Usina de Letras
Usina de Letras
72 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62137 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10447)

Cronicas (22529)

Discursos (3238)

Ensaios - (10331)

Erótico (13566)

Frases (50548)

Humor (20019)

Infantil (5415)

Infanto Juvenil (4748)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140778)

Redação (3301)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1958)

Textos Religiosos/Sermões (6172)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->A HISTÓRIA DE ANDRÉIA - SEGUNDA PARTE -- 29/02/2004 - 22:34 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A HISTÓRIA DE ANDRÉIA

... continuação

Não tinha pra onde ir. Não conhecia ninguém, não falava com ninguém. Não saia à noite, não passeava nunca, pois o sargento havia proibido. Não freqüentava escola, não tinha colegas, nem amigos e namorado, nem pensar! Uma infinidade de nãos! Em suma, estava completamente sozinha no mundo, perdida, desorientada.

No dia seguinte bem cedo, já que não conseguira dormir, levantou-se, passou água no rosto, pôs numa sacola alguns objetos e roupas e saiu de casa, sem rumo nem destino.

Perambulou muito tempo rua após rua, vagueou praça após praça, sempre com uma vontade enorme de chorar, mas nem isso conseguia. Cansada, esgotada mesmo, de tanto andar e com fome, sentou-se num banco de jardim e adormeceu, com a cabeça recostada à sacola de roupas.

Acordou sobressaltada com alguém segurando-lhe as mãos. Era Angelina, moça nobre que, ouvindo toda sua história, dela se apiedou e a levou pra comer e dormir na sua própria casa. Que sorte! Depois de tanto sofrimento apareceu-lhe um anjo, certamente enviado dos céus especialmente para socorrê-la! O próprio nome da moça já dizia tudo: Angelina. A vida, o carma, o destino, sei lá o quê, prega cada peça na gente! Ainda há pessoas boas neste mundo, caro leitor! Nem tudo está perdido.

Angelina ouviu com toda a atenção a história de Andréia, contada entre soluços e lágrimas.

— Você tem todo o direito do mundo de estar cheia de ódio, ressentida com o carrasco de sua vida e até mesmo horrorizada com o gesto de sua mãe. Mas, no seu lugar, Andréia, — explicava-lhe Angelina, com doçura — tentaria perdoar tudo, ainda que o corpo, a mente, todas as fibras do seu ser rejeitem a idéia. É preciso perdoar. Até por um motivo egoísta. Explico: com o perdão, os músculos do peito se distendem, se alargam, o coração como que se expande e você começa a receber os eflúvios positivos do universo, da luz, de Deus. Toda essa angústia desaparece; a vida parece renascer-lhe, trazendo a alegria de volta, depois de tanta dor. Não é preciso sentir o perdão — continuou Angelina — é questão de vontade; tem-se que o desejar, apenas; basta dizer: meu Deus, eu não sinto, mas quero perdoar o meu algoz e a minha mãe, ajuda-me! Só isso! Os raios da benção recairão sobre você. Experimente!

Suspirou fundo, olhou Angelina nos olhos e sorriu, pela primeira vez desde muito tempo.

Nessa noite, adormeceu feito criança.

No dia seguinte, Angelina levou-a pra fazer matrícula em colégio público e depois do almoço saíram à procura de emprego.

Não precisaram andar muito, nem procurar tanto. A vizinha de Angelina, Laura, tinha uma barraca na Feira do Paraguai(2)(de produtos importados) e estava justamente precisando de vendedora. Acertaram horário, salário e comissão. Se desse certo, Andréia estaria encaminhada, pois poderia ganhar bem. A barraca de Laura era grande e vendia muito. Acertou de começar na 2ª feira, dois dias depois desse.

— Falta ainda uma coisa — disse Angelina. — Precisamos conseguir alojamento para você. Por enquanto pode ficar aqui em casa, mas no mês que vem minha família e eu vamos mudar para São Paulo. Cuidaremos disso com calma. Você merece um bom lugar e uma companheira legal pra dividir as despesas. É importante, também, que seja perto do colégio e do trabalho. Ok?

Andréia sorria. “Meu Deus”, pensava ela, “como essa Angelina é boa! Minha própria mãe me expulsou de casa e essa aí, que nem parente é, me acolhe com essa bondade e meiguice”!

Essa bondade, essa disponibilidade, essa vontade de ajudar os outros era uma característica de Angelina, e de todos os outros que, como ela, dedicam algumas horas de folga, todos os dias, aos trabalhos do CVV - Centro de Valorização da Vida(3), socorrendo as pessoas necessitadas e sem esperança, como Andréia.

E assim aconteceu.

Andréia era inteligente e esperta. O aprendizado na barraca foi rápido. Em pouco tempo dominava tudo, produtos e preços. Por ser muito bonita, sempre com um sorriso nos lábios, atenciosa e carinhosa com os clientes, além das suas curtíssimas saias mostrando a popa da bunda, arrebitada, e pernas grossas, a verdade é que a barraca de Laura fervilhava de fregueses, muitos dos quais lá iam somente para apreciar a beleza da moça.

Os negócios, então, prosperaram e a barraca ia de vento em popa.

Angelina, Andréia e Marina, uma colega da barraca ao pé da sua na Feira, encontraram belo apartamento, pequeno, mas confortável, perto da escola e do trabalho. Aluguel barato, fecharam negócio na hora e mudaram-se para lá três dias antes da viagem-mudança de Angelina pra São Paulo. Laura entrou como fiadora no contrato.

Na escola, ia muito bem, elogiada pelos professores. Iniciou-se ali um namoro com Ricardo, funcionário do Banco do Brasil numa agência perto da Feira.

A dona da barraca de importados era enrolada. Boa gente, mas complicada nos negócios. Tanto fez que acabou dando cheque sem fundo na praça, o que lhe acarretou o fechamento da conta corrente pelo Banco Central. Agora, compras somente à vista e a dinheiro.

Andréia ganhava bem com as comissões de suas vendas. Abriu conta na Agência de Ricardo, que a favorecia na entrega de talonários.

Na barraca vendia-se muito, muito mesmo e era ela a responsável por esse sucesso todo. Laura tornou-se sua amiga íntima.

Numa tarde, apareceu ali um vendedor de São Paulo, oferecendo mercadoria a preços vantajosíssimos. Laura interessou-se, mas não tinha como comprá-los à vista. Andréia, sem imaginar o que poderia advir de seu gesto, ofereceu-lhe um cheque emprestado. Foi o começo de um comércio promíscuo e intenso de cheques pra cá e cheques pra lá. Laura cobria-os sempre, rigorosamente, sem nenhum problema para a emitente.

Um dia, pediu-lhe cerca de cem (100) cheques, cem mesmo, caro leitor, uma centena, ou seja, cinco talonários inteiros, para fazer compras no Paraguai e em São Paulo. Andréia assustou-se com a quantidade solicitada! Mas as circunstâncias todas envolvidas no episódio estimulavam-na ao empréstimo. Conseguiu, a custo, os talonários com Ricardo e, na boa fé, os cedeu a Laura. Todos emitidos, alguns com valores elevados. A maioria dos cheques não foi utilizada na compra de mercadoria, mas sim de pagamentos a agiotas, médicos, hotéis, passagens etc. Todos foram apresentados praticamente ao mesmo tempo e, pasmem-se!, não foram cobertos pela dona da banca, que pediu um pouco de paciência para Andréia. Esta, chamada a explicar-se ao Banco, teve sua conta encerrada. A esperança era que a cobertura dos cheques fosse sendo feita à medida das vendas da barraca.

Passados cerca de quinze dias, Laura, sem nenhum aviso, fechou o negócio e fugiu para endereço ignorado. E não cobriu os cheques. Andréia até hoje nunca mais a viu. Perdeu o emprego e ficou com o nome sujo na praça. Ricardo, por ter liberado cinco talonários de uma só vez a uma pessoa com renda insuficiente para tanto, foi despedido do Banco, sumindo da sua vida.

Marina, a colega de apartamento e vizinha de barraca, deu-lhe prazo de trinta dias para pagar sua parte no aluguel, que ficou acumulado, ou então mudar-se de lá.

***

Mudou-se. Com o nome sujo, não mais conseguia emprego decente no comércio. De todo o que arrumava,— e isso lhe era fácil, no princípio —, imediatamente dispensavam-na quando viam sua ficha no DPC ou SPC (Serviço de Proteção ao Crédito).

A única saída foi trabalhar de doméstica no Plano Piloto. Logo no primeiro emprego, seu patrão começou a assediá-la, passando-lhe a mão à bunda sempre que a patroa não estava por perto.

— Ah, meu Deus, outra vez, não! — suspirou ela, e cansada da perseguição, abandonou o emprego, sem receber o salário.

Sem dinheiro, foi trabalhar em outro emprego. A patroa, ao vê-la bonitinha e jeitosa, entrou a explorá-la sexualmente. Arrumava homens e cobrava altas comissões. Topou. Não tinha mais nada a perder. “Ah, que vergonha!”, pensava. “Se meu pai me visse assim!”.

Um dia, com base em denúncia, a polícia deu em cima e fechou a espécie de rendez-vous que funcionava no apartamento de sua patroa, que não tinha marido em casa, apenas uma espécie de cafetão.

***

Novamente desempregada! O pai lhe morrera lá no Ceará e a mãe não lhe dava a mínima importância. E tinha ojeriza ao padrasto. Outros parentes, apenas os irmãos lá no interior de Senador Pompeu, bem mais novos que ela. Mas recorrer a eles, nem pensar!

O jeito foi ir para as ruas. Mais propriamente para as estradas, perto dos motéis. Nessa altura tinha ficado feia, desgastada pela difícil vida que levara até ali. Angelina estava longe e não mais poderia ajudá-la. “Que saudade!”, suspirava.

Ficou grávida.

Foi nessa parte de sua história que eu a conheci. Nesse encontro, suas pernas estavam um hematoma só: um policial a confundira com uma companheira de um traficante. Com o peito dorido pela compunção que me acometeu ao ouvir-lhe a história e compreender a intensidade de seu sofrimento, passei a protegê-la, dar-lhe mantimentos, dinheiro, palavras de conforto. Jamais a usei para fins libidinosos. Ela me considerava grande amigo e benfeitor.

Seu filho crescia na barriga. Ela me dizia sempre que quando nascesse, queria que eu a levasse para o hospital e depois fosse buscá-la de carro. Não tinha como fazer isso sozinha. Da prostituição na estrada não lhe sobrava dinheiro suficiente para tanto: mal cobria o aluguel do barraco em que morava. Eu tencionava arrumar-lhe a vida em algum lugar adequado, onde pudesse trabalhar com dignidade, receber salário condizente, e levar uma existência normal, no qual pudesse criar seu filho com alegria e altivez. No íntimo, talvez tivesse a pretensão de substituir Angelina na história de sua vida.

Só que Andréia sumiu. Passou o tempo de dar à luz e continuava sumida. Por mais que a procurasse, ninguém dava notícia. Pensei que lá no hospital, alguma freira ou mulher bondosa, tipo Angelina, lhe tivesse arrumado lugar melhor.

Muitos meses depois, encontro Kátia, sua amiga de “métier”. Conta-me ela que Andréia estava presa: matara o filho recém-nascido com um travesseiro e cumpria pena na Papuda(4). Disse-me ainda que, quando lhe perguntavam a razão daquilo, ela respondia, olhando para o nada: “Só não queria deixar pra meu filho a única coisa que me sobrou na vida: o infortúnio...”


março/2000



(2) Conjunto de barracas (no início, cerca de 2000;hoje, uma infinidade), onde se vende produtos do Paraguai, na maior parte contrabandeados, com o beneplácito oficial (o governo construiu e financiou as barracas).

(3) Movimento difundido em várias cidades do Brasil, composto geralmente por jovens. Socorre e ajuda os desesperados. Geralmente por telefone.

(4) Nome da penitenciária de Brasília (DF).














Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui