2h10.Madrugada. O sol do dia que amanhecerá dali a algumas horas já arde na agenda de sua mente. Negócios, compras, a visita à filial, a conta bancária, a bronca no subordinado, o curso de inglês, o novo programa de computador, o almoço com o supervisor, as metas do mês, a revisão do carro, a devolução do filme pego no final de semana e que não pode ser visto por falta de tempo, a retirada de um outro filme (que provavelmente não será visto), a compra dos ingressos para o baile no clube (baile que não sabe ainda se vai - mas é preciso adquirir os ingressos com antecedência), o curso noturno de aprimoramento em administração, o jantar de negócios.
Por um momento, o enxame de compromissos dissolve-se em sua cabeça e ele passa a observar coisas menores. Sobre a escrivaninha ainda repousa semi-aberto o livro de Neruda comprado há mais de um ano e sequer folheado com atenção. Vem-lhe o trecho de uma famosa canção de Chico Buarque e Francis Hime, canção que, aliás, faz parte de um CD com coletànea de canções romànticas comprado recentemente e também à espera da primeira audição.
O dia anterior não foi diferente. Tão ou mais atribulado como o que está por começar. Acordou à s 6, saiu sem café, chegou atrasado para a reunião das 7, não leu o jornal, não comprou o presente de aniversário da mãe, esqueceu-se mais uma vez de telefonar para Cecília, perdeu o prazo para pagar com desconto o seguro do carro, preparou sem atenção a lição de inglês, fez leitura dinàmica dos principais tópicos da apostila do curso de administração enquanto engolia o cronometrado almoço e observava a colega de mesa, faltou-lhe tempo para cortar o cabelo e comprar o sapato novo.O erro do subordinado.
Enquanto responde formalmente os e-mails de negócio que congestionam sua caixa postal e obrigam-no a ficar acordado todos os diasaté aquela hora, lembra-se da moça com quem dividiu a mesa do almoço. A mais bela visão do dia. Rubem Braga dizia que a visão de uma mulher bonita é o maior remédio para nossos males. Mas a imagem da moça vem-lhe imprecisa. Qual a cor de seus cabelos? Como era mesmo o vestido? E os olhos? Ela sorriu ? Onde mesmo guardara o cartão com o número do telefone?
No outro canto da escrivaninha, ao lado do Neruda, em meio a uma quase dezena de pedaços de papel anotados com letra ligeira, em uma folha de cópia xerox o último verso de um poema de Drummond parece querer dizer-lhe algo.
"Eta vida besta, meu Deus!"