessoas como homem ou mulher. "Não é aquilo que se carrega entre as pernas que irá fazer a pessoa pertencer a um ou outro gênero ou grau humano", protesta Lia em alto e bom som.
Agora, se quiser tê-la como amiga, nunca pergunte sobre as pensões que recebe dos ex-maridos. Aí, ela vira o bicho. Tampouco lhe pergunte seu nome completo. Acontece que, por não suportar o nome de batismo, prefere ignorar Amélia e usar apenas as três ultimas letras.
Se essa Lia ficar brava, sai de baixo! Foi mais ou menos o que aconteceu outro dia no trànsito, quando ela armou uma boa confusão num movimentado cruzamento central. Culpou o outro motorista pela colisão, alegando que ele não lhe dera preferência de passagem, ainda que o sinal verde estivesse aberto para ele. Afinal, argumentava ela, "o meu carro era dirigido por uma frágil mulher". Tinha preferência de passagem em qualquer circunstància.
Outro barraco quente aconteceu na sala de emergência do hospital. Os enfermeiros pensaram que ela estava brincando ao gritar que não aceitaria "mãos de homem" tocando seu corpo para tomar a temperatura axilar com o termómetro. "Será que ninguém neste hospital sabe que uma senhora não pode expor-se a um constrangimento desses??", bradava a moça, transtornada pelo seu repentino acesso de recato e pudor.
Nada disso, entretanto, lhe rendeu tanta dor de cabeça como o maldito incidente no aniversario de seu primo Bruno. E tudo por uma bobagem, cuja autoria e culpa ele deveria ter assumido de pronto. Tudo foi idéia dele. Comemorar o aniversario no zoológico foi idéia dele, como se o aniversariante se sentisse um quadrúpede. Tomar umas e outras, idéia dele. Provocar Lia, idem. O jeito de provocar, outra infeliz invenção dele próprio. Tão sucinta quanto desastrosa: antes de passar o microfone do videoke para a prima, o cretino anunciou-a da seguinte maneira: "Senhoras e senhores, agora, com vocês, Neo-Amelia!".
Antes que pudesse ouvir o eco de sua voz solene nas caixas de som, Bruno já estava entre as unhas e dentes da prima. Atingido na garganta com incrível ímpeto, demorou alguns segundos para tentar se defender. Tarde demais. Lia incorporou a fúria de um marimbondo gigante e enterrou-se na garganta do rapaz.
Tentaram separá-los rapidamente. Duas pessoas, três, quatro. Conseguiam puxar Lia, mas pedaços da garganta do homem saíam junto. A agonia prolongou-se até a chegada dos seguranças do zoológico. Treinados para situações parecidas, apelaram para o recurso mais eficaz. Um dardo com anestésico, disparado com precisão cirúrgica na bunda do marimbondo possesso e, em poucos segundos, tudo estava resolvido. Aliás, quase tudo, pois o aniversariante saiu da festa direto para a UTI, com uma assustadora hemorragia na região da carótida. Lia também não saiu como chegou.
É que, na correria, os seguranças não podiam calcular a dose adequada de anestésico a ser injetado nela. Então, usaram a ampola-padrão destinada a imobilizar onças, quando as feras precisam de curativos e assistência veterinária. Obviamente, para Lia foi uma overdose, que a deixou alguns dias desacordada, sob cuidados médicos no mesmo hospital para onde Bruno fora levado. Ao se recuperar, a primeira coisa que o rapaz fez foi iniciar um processo criminal por agressão física e outras infrações penais.
Hoje em dia, dizem os mais chegados, Lia anda um pouco menos impetuosa. Efeito da idade, talvez. E enquanto procura uma parceria conjugal que a entenda, preenche as horas vagas com embalos e festas em que reúne a fina flor da fauna alternativa.
Mas, como nenhuma festa dura para sempre, há momentos francamente solitários. Então, noite alta, depois que todos se retiram, ela solta os cabelos, mete pantufas nos pés e veste uma longa camisola de seda, com rendas, bordados e soutien sempre combinando. Senta-se para fazer tricó ou apenas para esperar o sono chegar, folheando os melhores trechos da dramaturgia de Nelson Rodrigues.