O ser enquanto uso. Como uma filosofia da utilidade hic et nunc. Uma vez, vindo do céu das cadeiras, um anjo descadeirado visitou uma velha cadeira no fim de sua vida. Ela - a cadeira fin de siècle - perdera o seu sentido. Quer dizer, o usual. Os seus patrões, em vida, já morreram. Nem os cupins lhe querem mais. Cuspiram-se para longe. Agora, uma cadeira quer morrer. "Que besteira!" tinha-lhe dito o anjo descadeirado. Para tudo no mundo há uma finalidade. Quer atingir o nirvana? Sente-se. Sim, uma cadeira deve sentir-se. Sentar-se em si mesma. Autosentação. Parece impossível que uma cadeira, em fim de vida, vá sentar-se em si. A coisa em si não é impossível. Guarda-chuvas ficam em ereção. Sofás se masturbam. Armários sofrem de artrites. Acordeões, de asma. Tudo no mundo troca de papéis. E a outras coisas, o mesmo papel volta-se para a essência. Não vê que a natureza criou o caracol, que carrega a sua própria casa? E o que falar - espanto! - de certas amebas que a si próprias se engravidam - a vida autosuficiente levada a extremos? Voltando ao reino inanimado, por que as cadeiras não podem aspirar ao menos a uma leve recompensa pós-arbórea? Vá, filha, sente-se. E cruze os pés, se possível.
O anjo pulverizou-se. A cadeira ficou repentinamente na sala, abandonada. "Quer dizer, segundo entendi, a vida toda fiquei em pé para os sentados. Fui talhada para isso. Se dormisse, ou cochilasse, ou qualquer descuido, perderia o emprego. Talvez virasse madeira para alimentar uma voraz lareira. De que serve a utilidade fabril das coisas? Para que a cada ser no mundo faça-se a sua colocação no universo mais esquemático. Danem-se agora. Eu quero sentar. Sentar-me-ei, pois." E pós-se a fazer o maior esforço. As fibras da madeira começaram a ranger. A cadeira, só estalos. Parecia invadida agora por um congresso barulhento de cupins. Na sala ecoavam as torturas da madeira. De uma imobilidade apavorante. As janelas olhavam. O teto espreitava com galhofa gravitacional. O vento soprava fofocas venenosas. Se um filósofo entrasse nesse momento não diria: uma cadeira é uma cadeira é uma cadeira. Diria: tola e inútil. Olha o que dá a morte de seus sentadores. A falta de peso de certos traseiros. Mete-se a fazer filosofias. Afinal, uma cadeira, no dia que conseguir sentar-se, um isqueiro, no dia que conseguir fumar um cigarro, uma làmpada, quando conseguir uma idéia, melhor então admitir que as coisas enlouqueceram.
Enquanto isso, com sua própria maçaneta, a porta pensava: "Isso que dá passar anos como serva dos cansaços humanos. Melhor se ficasse árvore e anterior aos machados. Enquanto floresta, sua burrice seria vital. Como cadeira, sem uso, é bruta armação de madeira morta".
Nesse ínterim, abre-se a porta. Um gordo domador de leões entra esbaforido. Para os lados fica a olhar quando descobre a cadeira, pobrezinha, indefesa. Pega de uma vez, apresenta ao chicote e torna a sumir, deixando a sala também indefesa. Minutos depois ouve-se, ao fundo, um estalido de chicote, um rugido de leão e o não-uso da cadeira enquanto coisa-em-si. O circo infla-se. A sala, vazia, sobrevive mais uma vez e as coisas voltam ao que não eram.