Sempre imagino uma situação hipotética [por isso imaginária], onde encontro uma ex-namorada [a única por sinal, porque com a segunda não consegui deixar de contrair núpcias] e começo um dialogo também hipotético. O mais engraçado desta suposição [se é que existe algo engraçado] é que sempre imagino tal encontro quando estou andando no centro da cidade, após um longo e estafante dia de trabalho, com o desodorante vencido há pelo menos duas horas e com roupas que denunciam um velho esculacho [no pior sentido da palavra]. Mesmo assim, imaginando as coisas erradas em momentos absolutamente inoportunos, suponho um encontro mais ou menos assim [claro que ela me reconheceria com um "oi" de espanto e admiração. Eu responderia de maneira seca e indiferente, mas introduziria algumas palavras que permitissem, posteriormente, a minha auto-exaltação]:
- Olá! Há quanto tempo, hein?! O que você tem feito? [tudo isso tirando os óculos escuros lentamente e esperando por um pequeno monólogo relatando todos os anos que se passaram na minha ausência e pela retribuição da pergunta]
- Ah, eu voltei a estudar - ela diz. [como se eu fosse um empecilho para o estudo dela enquanto estávamos juntos] Continuo na empresa tal [realmente não me importa a empresa em que ela trabalha], comprei um carro [meu Deus, ela aprendeu a dirigir!] e é isso. Suas palavras indicam a vida medíocre de sempre. Um certo suspense no ar... Afinal ela vai ou não perguntar o que tenho feito? Como não comento nada...
- E você, o que tem feito? [sinos começam a tocar, é a minha deixa. Respiro, olho para o nada como quem tenta se lembrar de tudo o que fez durante essa pequena parcela da eternidade e começo a falar]
- Bem, digamos que minha vida mudou da água para o vinho. [já para deixar claro que o marasmo é passado]. Lembra-se que eu trabalhava naquela empresa [que não vem ao caso]? Fui promovido para supervisionar uma filial no nordeste. Fiquei lá uns seis meses, mas como achei o nordeste bastante cansativo e sem maiores oportunidades, resolvi voltar e buscar novos desafios. [sinto que não fui convincente o bastante, será que ela sabe ou percebeu que estou mentindo? Que na realidade fui mandado embora por justa causa - que não interessa a ninguém]
- Faz tempo isso? [realmente ela acreditou]
- Faz uns dois anos... Então voltei a trabalhar como autónomo e hoje estou super bem, trabalhando pouco e ganhando muito. [a verdade está lá fora, para que então eu deveria dizer que estou à beira de ser dispensado mais uma vez e o que ganho mal me sustenta? Que a verdade continue lá fora!]
- Que legal! Eu sempre falei que você era especial e tinha tudo para dar certo na vida. - a fala sai tão automática quanto de uma atendente de 0800 [a falsidade e o clichê da frase causam-me náuseas. Mas ainda não entramos no assunto mais interessante: a vida amorosa! Me sentiria um idiota se partisse de mim a pergunta]
- Você está namorando? [Como posso ser tão idiota? Ela é quem devia me perguntar isso. Vai parecer mágoa, ciúmes, ressentimento, curiosidade feminina ou algo pior. Pensando bem, eu posso repensar essa parte do diálogo, afinal, ele é hipotético mesmo!]
- Você está namorando? [ela me pergunta com ar de desinteressada, mas é fácil perceber sua curiosidade intrínseca]
- Lembra-se da Carolina? Aquela minha amiga? [já começo a sentir um ar de ciúmes irracional no ar] Você acredita que logo que nós terminamos [pausa para ver a reação] a Carol se declarou apaixonada por mim, começamos a namorar e...
- Você ainda está com ela? [não respondo imediatamente, absorvo o momento. Me delicio com o olhar de indignação dela] Vagarosamente eu estendo o braço esquerdo e exibo a aliança [para alguns, a coleira que identifica o dono].
- Nos casamos no início do ano...
- Mas não era você que dizia que não se casaria tão cedo? [mulheres, tão previsíveis]
- Para dizer a verdade eu sempre quis casar, eu e você chegamos a conversar sobre isso, lembra? [isto está melhor do que eu esperava] Mas você nunca me levou a sério... [a facada final] Até hoje eu não sei porque nós não demos certos.
- É... A vida é assim mesmo... [quase sinto pena, ela está quase chorando]
- Bem, de qualquer forma, foi bom a gente se encontrar... Vamos marcar de
você ir a minha casa qualquer dia desses. Afinal, você conhece a Carol. Leva o seu namorado. [eu não perguntei se ela estava namorando, joguei a isca e...]
- O Eduardo trabalha no final de semana, não sei se vai dar... [sinto que ela tenta me alfinetar, mas é em vão] De qualquer modo, a gente se fala. Manda um abraço para a Carol.
- Um beijo, vê se não some. [continuo o meu caminho sem olhar para trás, sabendo que ela está olhando]
Meu sorriso se desfaz quando lembro que tudo não passa de um diálogo improvável e minha expressão muda totalmente quando percebo que o ex-namorado da minha esposa vem com um largo sorriso em minha direção [o sujeito dos 22 cm]. Nunca estou pronto para conversas reais.