De uma coloração feia, baio tubiano, em cores baças e sujas. Quando menino (ou bichano) perdera metade do rabo em um acidente qualquer. Em seguida teve uma infecção nos olhos e quase tememos por sua vida. Na verdade, afora um ou outro colírio e um pouco de limão, pouco ligamos, numa confissão em nome coletivo da família cristã.
Mas o caolhinho sobreviveu e lhe sobrou o olho esquerdo, suficiente ao seu relacionamento com o mundo. Deu-se bem com ele, pois logo soube, como disse Ortega e hoje tantos dizem, que um gato - e não só o homem - é ao mestmo tempo ele e sua circunstància. Ah! o destino triste dos filósofos mundanos...
Mas dentre os gatos que contemplo parece paradoxalmente o mais feliz. De bem com a vida, nada desconfiado ou tímido. E sempre na cozinha no momento azado, recebendo leite ou migalhas. Acintosamente, sem nenhum pudor, refestela-se na gostosura da lajota fresca, ou no sofá quentinho quando a noite é fria.
Sem dúvida um exemplo para os deficientes, cuja Associação em Brasília, hoje presidida por ilustre jovem Deputado, deveria integrar. Um deficiente físico duplo - visual por caolho, estético pela falta do rabo - sem nenhum complexo. Aliás, lembra-me o Nilmar menino quase preto quase cego que trabalhou conosco em casa. Tocava violão e num assalto que sofreu na rodovia para Luziània foi furtado do violão do Osorio Filho que antes, por sua vez, havia surrupiado para alegrar uma festa. Julgava-se um verdadeiro Adónis, e até hoje quando me visita à s vezes, não tive ànimo de desencorajá-lo ou desmentí-lo.
E há de sê-lo talvez, porque já se casou, descasou e recasou e quemsabe um dia haverei de defendê-lo numa investigação de paternidade.
E o que aconteceu com o gato?
Será a pergunta de alguém que por acaso houve de ler esta escrita. Afinal, onde está a história (ou estória, como adoram dizer os teóricos literários).
Não há história.
Ou melhor, a história é isso mesmo. Uma vida que escorre, a do meu gato caolho, a do Nilmar meu amigo, a minha que se exaure em reflexões inúteis. E a tua leitor que já perdeste teu tempo lendo estas notas vadias.
Ah! Quase a crónica é publicada sem a sua histórica conclusão e sua invejável "moraleja".
Pois há uma história sim, digo-o agora, continuando estes rabiscos que reencontro alguns meses depois.
Sim, porque descobrimos que nosso gato baio não era um gato, mas uma gata. Que como todas as gatas, gestante engordou e depois emagreceu. De quatro gatinhos lindos. Dos quais um morreu logo de nascido, outro pouco tempo depois, pois a mortalidade infantil é ainda um problema insolúvel para os felinos, embora não saiba se mais grave do que a dos nossos irmãos nordestinos.
Mas um deles (ou uma delas?) puxou à mãe.
Extrovertido, esperto, cheio de recursos. Ainda não foi testado na convivência com os ratos, mas de cachorros não tem medo algum. Hoje subiu numa árvore, tendo testemunhas. E depois, quase há pouco, o percebi metendo o focinho dentro de minha pasta esquecida aberta, a procurar arranhar ou ler precisamente estas garatujas.
E o pai, antes sempre ausente, preto mandrião, tornou-se marido exemplar. Depois que os pimpolhos nasceram, a comida aumentou, e até ração passaram a ganhar. Tornou-se marido e pai caseiro. Quem sabe fiel e carinhoso. Como os filhotes gatinhos continuarão até crescerem e houve comida em casa.
Pode parecer que a diferença entre alguns gatos e alguns humanos não é muito grande.