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Poesias-->Almanaque poético de uma cidade do interior -- 27/12/2004 - 12:26 (Vicente Freitas) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos








ALMANAQUE POÉTICO DE UMA CIDADE DO INTERIOR



Fonte:

FREITAS, Vicente. Almanaque poético de uma cidade do interior. Bela Cruz: Tanoa Editora, 2004.





Texto-base digitalizado por:

Vicente Freitas Araújo, Bela Cruz - CE



Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações acima sejam mantidas.









VICENTE FREITAS



























TANOA

2004



Copyright ©2004 TanoaEditora

Direitos em Língua Portuguesa reservados à

Tanoa Editora







Editoria

Vicente Freitas









Capa

F.Petrarca









Revisão/Digitação

Vicente F. Araújo









FICHA CATALOGRÁFICA

____________________________________________________



A 798

Almanaque Poético de uma Cidade do Interior / organização, seleção

e notas, Vicente Freitas Araújo, Tanoa Editora, 2004





213 p.



1. Antologia (Poesia brasileira). 2. Escritores brasileiros

I . Araújo, Vicente Freitas – I. Série.





11-2004 CDD - 869.98008

CDU - 869.0(81)-1(082

____________________________________________________

AbcZ Editora

Rua Padre Odécio, 620

62570-000 – Bela Cruz – CE

Fone: (088) 3663.1895

vincentfreitas@ig.com.br































À memória de Nicodemos Araújo





É de joelhos, meu poeta, que faço à vossa

memória, para mim sagrada, o oferecimento

deste livro. Pois eu não vos poderia oferecer

senão o que há de mais digno em tudo o que

porventura me seja possível realizar.





































































Um galo sozinho não tece uma manhã.;

ele precisará sempre de outros galos.



João Cabral de Melo Neto

















PREFÁCIO





Quinta-Feira da Ceia do Senhor. Início do Tríduo Sagrado, segundo as palavras de Santo Agostinho, do “Sacratíssimo Tríduo do Crucificado, Sepultado e Ressuscitado”. Tenho em mãos “O Mistério da Cruz”, de Pie-Regamey.; “Abraçando a Cruz”, de D. Antônio de A. Lustosa, e “O Poeta e a Cruz”, de Paul Claudel.

Então, me lembrei do poeta Vicente Freitas e de Bela Cruz.

Passando em Bela Cruz, ultimamente, o amigo e primo Vicente Freitas me oferece seu valioso trabalho “Almanaque Poético de uma Cidade do Interior”. Que cidade é esta? É exatamente Bela Cruz, Ceará, nossa terra inesquecível.

Lauro Menezes, cujas poesias “Os Cambarás em Flor” e “Vaso Quebrado” encontradas no Apêndice, dissera um dia, e eu me lembro, que “Bela Cruz, outrora Santa Cruz, antes de ser bela já era santa”. Agora Vicente Freitas Araújo, poeta e literato, com visão penetrante no passado, no presente e no futuro, que também usa o pseudônimo de F. Petrarca, quer com Almanaque Poético atualizar e perenizar os valores poéticos da Ribeira do Acaraú. Procura aglutinar as mais expressivas produções de Pe. Antônio Thomaz Lourenço, filho de Acaraú (1868–1941).; a contribuição poética de inestimável valor de Manoel Nicodemos Araújo, nascido em Bela Cruz (1905–1999).; a beleza artística das poesias de João Damasceno Vasconcelos, vindo à luz em Bela Cruz (1924–1990). Finalmente encontramos o tesouro precioso de Vicente Freitas Araújo, também belacruzense.

Seu trabalho literário, além dos dados biográficos dos poetas citados, fornece ao leitor material abundante no mundo das letras, da arte e da estética. Nesta obra sintética, porém, tão substanciosa, o leitor poderá encontrar um verdadeiro manancial.

Aqui, fala o Príncipe dos Poetas Cearenses, descrevendo “A Carnaubeira”:



“Nascida dos sertões na gleba adusta,

Sob os raios do sol abrasador,

Garbosa e altiva, ostenta o seu vigor

Das nossas várzeas, a princesa augusta”.



Ali, o Redator-Chefe do Jornal “O Acaraú”, recorda a memória de sua querida genitora:



“Minha mãe querida e santa,

Nesta existência de espinhos

Foram teus doces carinhos

Que meus dias consolaram.

Neste mundo de misérias

Enganos e provações

Tuas santas orações

Meus fracos passos guiaram”.



E o Chefe da Estação-Postal-Telefônica e Diretor do Jornal “Correio de Bela Cruz” canta o amor à sua terra:



“Amo-te, ó minha Bela Cruz querida,

Terra bendita, esplendorosa e linda.

No teu regaço é mais feliz a vida,

Tem mais encantos, mais amor ainda”.



E, finalmente, o autor do Almanaque Poético e outras obras, presta homenagem ao poeta Nicodemos Araújo, com “Ribeira Encantada”:



Saudável ribeira, mel agreste

sumo de orvalho e essências matinais

trago no olhar o linho das nuvens

e na boca sabores de luar.



Vem, poeta, até este pomar

vislumbrar este rio, este mar

e o fogo que aqui irrompe no verão

e o homem que em sua lida

faz o lavrar do chão

trabalho rústico de enxada e mão

esforço e riqueza da nação.



Almanaque Poético está lançado. Que todos nós saboree-mos o néctar das flores.





Aureliano Diamantino Silveira

da Academia de Ciências, Letras e Artes

Rio de Janeiro



















APRESENTAÇÃO





Este almanaque visa, em sua simplicidade, aproximar os amantes da poesia das obras de alguns poetas da Ribeira do Acaraú. Assim, se encontrarão aqui as mais significativas produções de Padre Antônio Thomaz, Nicodemos Araújo, João Damasceno Vasconcelos e Vicente Freitas, trazendo ainda como apêndice, dois poemas de Lauro Menezes, poeta de Tianguá que, por repetidas vezes, visitou nossa Ribeira, e ali fez amizades, recitou e cantou nas inesquecíveis serestas dos anos 30.; 40.

Dos poetas aqui selecionados, Nicodemos e Damasceno têm um traço comum – identidade esta muito louvável – lembra Alcides Pinto.; trata-se de vates religiosos, espécie de cristãos primitivos, sem a sotaina do bardo ilustre, também do mesmo rincão, o Padre Antônio Thomaz. Para estes poetas, poesia e oração sempre andaram juntas ou próximas uma da outra, pois ambas chegam a uma verdade que transcende os nossos sentidos, como a nossa própria razão e que só a intuição ou a revelação nos dizem que é a mais alta e a mais profunda realidade das coisas. Tristão de Athayde, afirma que os místicos e os poetas serão tão eternos quanto à natureza humana. Eis porque um poeta é sempre alguma coisa de único, de diferente, de altamente respeitável e de mais necessário ao equilíbrio do mundo e das próprias instituições sociais, do que os homens práticos, sem visão poética da vida.

Os poetas “bissextos”, como os chamou Manuel Bandeira, são criaturas visitadas, por vezes, pela poesia, como todos o são nesta vida. Os poetas verdadeiros são aqueles em quem os pássaros fazem ninho. Assim foram os poetas aqui inseridos: colocaram a poesia no centro de suas vidas.

O movimento de 22, não fez deles, nem reacionários, nem adesistas, com a mesma energia que os levava a compor em plena mocidade, continuaram até o fim. Sales Campos em artigo sobre o Padre Antônio Thomaz, publicado no Diário do Estado escreveu: “Quem quiser, num capítulo da nossa história literária classificar o poeta dentro das lindes, quase sempre estreitas, de uma escola, deve pô-lo fora do seu campo. Antônio Thomaz, sem preocupações artísticas, na sua simplicidade boa e tolerante de pároco da roça, que dizem ser dos melhores, conservou-se indiferente, ignorando-o talvez, o forte movimento literário das últimas décadas”.

Já o poeta Dimas Carvalho, numa introdução à poesia de Nicodemos Araújo, comenta: “Infenso à Revolução Modernista de 22, Nicodemos imprime certas características aos seus poemas, características estas que irão persistir, embora levemente modificadas, através de toda sua produção posterior. Fará parte ele, daquele grupo de poetas, espalhado por todo o país, seja nos grandes centros, seja – especialmente – nas pequenas cidades interioranas, que irá rejeitar o legado modernista”.

E o poeta José Alcides Pinto, em artigo publicado na imprensa de Fortaleza, sobre João Damasceno, escreve: “Trata-se de um sonetista exímio, um parnasiano inspirado, dono de uma poesia pungente [e aqui lembramos Augusto dos Anjos e Cruz e Sousa, com quem Damasceno não guarda qualquer ressonância]. Sua poesia é muito pessoal, com as marcas de seu misticismo, suas saudades e suas angústias existenciais. Mas o que nos chama a atenção nos seus versos, são a estrutura de linguagem, o metro correto, a rima impecável. Nesse ponto ele está bem integrado na escola de Bilac e Raimundo Correia, Alberto de Oliveira e tantos outros”.

Indiferentes ou não a escolas e/ou movimentos literários, os poetas aqui reunidos são filhos legítimos da terra cearense e escreveram uma poesia liricamente plasmada com um verbo original e animada pelo espírito telúrico. Como monumento, só o tempo dará as medidas da sua grandeza, o qual se incumbirá de provar, também, sua eternidade.





Vicente Freitas

















“Uma beleza de livro. Nem parece

coisa de matuto"...



Soares Feitosa



















Padre ANTÔNIO THOMAZ Lourenço





PADRE ANTÔNIO THOMAZ Lourenço, nasceu na cidade de Acaraú, Ceará, a 14 de setembro de 1868. Filho do professor Gil Thomaz Lourenço e dona Francisca Laurinda da Frota. Cursou latim e francês em Sobral, e concluiu seus estudos no Seminário de Fortaleza, onde foi ordenado sacerdote, em 1891. Esteve longos anos a serviço da Igreja, em paróquias do interior cearense, notadamente como vigário de sua terra natal, levando vida modesta e apagada, dedicado a sua missão, escrevendo versos e cuidando de sua paróquia. Exerceu o paroquiato durante trinta anos, tendo sido vigário de Trairí e de Acaraú, de 1892 a 1924, quando por motivo de saúde, deixou o exercício do múnus paroquial, a que dedicara todas as reservas da sua atividade apostólica. Iniciou-se na publicação de seus sonetos, no ano de 1901, quando o Almanaque do Ceará, daquele ano, publicou o soneto Post-Laborem. Escreveu dezenas de sonetos que eram levados à imprensa pelos amigos, já que na sua humildade e timidez procurava fugir à publicidade. Recebeu, entretanto, ainda em vida, consagração popular, sendo eleito, Príncipe dos Poetas Cearenses, num pleito realizado pela revista “Ceará Ilustrado”, em 1925. Está classificado entre os maiores sonetistas brasileiros, gênero a que mais se dedicou, escrevendo também composições de feição e ritmos variados, caracterizando-se por sua independência em relação a qualquer movimento ou escola literária. Foi membro da Academia Cearense de Letras e, em 1919, eleito sócio do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico do Ceará. Faleceu em Fortaleza, a 16 de julho de 1941, sendo sepultado no dia seguinte, na Igreja Matriz da Cidade de Santana do Acaraú, Ceará.







POST-LABOREM¹





O vento das paixões, na mocidade,

Em nossa mente estranho fogo ateia.;

Nem de leve nossa alma, então, receia

Do mar da vida a negra tempestade.



Nas grandes lutas próprias dessa idade,

Sente-se arder o sangue em cada veia.;

Em trabalhos e afãs jamais fraqueia

Nossa tenaz, acérrima vontade.



Chega a velhice e tudo esfria e acalma.;

Convertem-se os trabalhos e os afãs

Em paz forçada, em vergonhosa calma.



E o resultado dessas lutas vãs

É sempre o mesmo, – desenganos nalma,

Rugas na face, na cabeça cãs.











___________________________

1.RAMOS, Dinorá Tomaz. Padre Antônio Thomaz – Príncipe dos Poetas Cearenses. Fortaleza, Tipografia Paulina Editora, 1950, p. 14.







IN TENEBRIS¹







Eram-me as ilusões da mocidade,

Constelações de magna refulgência,

Que o céu da minha plácida existência

Vinham doirar de branda alacridade.



Apagou-as o tempo sem piedade,

Uma após outra, com brutal violência,

Deixando-me sem luz, sob a influência

Dos desenganos da senilidade.



Vejo agora, repleto de amargura,

Mudada em penas, a fugaz ventura

Desses momentos calmos e risonhos,



E para sempre extinta nas sombrias

E longas noites dos meus negros dias,

A via-láctea branca dos meus sonhos.











_____________________________________

1. Op. cit., p. 15.







PERFIL DE UM MISANTROPO¹





Vivendo entre os humildes e os pequenos

Sempre evitei o rico e o poderoso.;

Os meus sonhos de tímido e medroso

Foram sempre modestos e serenos.



Nunca tive ambições de bens terrenos,

Nem desejo de nome ou posto honroso.;

Nunca, em moço, aspirei do fausto o gozo,

E agora, na velhice, muito menos.



Olho, sentindo nalma horror profundo,

Para os homens e as coisas deste mundo,

Como para uma eterna palhaçada.



E sem cessar a doce paz bendigo,

Em que descanso, no seguro abrigo

Da minha pequenez e do meu nada.













_____________________________________

1. Op. cit., p. 41.





A CARNAUBEIRA¹





Nascida dos sertões na gleba adusta,

Sob os raios do sol abrasador,

Garbosa e altiva, ostenta o seu vigor

Das nossas várzeas, a princesa augusta.



Princesa... Bem que o nome se lhe ajusta

Tal dos seus benefícios o primor,

Pois dá sustento e teto protetor

E cama e luz ao pobre, à sua custa.



Tem certos modos de mulher faceira,

Os longos verdes cachos exibindo

Como tranças de enorme cabeleira.



E quando o sol a pino a terra escalda,

Abana a fronde, as asas sacudindo

Com seu formoso leque de esmeralda.















______________________________________

1.Op. cit., p. 46.





A MORTE DAS ROSAS¹





Nos canteiros orlados de verdura,

De mil gotas de orvalho umedecidas,

Cheias de viço e de perfume ungidas,

Desabrocham as rosas à ventura.



Mas a vida das rosas pouco dura,

E as míseras em breve, enlanguescidas,

A fronte curvam, nos hastis pendidas,

Sob os raios do sol que além fulgura.



E vão largando as pétalas mimosas

Ao sopro mau dos vendavais infestos,

E os despojos finais das tristes rosas



De cor vermelha, pelo chão tombados,

Fazem lembrar sanguinolentos restos

De pobres corações despedaçados.















_____________________________________

1. Op. Cit. p. 49.





EMIGRANTES¹





Sentindo a vida incerta e mal segura

Nos seus campos natais, de quando em quando,

Os pobres cearenses vão deixando

Os lares sem conforto e sem ventura.



E por plagas mortíferas procura

Dos filhos de Iracema, o triste bando,

O que na Pátria se lhes vai negando,

Por uma lei fatal, de sina dura.



Ai!...despedaça o coração da gente,

Ouvir-lhes, no momento da partida,

O extremo adeus, num suspirar dolente.



E pensar que essa mísera coorte,

No duro empenho de buscar a vida,

Vai, sem saber, seguindo para a morte!















______________________________________

1.Op. cit., p. 51







FOME¹





No regaço da mãe desventurada

Eis desfalece a filha pequenina... – Assim no fraco hastil pende a bonina

Quando não bebe o pranto da alvorada.



Ó tu, que vais passando pela estrada,

Tem piedade da lânguida menina.;

Tem compaixão daquela flor franzina,

Consola a triste mãe desesperada.



Dá-lhe ao menos um pão com que alimente

O pequenino ser que se consome,

Salva da morte a mísera inocente.



Que nada existe igual à dor sem nome,

Ao desespero atroz que nalma sente

A mãe que um filho vê morrer de fome.













_____________________________________

1. Op. Cit., p. 52.







VERSO E REVERSO¹





Essa mulher de face escaveirada,

Que vês tremendo em ânsias de fadiga,

Estendendo a quem passa a mão mirrada,

Foi meretriz antes de ser mendiga.



Fugiu-lhe breve, nessa vida airada,

Da mocidade a doce quadra amiga,

E chegou a ser velha e desgraçada

Antes do tempo... a tanto o vício obriga!



Ontem, do gozo e da volúpia ardente,

Fosse a quem fosse, dava a qualquer hora

O seio branco e o lábio sorridente.



E hoje – triste sina! – embalde chora,

Pedindo esmola àquela mesma gente

Que dos seus beijos se fartara outrora.













_____________________________________

1.Op. cit., p. 52.





PIEDADE INFANTIL¹





Sobre a cama de ferro estreita e dura,

Soltando tristes ais, fundos lamentos,

Se estorce a enferma, em bruscos movimentos,

Presa nas garras de feroz tortura.



No entanto, ao pé do leito, o velho cura,

Que veio ministrar-lhe os sacramentos,

Entoa em graves, místicos acentos,

Longas preces ungidas de amargura.



Um gemido mais alto os ares corta,

E, de repente, enfia pela porta

Loura criança, rechonchuda e linda,



E à enferma inquire, – os olhos rasos dágua

E a voz repleta de infinita mágoa:

Ó mamãezinha, dói-lhe muito ainda?















_____________________________________

1. Op. Cit., p. 53.





CONFIDÊNCIAS¹





Eu fui contar, chorando, as minhas penas

Ao velho mar.; e as ondas buliçosas,

Julgando que eu diria essas pequenas

Mágoas comuns ou queixas amorosas,



Não quiseram cessar as cantilenas

Que entoavam nas praias arenosas.;

Mas, pouco a pouco, imóveis e serenas,

Quedaram todas, por me ouvir ansiosas.



E concluída a narração de tudo,

Mostrou-se o mar ( pois nunca tinha ouvido

História igual ) sombrio e carrancudo.



Depois, rolando as gemedoras águas,

Pôs-se a chorar também compadecido

Das minhas fundas, dolorosas mágoas.















_____________________________________

1. Op. cit., p. 58.





EVA¹





Cantam-lhe nalma ainda as sedutoras

Finais palavras do inimigo astuto: –

“Se o houveras provado um só minuto,

Deusa, decerto, e não mulher tu foras”.



E desprezando as iras vingadoras

Do céu, estende o braço resoluto

E colhe o belo, rubicundo fruto

De estranho cheiro e formas tentadoras.



Nas mãos o preme e, quando o vai partindo

Se lhe esguicha da polpa sumarenta

O róseo mosto sobre o seio lindo.



E em cada poma fica-lhe estampado

Um vivo timbre dessa cor sangrenta,

Como as insígnias rubras do pecado.















_____________________________________

1. Op. cit., p. 61.







CONTRASTE¹





Quando partimos no verdor dos anos,

Da vida pela estrada florescente,

As esperanças vão conosco à frente,

E vão ficando atrás os desenganos.



Rindo e cantando, céleres e ufanos,

Vamos marchando descuidosamente...

Eis que chega a velhice de repente,

Desfazendo ilusões, matando enganos.



Então nós enxergamos claramente

Como a existência é rápida e falaz,

E vemos que sucede exatamente



O contrário dos tempos de rapaz:

– Os desenganos vão conosco à frente

E as esperanças vão ficando atrás.













_____________________________________

1.Op.cit., p. 61.





CAMÕES¹





À guerras e naufrágios arrastado,

No longo exílio, pela ingrata sorte,

Foi sempre o amor da pátria rumo e norte

Ao vate exímio e intrépido soldado.



Depois voltando ao pátrio ninho amado,

De Natércia gentil chorando a morte,

Vergado pela dor o altivo porte,

Sem pão e amor, viveu triste e cansado.



E não bastando já tantos revezes,

O fado quis que ele estendesse um dia

A mão, pedindo esmola a portugueses.



E ralado de dor e de agonia

Morreu, depois de ver por muitas vezes

Aquela mão se recolher vazia.















_____________________________________

1. Op. Cit., p. 68.





OUVINDO O PIANO¹





Eis-te ao piano... Os amestrados dedos

Fazes correr por sobre as teclas brancas,

Urdindo as tramas de sutis enredos,

Com que os pesares, para longe, espancas.



E os circunstantes silenciosos, quedos,

De corações abertos e almas francas,

Pasmam de ouvir os mágicos segredos

Que, à força d’arte, do instrumento arrancas.



De ouvido atento à execução pasmosa,

Do gênio criador a luz radiosa,

Na tua fronte virginal, diviso.



E aí me quedo, reverente e mudo,

Em êxtase de gozo, alheio a tudo,

Sonhando achar-me em pleno paraíso.















_____________________________________

1. Op. cit., p. 70.





DECEPÇÃO¹





Seis lustros de existir penoso e ingrato

Mais dois quintos de lustro hoje completo...

Vou tentar se redijo num soneto

Uma memória digna deste fato.



Rimas procuro... penso... a fronte bato,

E rilho as unhas, e olho para o teto,

Mas sinto o pobre crânio escuro, preto

Como a tinta que lustra o meu sapato.



Invoco a Musa, espero... clamo, grito!

Tudo baldado! O engenho é frio e boto!

E, pobre estulto! Nada deixo escrito.



Eu devia supor-te mais arguto

Nesta idade madura, e triste noto

Ficas, Antônio, cada vez mais bruto!















_____________________________________

1. Op. cit., p. 76.





DEPOIS DE LER IRACEMA¹





Apenas findo a rápida leitura

Na mente as raras cenas recomponho,

Desse livro, ao começo tão risonho,

E, ao terminar, tão cheio de amargura.



Os olhos cerro em cômoda postura,

Percorro os mundos ideais do sonho,

Desfazendo, ora alegre, ora tristonho,

De um remoto passado a venda escura.



E sinto nalma uma tristeza infinda,

Vendo morrer a tabajara linda

De que nos fala o trágico poema.



E ouço a onda morrer beijando a praia,

E a triste voz plangente da jandaia

A repetir o nome de Iracema.















_____________________________________

1.Op. cit., p. 88.





A VIDA¹







Negra montanha a vida. Vão seguindo

Por ela, dia e noite, os caminheiros.;

Uns afrontando os íngremes ladeiros,

Outros, do lado oposto se sumindo.



Quando a montanha, alegres, vão subindo

Em ledo grupo, os válidos romeiros,

A passos largos, firmes e ligeiros,

Uns caminham cantando.; outros sorrindo.



Mas quando, já cansados e afanosos,

Vão descendo a montanha e contemplando

Do nada, os vastos ermos tenebrosos,



É bem diverso o quadro!...Em triste bando,

Trêmulos, curvos, tristes e morosos,

Uns caminham gemendo.; outros chorando.













_____________________________________

1. Op. cit., p. 89.





A MORTE DO JANGADEIRO¹





Ao sopro do terral abrindo a vela,

Na esteira azul das águas arrastada,

Segue veloz a intrépida jangada

Entre os uivos do mar que se encapela.



Prudente, o jangadeiro se acautela,

Contra os mil acidentes da jornada.;

Fazem-lhe, entanto, guerra encarniçada.;

O vento, a chuva, os raios, a procela.



Súbito, um raio o prosta e, furioso,

Da jangada o despeja nágua escura.;

E em brancos véus de espuma, o desditoso



Envolve e traga a onda intumescida,

Dando-lhe, assim, mortalha e sepultura

O mesmo mar que o pão lhe dera em vida.















_____________________________________

1. Op. cit., p. 90.





FUNERAL¹





Vão-na levando para a sepultura,

Amortalhada em brancos véus de linho,

Dentro de um leve esquife cor de arminho,

Ao fulgor da manhã serena e pura.



Carpindo-a segue o vento e, porventura,

Para incensá-la agita, de mansinho,

Ramos em flor, pendentes do caminho,

Cheio de sombra e orlas de verdura.



No entanto o louro enxame das abelhas

Vai atirando pétalas vermelhas

Sobre o caixão franzino que a comporta.



Cai das folhas o orvalho como pranto,

E as meigas aves em piedoso canto

Rezam contritas sufragando a morta.















_____________________________________

1.Op. Cit., p. 91.





NO CEMITÉRIO¹





Eis o seguro abrigo onde os finados

Gozam da paz feliz que sempre dura.

Quantas cenas de dor e de amargura

Por entre os frios túmulos calados!



Este, os nomes dos seus ali gravados,

Desfeito em pranto, beija com ternura.;

Outro, sentida prece além murmura,

Suspira e geme aquele em tristes brados.



No entanto, esparsos pelo campo afora,

Alguns crânios que eu vejo à flor da terra,

Riem, fitando a multidão que chora,



Nessa risada lúgubre que aterra,

Escarnecem da turba que os deplora,

Zombam dos males que esta vida encerra.















______________________________________

1. Op. Cit., p. 98.





ACARAÚ¹





Revejo em sonho a terra estremecida

Do Acaraú... seus vastos tabuleiros,

A minha casa, os belos companheiros

Que lá deixei na hora da partida.



Vejo o mercado, as Pontes, a Avenida,

O Rio, o Porto, os Mangues altaneiros,

Ouço o rugir dos ventos nos coqueiros,

E, além, do mar queixoso a voz sentida.



Do velho sino os graves tons escuto,

E lá do torreão no cocuruto,

De andorinhas avisto inquieto bando...



Entro na igreja, – minha igreja outrora, –

E vejo em seu altar Nossa Senhora,

Com seu olhar piedoso me fitando...















_____________________________________

1. Op. cit., p. 111.







O PALHAÇO¹





Ontem viu-se-lhe em casa a esposa morta

E a filhinha mais nova tão doente!

Hoje, o empresário vai bater-lhe à porta,

Que a platéia o reclama impaciente.



Ao palco em breve surge... Pouco importa

O seu pesar àquela estranha gente...

E ao som das ovações que os ares corta,

Trejeita, e canta, e ri nervosamente.



Aos aplausos da turba ele trabalha

Para esconder no manto em que se embuça

A cruciante angústia que o retalha,



No entanto a dor cruel mais se lhe aguça

E enquanto o lábio trêmulo gargalha,

Dentro do peito o coração soluça.













_____________________________________

1. Op. cit., p. 112.







CAMPESINA¹



Uns aromas sutis na veiga espalha

A mansa brisa. Suga a loira abelha

O lindo cálix de uma flor vermelha

Que o puro rócio matutino orvalha.



O vento sul, do bosque acima esgalha

E o frio lago azul a sombra espelha.;

Triste e saudosa muge a branca ovelha

Cujo cincerro finos sons chocalha.



Loira matuta vem buscando a trilha

Da fonte – um fio dágua que marulha –,

Trazendo aos curvos ombros grande bilha.



Em pleno viço a mata escura abrolha.;

E se o vento ali perpassa em doce bulha,

Treme um pingo de luz em cada folha.













______________________________________

1. Op. cit., p. 113.







LACRIMAE RERUM¹





Ouço-as gemer em convulsões estranhas

As árvores senis.; choram os ventos,

Corre o pranto dos rios alvacentos

Pelas rugosas faces das montanhas.



O mar, fervendo em mal contidas sanhas,

Povoa o ar de queixas e lamentos.;

Pelos vulcões, em vômitos sangrentos,

Expele a terra as cálidas entranhas.



No ocaso expira o sol todos os dias,

E se veste de luto pelo morto

O lago, o bosque, o vale, as serranias.



E à noite vem, com toda a mágoa sua,

Sobre as mágoas da terra sem conforto,

Velar, chorando, a compassiva lua.













_____________________________________

1. Op. cit., p. 114.





MARIA¹





Ó Virgem Mãe de Deus, casta, impoluta,

Que a serpente infernal aos pés esmagas,

Dizem teu nome a brisa, o rio, as vagas,

Em seus ecos repete ao longe a gruta.



Quando nas fráguas da renhida luta

Vês-me tremer, minha esperança afagas

Com teu olhar de refulgências magas,

Com doces vozes que a minhalma escuta.



A fronte ornada de lauréis virentes

Ao bardo inclinas e não serão latentes

Os teus louvores no meu rude verso.



Dão-te preito de amor em tons suaves

A voz dos homens, o trinar das aves,

O céu, a terra, o mar... todo o universo.















______________________________________

1. Op. Cit., p. 125.





SALVE REGINA¹





Salve, ó Rainha, Mãe dos pecadores

E dos tristes mortais vida e doçura!

Luz de esperança a derramar fulgores

Nos ínvios trilhos da existência escura.



Neste vale de lágrimas e de horrores

A ti bradamos, cheios de amargura,

Suspirando e gemendo as nossas dores

Sob a pressão do mal que nos tortura.



De lá das plagas lúcidas, serenas,

Em que habitas, por sobre as nossas penas,

Esparge o teu olhar e o teu sorriso.



E mostra-nos, depois de consumada

Do nosso exílio a aspérrima jornada,

O teu filho Jesus, no Paraíso!















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1.Op. cit., p. 126.





MEMORARE¹





Lembrai-vos, doce Mãe, terna Maria,

Quem nunca foi por Vós desamparado,

Quem vosso auxílio e maternal cuidado

Com fé Vos implorou, como devia.



Nesta esperança que me alenta e guia,

Venho buscar, de culpas carregado,

Auxílio e proteção contra o pecado,

Em vosso brando seio, ó Virgem pia.



Não aparteis a luz benigna e pura,

Dos vossos meigos olhos protetores

De quem tão confiado vos procura.



Pois essa luz de irradiações serenas,

Não somente dissipa os meus temores,

Mas em gozo converte as minhas penas.















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1.Op.cit., p.127.







AVE MARIA¹





Ave Maria, ó cândida donzela,

Toda cheia de graça e formosura,

Deus é contigo, excelsa criatura,

E o seu poder imenso em ti revela.



Bendita és tu, mimosa flor singela,

Preservada por Deus da culpa escura,

Entre todas as virgens a mais pura

E entre as mulheres todas a mais bela.



Jesus, o doce fruto originado

Do teu seio, – é bendito e celebrado

Por céus e terra em místico transporte.



Santa Maria, ó Mãe de Deus querida,

Pede por nós durante a nossa vida,

Dá-nos o céu depois da nossa morte.













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Op. cit., p. 130.







A MORTE DE JESUS¹





Da Cruz pendente expira, e, sem demora,

De susto e horror desmaia o sol na altura,

Cobre-se o céu de um manto de negrura,

E o mundo inteiro treme e se apavora.



Trajando luto, a natureza chora,

Fende-se a terra, estala a rocha dura,

E, abandonando a paz da sepultura,

Vagueiam mortos pelo campo afora...



Além ronca o trovão sinistramente...

Fuzila o raio e, em doida tempestade,

Brame e se agita o velho mar gemente.



Tinhas, decerto, ó Cristo, a divindade,

Pois na morte de um Deus, de um Deus somente,

Pode haver tanta pompa e majestade!













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1. Op. cit., p. 134.







DEUS HOMO¹





Amo-te, ó Cristo, dessa cruz pendente,

Varado o coração de acerbas dores,

Do teu suplício os bárbaros rigores

Sofrendo humilde e resignadamente.



Porque assim te revelas claramente

O Deus dos filhos de Eva sofredores,

Apto a ouvir os brados e os clamores

Da miseranda e triste humana gente.



Folgo em saber nas horas de amargura,

Que um Deus de natureza igual à minha

Sofresse a mesma dor que me tortura.



Não quadra um Deus feliz ao desgraçado.;

Por isso mesmo aos homens não convinha

Senão somente um Deus crucificado.













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1. Op. Cit., p. 135.







JUDAS¹





À sombra da folhagem verde-escura

Do galho, preso ao mastro alevantado,

Um Judas, pelo vento balouçado,

Da forca pende em cômica postura.



Um bando, em frente à exótica figura,

Exulta, ao vê-lo em semelhante estado,

E aos vozeios do povo acelerado

O bimbalhar dos sinos se mistura.



Eu fico, entanto, a meditar, e penso,

Ante o festivo e insólito alvoroço,

Que é falta de critério e de bom senso,



Uma tolice rematada enfim.;

Tantos Judas havendo em carne e osso,

Levar-se à forca um Judas de capim...













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1. Op. cit., p. 138.







NO ENTERRO DE UM ANJINHO¹





Ei-lo que segue ornado de mil flores,

De manto azul e túnica de neve,

A sorrir...a sorrir, porque tão breve

Fugiu da vida sem provar-lhe as dores.



Vão-no levando à cova... Os portadores

Do branco esquife, pequenino e leve,

São crianças também, pois não se deve

Deixar um anjo em mãos de pecadores.



Do funéreo cortejo me avizinho

E das crianças vou seguindo os passos

A cismar...a cismar pelo caminho.



E no caixão pendente dos seus braços,

Julgo estar vendo, não o louro anjinho,

Mas, uma alma de mãe feita em pedaços.













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1.Op.cit., p.140.





VIÇOSA¹





Nos alcantis da Ibiapaba erguida,

Lá se ostenta risonha entre a verdura

Dos seus vergéis regados de água pura

Da fria pedra aos borbotões nascida.



Ali, sobre um outeiro construída

Na viva rocha, há séculos perdura

A sua igreja – berço de cultura

De uma raça valente hoje esquecida...



Quando a gente, volvendo na memória

Desse templo lendário a antiga história,

Os umbrais lhe transpõe a vez primeira.



Julga estar vendo, a percorrer-lhe a nave

A passos lentos, silenciosa e grave,

A sombra augusta do imortal Vieira.















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1. Op. cit., p.143.







A MINHA MÃE¹





Quer viva alegre, quer me punjam dores,

Jamais esqueço a minha Mãe querida,

Pois trago dentro em mim como esculpida

A imagem dela ornada de fulgores.



E de contínuo em místicos ardores

Se eleva aos céus minha alma enternecida,

Pedindo a Deus que lhe prolongue a vida

E lhe conceda sempre os seus favores.



E quando eu vou rezar à Virgem pura,

Sucede que o seu nome se mistura

Às minhas preces com freqüência tanta...



Que eu temo, às vezes, não se manifeste

Enciumada a minha Mãe celeste

Do grande amor que eu tenho àquela Santa.











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1.BARREIRA, Dolor. História da Literatura Cearense, vol. IV, Fortaleza, Instituto do Ceará, 1962.; p. 55.







COMPOSTURA¹





Triste mortal que de contínuo choras,

Anunciando a todos, voz em grita,

A desventura que te infelicita

Para a qual lenitivo ao mundo imploras,



Deste modo de certo não minoras

A funda mágoa de tua alma aflita:

Riso somente e não piedade excita

O vão clamor com que teu mal deploras.



Se não sabes sofrer as tuas penas,

De rosto alegre e ânimo jucundo,

Como as almas estóicas e serenas,



Aprende ao menos a sofrer calado,

Pois a maior desgraça deste mundo

É parecer aos outros desgraçado.













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1.Op. cit., p. 58.







MARIS STELLA¹





O mar, sanhudo e altivo, cospe a vela

E, em fúria, impele o dorso ao barco amigo.

Um astro só não luz... em trevas sigo...

De susto e horror meu sangue esfria e gela.



Oscila e estoura a vaga, uiva a procela.

Espuma e ronca o mar... cresce o perigo,

Mesto, em busca do porto, em vão prossigo

E em ti os olhos cravo, ó pura estrela!



Dirige, ó Mãe, o pobre entre os escuros,

Fundos abismos desse torvo mar,

Guia os coitados nos escolhos duros!



Rumo, ao triste batel, só podem dar

Os doces risos de teus lábios puros

E a luz bendita de teu doce olhar.













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1. Op. cit., p. 63.







MATER ROSARII¹





Quantas vezes, Maria – vão sem conta! –

Quando me assalta rijo o sofrimento,

Nas contas do rosário encontro alento,

Alívio, paz, consolo, em cada conta.



Quantas vezes, parece-me, desponta

Um raio de esperança, no momento,

Em que minha alma, – aflito o experimento –

Nas contas de um rosário ao céu remonta!



Ave, Maria!... E digo tudo!... Digo:

Ave, esperança minha, amparo, abrigo

De quem mais nada tem que a noite e o dia.



Porta do Céu, Consolo dos Aflitos,

Padeço muito, choro, ouvi meus gritos,

Mãe de Jesus e minha Mãe! – Maria.













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1. Op. cit., p. 65.





VOZES DO MAR¹





No marulhar da vaga buliçosa

O velho mar declama, noite e dia,

Uma estranha canção misteriosa

Que a muito ouvido encanta e delicia.



Ora profere, em grita jubilosa,

Hinos festivos, cantos de alegria,

Ora modula, em triste voz chorosa,

Trenos de dor e salmos de agonia.



Não raro ele tem brados de amargura,

Uivos de fera e algo que parece

O gargalhar sinistro da loucura.



E às vezes lembra, na toada mansa,

Rumor de beijos, segredar de preces,

E balbucios meigos de criança.















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1. Op. cit., p. 75.







TRISTES REMINISCÊNCIAS¹





Quantas cenas de dor, em sua longa vida,

Tem na face do globo o mar presenciado,

Depois de ouvir Adão chorar o seu pecado

E a Eva maldizer o filho fratricida!



Ouviu da multidão imensa submergida

Nas águas do dilúvio o angustioso brado,

Viu sempre e em toda a parte o homem torturado

De mágoas e aflições, sem conta e sem medida.



Por mil vezes seguiu o curso furibundo

Dos flagelos de Deus desconsertando o mundo:

–Terremotos, vulcões, a peste, a fome, a guerra.



E pois, guardando o mar tudo isso na memória,

Repete sem cessar, chorando, a longa história

Dos milênios de dor que pesam sobre a terra.













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1. Op. cit., p. 77.





VESPERTINO¹





Sobre as veigas e campos perfumados

Se estende um véu de sombras e palores.;

Cingem, no entanto, vívidos fulgores

Os denegridos cerros escalvados.



Enxada ao ombro em cismas mergulhados

Voltam do campo os rudes lavradores.;

Soam no ar bucólicos rumores.;

Doces mugidos, cantos magoados.



Ao longe o sino em doloroso acento

Geme uma prece.; a juriti suspira,

De quando em vez, um brado de lamento.



E na floresta – gigantesca lira –

Vai tristes nênias entoando o vento

Ao rei da luz que no poente expira.















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1.Op. cit., p. 78.





CAMPESTRE¹







Das longínquas montanhas esfumadas

Transpondo os negros, alterosos cumes,

O astro-rei desponta em vivos lumes,

Banhando a selva, o campo, as esplanadas.



Abrem flores de pétalas nevadas

Pejando o ar de lânguidos perfumes.;

Formosas borboletas, aos cardumes,

Voejam pelo campo estonteadas.



Sobre os ramos floridos, buliçosos,

Entoam docemente os passarinhos

Cantos suaves, trinos maviosos.



E aos casais, entre beijos e carinhos,

Arrulham pombos – noivos amorosos –

Na doce e branda tepidez dos ninhos.













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1. Op. cit., p. 79.







A ESMOLA¹





– Suba! Gritam-lhe arrogantemente,

Do alto da suntuosa escadaria.

E a pobrezinha, a mão nevada e fria,

Subindo, estende e implora sorridente.



Esmola para minha mãe doente,

E pela fome às portas da agonia.

Uma voz de trovão: – “rua vadia!

Vá ver se encontra ocupação decente!”



Desce, chorando. Lá embaixo a espera

A mendiga que nem subir pudera.

Beija-lhe o rosto, enxuga o pranto e sai.;



– Mamãe, que homem tão mau esse que humilha

A pobreza infeliz?!” – “Cala-te, filha!

Não fale dele nunca. Ele é teu pai!”













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1. Op. cit., p. 84.





VIA DOLOROSA¹





Vou-me sentindo velho e fatigado

De mourejar por esta ingrata vida:

A mente se me torna enfraquecida

E o corpo tenho para o chão curvado.



E mesmo assim, neste penoso estado,

Que a discreto repouso já convida

Uma incessante e temerosa lida

Me consome o viver triste e cansado.



E o velho coração – quem tal dissera –

Persegue ainda a muita vâ quimera

No louco intento de encontrar ventura.



E nestas lutas vou cumprindo a sorte,

Até que venha a compassiva morte

Levar-me à grande paz da sepultura.















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1. Op. cit., p. 86.







A MORTE¹





Tenho plena certeza de que existe

Uma outra vida além da sepultura,

Vida feliz, melhor e de mais dura

Que esta existência aborrecida e triste.



E sei, também, que a vida ali consiste

Na fruição da paz e da ventura

Que neste mundo embalde se procura,

Num doido afã de que ninguém desiste.



Por isso mesmo, em íntima alegria,

Eu te desejo, ó morte.; à tua espera

Minha alma se consome noite e dia.



Com ânsia igual ainda eu te quisera,

Quando essa vida além da campa fria

Fosse apenas um sonho, uma quimera.













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1.Op. cit., p. 87.







SONHOS MORTOS¹





Tive sonhos azuis, na mocidade,

Que vinham, como pássaros em festa,

Encher-me o seio – um canto de floresta –

De gratos sons, de viva alacridade.



Mas um dia a cruel realidade

Pôs-lhes em cima a rude mão funesta

E exterminou-os... Nenhum mais me resta

Na minha negra e triste soledade.



Hoje o meu seio inerte, mudo e frio,

Se converte em túmulo sombrio

Por sobre o qual gementes e tristonhos,



Alvejantes fantasmas se debruçam:

São as meigas saudades que soluçam

Sobre o jazigo eterno dos meus sonhos.













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1. Op. cit., p. 88.







CENA DOMÉSTICA¹





Na mesa, o parco almoço há muito esfria

À minha espera, que me ocupo agora

Em ler matinas. Ralha da demora

A Rita em fúria, e o gato a um canto mia.



De quando em vez, na porta, a velha espia.;

E enquanto faz não sei o que lá fora,

Sobe à mesa o bichano, e eis que devora

O peixe todo que no prato havia.



Voltando à sala e vendo aquilo a preta

Enxota o bicho e... zás... lá foi-se um prato

Varrido pela manga da jaqueta.



Então, raivosa, diz, batendo o gato:

– “Isto parece arte do capeta!

Cruzes, canhoto! Figa, pé de pato!”













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1. Op. cit., p. 91.





VIRA A MANGA¹





– Lolita, vira a manga, o Padre passa...

Padre traz sorte... Vira que o danado

Indica, sem errar, um bom noivado...

– Dizem três moças no jardim da praça.



– Lolita, toma tento! É só chalaça,

É coisa de batuque, de tarado,

É só superstição... – Respondo irado,

Mudando em dois sorrisos a ameaça.



– Se queres, vira as costas à vaidade,

Vira a língua, aos repastos de honras presa,

Vira o caráter, faze-o de bondade.



Que só isso traz sorte com certeza,

E, feito um mimo aos olhos da cidade,

Terás um casamento de princesa...















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1. Op. cit., p. 93.





NOITE DE NÚPCIAS¹





Noite de gozo, noite de delícias,

Aquela em que a noiva carinhosa,

Vai do seu noivo receber carícias

No leito sobre a colcha cor-de-rosa.



Sonha acordada coisas fictícias,

Volvendo-se sobre o leito, voluptuosa,

E o anjo de amor e de carícias

Fecha a cortina tênue e vaporosa.



Ouvem-se beijos tímidos, ardentes,

Por baixo da cortina assim velada,

Em suspiros tristes e dolentes.



Se fitássemos a noiva agora exangue,

Vê-la-íamos bem triste e descorada

E o leito nupcial banhado em sangue.











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1.Diz Dinorá Tomaz Ramos que esse soneto, e bem assim Vira a Manga,

antes transcrito, não pertencem ao Padre Antônio Thomaz, apesar de

figurarem com o seu nome em revistas e jornais (op. cit., p.58).





DESENCANTO¹





Muitas vezes cantei nos tempos idos

Acalentando sonhos de ventura:

Então da lira a voz suave e pura

Era-me um gozo d’alma e dos sentidos.



Hoje vejo esses sonhos convertidos

Num acervo de penas e amargura,

E percorro da vida a estrada escura

Recalcando no peito os meus gemidos.



E se tento cantar como remédio

Às minhas mágoas, ao sombrio tédio

Que lentamente as forças me quebranta,



Os sons que arranco à pobre lira agora

Mais parecem soluços de quem chora

Do que a doce toada de quem canta.













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1.Último soneto do poeta, escrito na Santa Casa de Sobral, a 3 de fevereiro

de 1941,em retribuição a uns versos do seminarista Osvaldo Chaves.



Manoel NICODEMOS ARAÚJO





NICODEMOS ARAÚJO, – poeta e historiador – nasceu em Bela Cruz, Ceará, a 10 de março de 1905. Filho de João Lopes de Araújo e dona Francisca Eucária da Silveira. Em Acaraú, representou o distrito de Bela Cruz, na Câmara Municipal, durante o período de 14 de março de 1928 a outubro de 1930, perdendo o cargo em virtude do movimento revolucionário, daquele ano. Em 1936, foi eleito novamente vereador, assumindo até novembro de 1937, quando foi estabelecido o Estado Novo, pelo Presidente Getúlio Vargas. Durante vários anos foi Redator-Chefe do Jornal “O Acaraú”. Publicou seu primeiro soneto, intitulado Virgem da Conceição, no jornal “A Comuna”, edição de 15 de maio de 1923, editado na cidade de Acaraú. Em 1933, juntamente com o amigo João Venceslau Araújo – Joca Lopes, funda em Bela Cruz o Jornal ALVORADA e uma pequena biblioteca. Estreou na literatura em 1935, com o livro de poemas “Harmonia Interior”, período em que o Brasil passava – política e socialmente – por uma série de transformações: Eleição de Getúlio Vargas, em 34.; sublevação comunista, em 35 – resultando, em 37, na dissolução do Congresso e na implantação do Estado Novo, que se estenderia até 45. Escreveu valiosos trabalhos sobre a região norte do Ceará, notadamente, sobre Bela Cruz e Acaraú. É autor de 12 livros de poesias, 12 de história, com incursão pelo teatro, biografia e genealogia. Pertenceu a Academia Sobralense de Estudos e Letras, Academia Cearense de Letras, Academia de Letras Municipais do Brasil e a União Brasileira de Escritores. Faleceu na cidade de Acaraú, a 23 de junho de 1999, sendo sepultado no dia seguinte em Bela Cruz, sua cidade natal.













À MINHA MÃE¹





Minha mãe querida e santa,

Nesta existência de espinhos

Foram teus doces carinhos

Que meus dias consolaram.

Neste mundo de misérias

Enganos e provações

Tuas santas orações

Meus fracos passos guiaram.



Antes mesmo que meus olhos

Enxergassem a luz da vida

Já eras tu, mãe querida,

Guarda fiel do meu ser.

Quantas noites de vigílias,

Cuidados e sofrimentos!

E tinhas nesses tormentos

Heróico e santo prazer.



O meu berço de criança

Não se privou um instante

Da guarda suavizante

Do carinho maternal

Às vezes – quanta alegria!

Eu no bercinho dormindo,

E ela ao meu lado sorrindo...

– Sorriso celestial.



Muitas vezes, nestas noites

De luar formoso e brando,

Ela bem alto me alçando

Cantava cheia de fé:

– Dindinha, lua bondosa,

Dá-me leite com farinha

Para fazer a papinha

Do meu querido bebê.



Sete anos. Minha infância

Que jamais há de voltar!

Gostava de repousar

No seu regaço encostado,

Naquele ninho suave,

Docemente dormitava,

Enquanto ela cuidava

Do meu cabelo anelado.



À noite, na sua alcova,

Ia ensinar-me a rezar.

Para um dia penetrar

No santo Reino da Luz

E minhas mãos pondo em concha,

Toda ternura e carinho,

Dizia:– agora, filhinho,

Vamos falar com Jesus.



No vigor da adolescência,

Quando este mundo enganoso

Nos mostra o jardim formoso

Da traiçoeira ilusão,

Quantas vezes a cabeça,

Repousada em seus joelhos,

Bebia os sábios conselhos

Que guardo com devoção.







Quando em casa penetrava

Já fatigado da lida

Das grandes lutas da vida

Ela tão cheia de amor

Vinha com doces palavras

Feitas de santa ternura

Consolar-me da amargura

Das negras mágoas da dor.



E hoje embora afastado

De teu lar, oh! mãe bondosa,

De tua lição preciosa

Procuro seguir o trilho,

E te peço ajoelhado:

– Na tua prece tão pura,

Oh! mãe de amor e ternura,

Não esqueças o teu filho.



































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1.ARAÚJO, Nicodemos. Harmonia Interior, 1935, pp. 42 a 46.











SÃO JOSɹ







Da tribo de Judá, heróica e forte,

Vieste ao mundo, oh! santo carpinteiro,

Para ser pai nutrício do Cordeiro

Que para nos salvar rendeu-se à morte.



E nos dulçores de tão alta sorte,

Da Mãe de Deus, ditoso companheiro,

Da mais pura virtude no luzeiro

Tiveste, neste mundo, rumo e norte,



Lá na mansão de perenal ventura,

Não esqueças o pobre peregrino

Que luta e sofre nesta terra escura.



Ao compassivo Cristo soberano

Pede que lance o seu perdão divino

Sobre as mazelas do vivente humano.





















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1. Op. cit., p.49.







SANTA TERESINHA DE JESUS¹





Ao Revmo. Pe. Antônio Thomaz





Qual terna jardineira ativa e cuidadosa

Que zelosa e gentil as flores acarinha,

Assim foste na vida, oh! meiga Teresinha,

As flores da virtude amando, carinhosa...



Mas querendo ampliar a tua ação bondosa,

E achando neste mundo a terra tão maninha,

Voaste para o Céu, oh! venerada minha,

E, mil flores, de Lá, nos mandas, generosa.



Oh! bela Teresinha, oh! santa carmelita,

Ouve sempre o clamor da humanidade aflita,

Do suave dulçor desse Jardim de Luz.



Compassiva e gentil, perfuma as nossas dores

Da doce emanação das tuas lindas flores,

Oh! Jardineira fiel do Édem de Jesus.























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1.Op.cit., p. 51.









ESTRADA FATAL¹





A nossa vida é bem a semelhança

D’uma comprida e sinuosa estrada.

Partimos rindo, cheios de esperança,

Aos lampejos do sol de luz dourada.



E prosseguimos... Nossa vista alcança

Além, o vulto da ventura amada...

Lajedos de ouro, sopros de bonança,

Tudo encontramos na feliz jornada.



Um dia, à curva da velhice, entanto,

Chegamos. Turva-se o fulgor da altura,

Muda-se o riso em doloroso pranto.



Então, marchamos trôpegos, sem norte

Até rolarmos na voraz fundura

Do precipício tétrico da Morte.





























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1. Op. cit., p. 57.





RELEMBRANDO¹





Eu fui rever, um dia, curioso,

A velha casa escura, abandonada,

Em que passei o tempo venturoso

Da minha terna infância descuidada.



Naquele velho ninho dulçuroso – Relicário bendito da alvorada

De minha vida, – recompus, saudoso,

Os sonhos doces dessa fase amada.



Quanta saudade dolorosa, infinda,

Dos louros dias dessa quadra linda,

De doçura, de risos, de bonança...



Oh! velha casa que eu venero tanto.

És como o escrínio precioso e santo

Dos meus dourados sonhos de criança.

































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1. Op. cit., p.59









CONVERSÃO¹







– Cessai vosso cantar, oh! meigos passarinhos,

não vedes, que esse canto a minha dor aumenta?

Ouvindo o vosso trino, oh! ledos amiguinhos,

Ouço meu coração também, que se lamenta...



Assim pedia um moço, – um órfão de carinhos –

Que vagava a curtir amarga dor cruenta,

A um bando jovial de lindos estorninhos

Que saudavam a manhã esplêndida, orvalhenta.



O moço suplicava... Os pássaros cantando

Nem quiseram-no ouvir. Entanto, pouco a pouco,

Foi ele a sua dor acerba deslembrando...



Horas depois um som estranho se notava

Em meio o vozear do passaredo louco:

– Era o moço que a rir feliz, também cantava...























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1. Op. cit., p. 73.









MÁGOA SECRETA¹







Quem me vê a sorrir supõe provavelmente

Que palmilho, cantando a estrada da ventura.

Engano...Este meu riso é o manto transparente

Com que tento ocultar a dor que me tortura.



Existe dentro em mim uma dor inclemente,

Que há tempos me lançou no abismo da amargura

E qual ferida atroz, inexoravelmente,

Derrama no meu ser o fel da desventura.



Mas, na fronte estampada a máscara da calma,

Eu vou serenamente, os lances recalcando,

Desta mágoa sem fim, que mora na minh’alma.



E quando a dor cruel mais me compunge o peito,

Eu rio...E quem me ver sorrir fica pensando

Que sou muito feliz, que vivo satisfeito.



























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1. Op. cit., p. 81.









O RIO ACARAÚ¹





A José R. Fontenele





Lá da “Serra da Mata”, alcantilada,

O “ACARAÚ”, soberbo e caudaloso,

Ao impulso do inverno poderoso,

Desce na sua extensa caminhada.



Ninguém ousa detê-lo na jornada.

E o legendário rio impetuoso,

Marcha, entre o verde carnaubal viçoso,

Ao suave cantar da passarada.



No seu imenso leito serpejando,

Passa continuamente murmurando

Os brandos sons de singular canção.



E o velho mar o abraça jubiloso,

Como um pai recebendo carinhoso,

O filho amado de seu coração.





















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1. ARAÚJO, Nicodemos. Vozes da Alma, 1946.; p.10.







LÍNGUA BRASILEIRA¹







Transplantada, senil, do Velho Continente,

Para esta terra ingente e amada, de Cabral,

Remoçaste, feliz, no amor da nova gente,

Doce voz do Brasil, língua nacional.



Cultivada ao vigor do cérebro fulgente

Dos astros do saber, num zelo paternal,

Adquiriste o brilho excelso e resplendente

Que veste de fulgor esta Pátria imortal.



Ó música gentil que o nosso ouvido embala...

E ao nosso coração diretamente fala,

Numa festa de sons, cheia de encantos mil,



Somente tu possuis legítima expressão

Para a glória cantar desta grande Nação,

Lira do meu amor, língua do meu Brasil.





























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1. Op. cit., p.20.









MATER CHRISTI¹





Ao Revmo. Pe. Odécio Loiola





Ó doce Mãe de Deus, augusta e pura,

Cheia de graça e ungida de bondade.;

Relicário bendito de ternura.;

Luz tutelar da pobre humanidade.



Quis o bom Deus, sublime criatura,

Dar-te a mais alta e augusta majestade:

– Do Eterno Reino da celeste altura

Fez-te Rainha, ó fonte de piedade.



E ergueu-te, sobre tudo, a Providência,

Quando em sua infinita onipotência,

Em seu saber intérmino, profundo,



Numa noite imortal de excelso brilho,

Fez à terra descer, feito teu filho,

O próprio Deus, para remir o mundo.





















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1.Op.cit., p. 58.











O MÚSICO¹





A Lauro Menezes





Seu filhinho mais novo, o mais querido

Adoecera inesperadamente,

Mas ele vai, por um contrato urgente,

Levando, embora, o coração partido.



E enquanto o povo brinca divertido,

Ele sofre, a tocar, nervosamente,

Supondo ouvir do pequenino doente

O doloroso e tímido gemido.



Termina a festa. E o músico, apressado,

Regressa ao lar, trazendo ao ninho amado,

Com seu amor, um pouco de conforto.



Mas ao entrar na lôbrega morada,

Encontra a esposa em lágrimas banhada

E, sobre a esteira, o seu filhinho morto.























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1. Op. cit., p.62.







AS ONDAS¹



Ao Dr. João Ribeiro Ramos





Formadas no alto mar profundo, ingente,

Rolam, cantando, as ondas marulhosas,

Enfeitadas de espuma alvinitente,

No turbilhão das águas caprichosas.



Mas na jornada, descuidosamente,

Um dia as pobres ondas rumorosas

Vão desfazer-se no areal albente

Da praia, em longas queixas dolorosas.



São mesmo assim nos corações, os sonhos.

Formam-se em bando, lépidos, risonhos,

Como as ligeiras ondas do oceano.



E da ilusão na espuma fugidia,

Vão prosseguindo, até quebrar-se, um dia,

Na escura praia hostil do Desengano.



























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1. Op. cit., p.74.







ANALOGIA¹





Ao Dr. Filgueiras Lima





Eu gosto de escutar o velho mar gemente,

No perene vai-vem das ondas rumorosas...

Às vezes impelindo as águas brandamente.;

Às vezes ebulindo em sanhas procelosas.



Tocam diretamente ao coração da gente.

Do verde mar imenso as falas misteriosas,

Seja no bravejar da tempestade horrente.;

Seja no ciciar das auras bonançosas.



Há tanta semelhança e tanta identidade

Entre os sonhos pueris da pobre humanidade

E a treda inquietação das ondas do oceano.



Que suponho, escutando a sua voz sentida,

Que o mar tem uma vida irmã da nossa vida,

Sofrendo a mesma dor que oprime o ser humano.























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1.Op.cit., p.78.









AO LUAR DE UM SONHO¹





Eu sonhei com você.

Era uma noite

De esplendoroso luar...

E o vento em brando e carinhoso açoite,

Ciciava na fronde do arvoredo

O virtuoso e místico segredo

Das almas puras,

Na ebriez de um cândido sonhar...



Andavam pelo ar

Doces emanações

De lírios, crisântemos e açucenas...

E a noite era tão linda,

As estrelas brilhavam tão serenas,

Que, – embora fosse um sonho,– eu sinto ainda

As carícias da luz, – a luz infinda

Daquela noite edênica, sem par.



E nós dois passeávamos sorrindo,

Num doce encantamento,

Ao clarão do luar mimoso e lindo,

Aos harpejos sinfônicos do vento.

Você, – olhos negros, meiguíssimos, profundos,

Sorriso de cristal,

Parecia uma deusa de outros mundos,

– Os luminosos mundos do ideal.



E a sua voz de seda, em doce cavatina,

Delícias ideais trazia aos meus ouvidos,

Como o terno harpejar de angélica surdina,

Elevando-me ao céu, num gozo dos sentidos.









Depois eu despertei...Ó benfazejo sonho,

Suave luar risonho,

Embriagante e cândida ilusão,

Que,– embora fosse um sonho,– eu sinto ainda,

Povoando da música mais linda,

O atro deserto do meu coração.



























































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1.Op. cit. p. 88.







MEU ACARAÚ¹





Acaraú, ninho amigo,

Meu bem amado torrão,

Teu nome eu tenho comigo,

Gravado no coração.



Rincão querido e formoso

Dos gigantes coqueirais.;

Escrínio maravilhoso

Dos mais belos ideais.



Mimoso jardim florido,

Perfumando a beira-mar.;

Doce recanto querido

Desta terra de Alencar.



Desde os morros da “Almofala”

Ao velho “Jericoacoara”,

Tua linda praia embala

Um sonho de Tabajara.



As brancas dunas ao sol,

Costeando o imenso mar,

Parecem vasto lençol

Estendido pra enxugar.



Quero bem à tua igreja,

Praças, ruas, avenida,

E o rio que rumoreja,

Entre a ramagem florida.











“São Luis, “São Benedito”,

“Outra Banda”, “Açude Novo”,

– Bairros do solo bendito

Onde se agita o teu povo.



E a passarada, cantando

Nas Mongubeiras em flor,

Vai, alegre, nos lembrando

Sonhos dourados de amor.



Terra do Sal, do Pescado,

Da Cana, dos Cereais,

Do Carnaubal lequeado,

Dos grandes Oiticicais.



Velho rincão decantado

Do valente Tremembé,

Onde luta, denodado,

Um povo cheio de fé.



Sobre o dorso da jangada,

Teu heróico pescador

Mostra a bravura arrojada

Do teu fecundo labor.



Salve ninho estremecido,

Gleba formosa e gentil,

Acaraú bem querido,

– Relicário do Brasil.









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1. Op. cit., p. 92.







EVOCAÇÃO¹





À memória sempre viva, de meu querido pai





Bela Cruz, minha terra, adorado viveiro

Dos meus ideais de moço, ornados de ventura,

Que recordo sonhando...Áureo tempo fagueiro

Que pôs na minha vida um favo de doçura.



As casas, a Matriz, o mangueiral faceiro,

O verde carnaubal flabelando naltura,

Tudo, tudo me fala ao coração, – romeiro

Deste peregrinar de saudade e ternura.



E, nesta evocação cariciosa e boa,

Avulta aos olhos dalma, e a vida me alumia,

A visão de meu pai que, do céu, me abençoa.



Ó minha Bela Cruz, de te querer não canso,

Que o berço já me deste, e hás de me dar, um dia,

Sete palmos de chão, para o final descanso.





















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1. ARAÚJO, Nicodemos. Falas do Coração, 1955, p.15.







PADRE ANTÔNIO THOMAZ¹





No 10º aniversário de seu passamento





Há dez anos partiu, na grande caminhada

Da qual jamais retorna a humana criatura,

O Levita de Cristo, amante da Cultura,

Primoroso cultor da palavra rimada.



Sua lira de mestre, egrégia e sublimada,

Soube cantar em voz maravilhosa e pura,

O Céu, a Terra, o Mar, a humana vida escura,

As campinas em flor e a leda passarada.



Imorredoira seja a rútila memória

Desse bardo sem par que, nimbado de glória,

Do Bem seguiu na vida o lúcido roteiro.



E que em sonhos geniais belíssimos, imerso,

Derramou, generoso, os mimos do seu verso,

Num chuveiro de luz, pelo Brasil inteiro.





















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1.Op. cit., p. 17.







PAU BRASIL¹





Ó árvore bendita, opulenta, altaneira,

Da selva do Brasil tu tens a primazia:

– Acolheste, gentil, à sombra hospitaleira,

O valente Cabral, na heróica travessia.



De ti se fez a cruz que pela vez primeira,

Foi plantada no chão das praias da Bahia,

Para ao mundo atestar que a Pátria Brasileira

À luz da fé cristã pra sempre viveria.



Gigante vegetal airoso e rubicundo,

Antiga afinidade histórica sustenta

O laço que te prende a este solo fecundo.



Esta terra a quem deste o nome varonil,

Fornece ao teu viver a seiva que alimenta,

Circula no teu lenho o sangue do Brasil.



























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1.Op. cit., p. 23.







SILÊNCIO, CORAÇÃO¹





A João Damasceno Vasconcelos





Silêncio, coração! Não fales da amargura

Que mora na minhalma e aflige a minha vida.

Não digas a ninguém que íntima ferida,

Inexoravelmente os dias me tortura.



Mostrar ao mundo ingrato o riso da ventura,

Quando o peito soluça em ânsia dolorida,

É nobre e heróico, até. Levarei de vencida

Os espinhos cruéis da minha estrada escura.



Se o poeta nasceu para sofrer, que importa

Que o corvo de Allã Pöe crocite à minha porta,

Numa atroz ironia aos versos que componho?



Transformando em sorriso as lágrimas do pranto,

Lançarei vida em fora as notas do meu canto,

E ornarei de harmonia o esquife do meu sonho.

























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1.Op.cit., p. 33.







NOSSA SENHORA APARECIDA¹





A José Edson Magalhães





Bendita sejas, Mãe Aparecida,

Augusta Soberana imaculada,

Cuja imensa bondade é proclamada

Por céus e terra, em voz de amor ungida.



Das multidões a prece comovida

Se eleva à tua corte sublimada,

Implorando esta paz abençoada

Que vem do céu abençoar a vida.



Ó poderosa e excelsa Padroeira,

Conserva sempre a gente brasileira

Feliz e nobre, unida e varonil.



Que viva e cresça este País amado

Sob o teu santo e maternal cuidado,

Minha Nossa Senhora do Brasil.





















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1.Op. cit. p. 49.









REMINISCÊNCIAS¹





Meia noite, talvez... Lá no horizonte assoma

A lua, semelhando um medalhão de prata,

Enquanto a viração nos traz o doce aroma

De um jardim que viceja à margem da cascata.



Fico olhando a ascensão da sideral redoma

Pelo infinito azul que o lago azul retrata.

E escuto da saudade o evocativo idioma,

Na voz de um trovador, distante, em serenata.



Vêm-me à lembrança, então, por mágicas antenas,

Meus tempos de rapaz... (Ah! que ilusões amenas

Enfeitam de esperança a vida, nessa idade!)



E nesta evocação recordo, comovido,

As serestas de outrora, em meu torrão querido,

Onde passei, sonhando, a minha mocidade.





























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1. ARAÚJO, Nicodemos. Folhas do Outono, 1968, p.15.









AMANHECER NO MAR¹





Amanhece no mar... Medrosa, a lua

Vai se escondendo lá detrás do outeiro.

Uma frota de pesca, em seu roteiro,

Na imensidade líquida flutua...



E eu contemplo esta praia extensa e nua,

Onde sopra o terral manso e fagueiro.

Bailam gaivotas no seu vôo ligeiro,

E o murmúrio das ondas se acentua...



O tempo passa... A luz da aurora alveja...

Uma luz promissora e benfazeja

Que espanta as trevas aminora as mágoas.



E o sol lembrando enorme concha de oiro,

Emerge, aos poucos, fulgurante e loiro,

Do seio arfante e verde-azul das águas.





























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1.Op. cit., p.23.







O GALO¹



A Gurgel do Amaral





Armado de esporões, intrépido e faceiro,

Ostentando, garboso, a esplêndida plumagem,

O galo altivo e alegre, é o chefe do terreiro,

E de todos ali recebe vassalagem.



Quando morre no poente o sol em seu roteiro,

Deixando estrias de oiro e sangue na paisagem,

Eis o galo de pé no cimo do poleiro,

Como um guarda fiel no zelo e na coragem.



E, esteja enxuto e calmo ou chova e o vento açoite,

Inicia o seu canto, exato, a meia noite,

Marcando o andar do tempo em notas de harmonia.



E cantando, e cantando, até que passa a aurora,

Envia a todo mundo a saudação sonora,

E acorda o camponês, para o labor do dia.



























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1.Op. cit., p. 29.







MEU VIZINHO LAVRADOR¹





Ao Revmo. Pe. Osvaldo Chaves





Ao romper da manhã que a luz espalha,

O esperto lavrador, meu bom vizinho,

Ruma ao roçado onde feliz trabalha

Para manter o seu querido ninho.



E avança pela mata que farfalha,

Ouvindo em cada galho um passarinho.

Vai preso à enxada o seu fardel de palha,

E o cachorro a brincar pelo caminho.



E quando o sol no ocaso já se encobre,

Ei-lo de volta à sua casa pobre,

Mas onde encontra as afeições mais ternas.



Gosto de ver aquele quadro lindo:

– Junto da porta a esposa lhe sorrindo,

E a filharada lhe abraçando as pernas.























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1.Op. cit., p. 45.







CIDADE DE ACARAÚ¹





Ao Exmo. Sr. Dom Edmilson Cruz





Oh! minha Acaraú, nobre cidade amada,

Onde encontrei na vida o meu segundo pouso,

Gosto de ver-te assim sob este sol radioso,

Majestosa e tranqüila, em farta luz banhada.



Vejo, a brincar feliz, cantando, a passarada,

No rancho alegre e bom do mangueiral frondoso.;

Contemplo o rio ancião que descrever não ouso,

A ponte, a caixa d’agua, a ilha alcatifada.



Admiro a Matriz na bela arquitetura,

– Marco de fé cristã que avança pela altura,

Dominando jardins e praças e capelas...



E os coqueiros senis de palmas viridentes

Avisto, a cada passo, eretos, imponentes,

Lembrando um pelotão de enormes sentinelas.

























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1.Op. cit., p. 55.







ALMOFALA¹



Ao Dr. José Maria Sales





Aos carinhos gentis da viração marinha,

Sob a concha do espaço imenso e cor de opala,

Ei-la modesta e alegre, a vila de Almofala,

Ressurta do areal enorme que a retinha.



Toda branca e formosa, a velha capelinha,

Pela antena da fé, à própria alma nos fala,

E como que postado ali para guardá-la

O humilde casario em fileiras se alinha.



Bem perto o mar imenso estruge, e brame, e espuma...

As jangadas abrindo as velas, uma a uma,

Avançam no vaivém cantante das marés.



E o brando farfalhar do coqueiral virente

Às vezes vem trazer à lembrança da gente

O bizarro torém dos bravos Tremembés.



























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1.Op. cit., p. 56.

MEU CAVALO DE TALO¹



Uma lembrança linda e bem querida,

do meu bom tempo de menino pobre,

lembrança que ficou na minha vida

e que a saudade, vez em vez, descobre,

foi meu cavalo de talo.

Talo de carnaúba era a montada.

Dois cortes, na cabeça, em semidiagonal,

formavam-lhe as orelhas. Um coração

era aberto na testa avermelhada.

E os olhos desse exótico animal

que jamais esqueci,

eram dois caroços de jeriquiti.

A rédea de cordão,

torcida e retesada,

mantinha-lhe a cabeça sofreada.



Então eram os passeios e carreiras,

nas façanhas eqüestres pela praça.

Havia cavalos pé-duro e cavalos de raça.

Pois numerosos eram os parelheiros,

tantos eram, também, os cavaleiros.

E esse turfe bizarro de meninos

dispostos e traquinos,

era das nossas melhores brincadeiras.

Oh! dias de inocência e de esperança,

que nunca me saíram da lembrança!



Tudo isso, porém, já vai distante.

Ah! minha infância alegre e fascinante!

Era-me a vida, então, um sonho azul-dourado

Que se escondeu nas dobras do passado.

Essa quadra tão doce e tão feliz,

Meu Deus, quem não recorda e não bendiz?



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1. ARAÚJO, Nicodemos. Cantos do Entardecer, 1979.; p. 25.

JERICOACOARA¹



Alva, plana, macia, extensa, fascinante.

É assim a praia de “Jericoacoara”

obra maravilhosa e rara

da natureza. O afoito navegante

que ali passa, em seu oficio temerário,

talvez recorde, ainda, o Forte do Rosário,

erguido há quase quatrocentos anos.

Ali nossos guerreiros espartanos

infligiram duríssimos reveses

às hordas invasoras dos franceses.



Lá da curva onde o mar emenda no infinito

as ondas partem, sucessivamente...

E vêm rolando, espumando e uivando, tumultuosas,

até que, numa festa esplêndida de cores,

se despedaçam violentamente

nas bordas escabrosas

do serrote de arenito

que ergue o dorso e se alonga, alastrado de grama

e ornamentado de ervas e de flores,

tornando ainda mais belo o belo panorama.



É um encanto ficar-se ali para escutar

a perene canção oceânica do mar.

Em cima – o céu azul, em sua imensa tela.;

Em baixo – a praia branca, imensamente bela.



Alguém que, porventura,

daquela praia histórica se acerque,

nestas noites de luar esplendecente e ameno,

supõe ver, a vagar na arenosa planura,

as sombras de Jerônimo de Albuquerque

e de Soares Moreno.



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1.Op. cit., p.49.









FLORES¹





Manhã cedinho, eu gosto imensamente

de olhar as flores cândidas, franzinas,

– rosas, lírios, miosotis e boninas –.

Policromia encantadora e olente.



Como faz bem ao coração da gente

caminhar, pelas horas matutinas,

nos vergeis, nas devesas, nas campinas,

sonhando, alegre, entre o ramal florente:



Flores... Existe em seu encanto e essência

qualquer cousa de graça, de inocência,

de ternura, de sonho, de esperança.



Nos campos, nos jardins, seja onde for,

contemplando-as, eu vejo em cada flor

um sorriso mimoso de criança.





























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1.Op. cit., p. 55.









O VAQUEIRO¹





O vaqueiro, em seu traje de guerra:

– Guarda peito, Perneira e Gibão –

na ribeira, no vale ou na serra,

é um bravo que orgulha o sertão.



Cavalgando o ginete ligeiro,

na armadura de couro que veste,

destemido e garboso, o vaqueiro

representa um herói do Nordeste.



Sobre as reses que vão “desgarradas”,

os maiores perigos destrói.;

vence montes, rechãs e quebradas,

demonstrando sua fibra de herói.



Quem o vê nessa sua “peleja”

em seu rude labor temerário,

tem a firme impressão que ele seja

um guerreiro valente e lendário.



Quer tangendo, no aboio saudoso,

quer buscando, nos chãos de pastagem,

o vaqueiro fiel, cuidadoso,

é padrão de trabalho e coragem.













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1.Op. cit. p.57.







MANHÃ SERTANEJA¹





Ao Dr. Francisco José Ramos Gomes





É manhã no sertão. A esbelta carnaubeira

sacode, ao vento brando, a fronde verdejante

e o rio, em turbilhões, dominando a ribeira,

rola as águas buscando o velho mar distante.



Ali é a casa-grande, alpendrada e fagueira,

que acolhe, hospitaleira, o cansado viajante.

Tem ao lado o curral, onde a vaca leiteira

Fornece refeição nutritiva e abundante.



Ao fulgor da manhã, tudo se aclara e doura.

Homens passam, cantando, em rumo da lavoura,

Tendo a fé dentro dalma e sobre o ombro a enxada.



E o sol parece um disco esplendoroso e lindo,

Suspenso do infinito azul, retransmitindo

O canto matinal da alegre passarada.























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1.Op. cit., p.58.







DIA DOS PAIS¹





Dia dos pais, é data de alegria.;

festa do amor, festa da gratidão

àquele que no lar tem primazia,

e de todos um lugar no coração.



O Pai é o chefe, o orientador, o guia

da família que vive em comunhão

e a quem, a Deus, perante a Igreja, um dia

prometeu benquerença e proteção.



Na conduta do Pai se espelha o filho.;

no olhar paterno ele divisa o brilho

que pode o seu caminho iluminar.



Ditosa a esposa que no companheiro

sente o amor nobre, intenso e verdadeiro

que une a família e faz feliz o lar.































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1.Op. cit., p. 84.







TUCUNDUBA¹





“As maravilhas da natureza

superam todos os milagres”



Adão Myszak





O serrote Tucunduba está na minha mente

desde o tempo em que eu, menino mal crescido,

mais de um ano morei na terra adjacente,

e aquele mundo verde olhava, embevecido.



Quando vem da manhã o leque resplendente,

emprestando ao serrote um novo colorido,

toda a paisagem, então, se torna aurifulgente,

na prismatização do sol recém-nascido.



Às vezes amanhece o idoso Tucunduba,

onde sobra o pau-d’arco, o cedro, a janaguba,

alvejado de neblima, o cume até os flancos.



Nessas horas, então, aquela massa informe

dá a estranha impressão de uma cabeça enorme

totalmente coberta de cabelos brancos.



















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1. ARAÚJO, Nicodemos. Luzes do Ocaso, 1985.; p.18.











CAPELA DE ALMOFALA¹





A Dinorá Tomaz Ramos





Há quase três centúrias levantada

na praia de Almofala,

e agora oficialmente considerada

Monumento Nacional,

e minuciosamente restaurada,

em todo o seu conjunto arquiteturial,

ali demora, sob o céu de opala,

a capela gentil de cor nevada,

que desde que se fez foi consagrada

à Virgem da Conceição,

pelos padres Jesuítas da Missão.



Seu estilo barroco é muito apreciado

pelos turistas, pelos visitantes

que afluem ao legendário povoado,

de paragens vizinhas ou distantes.



Bem perto o mar, em grave cantochão,

um louvor permanente salmodia

ao velho templo histórico e cristão.

Das areias salíferas da praia,

como brancos retalhos de cambraia,

a espuma das ondas se desfia...

E, ao impulso da brisa,

espalha-se no ar,

como que a incensar

da artística igrejinha a torre esguia,

na feliz concepção da exímia poetisa.









Há na história do templo um fato inusitado:

– meio século esteve ele soterrado

por uma enorme duna itinerante

trazida pelo vento alipotente.

E, por estranho capricho da natura,

mesmo vento, depois, levou para distante

essa duna viajante,

exumando a capela totalmente,

na beleza de sua arquitetura.



***



E assim se conserva com sua história

– almenara de fé

e de memória –

entre densos e verdes coqueirais,

a capelinha, que inicialmente

foi destinada

à tribo Tremembé,

que na velha povoação então foi aldeada.

Muita gente

que ali faz oração,

diz sentir a impressão

– ou a superstição –

de que na igreja ainda está presente

o Padre José Borges de Novais.











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1.Op.cit., p.19.







CASSACO REALIZADO¹





Para Dimas Carvalho





A seca assola o sertão...

E o Governo Federal

Mandou empregar no bolsão

Os carentes em geral.



Então muito espertalhão

entrou no bolo, afinal.

E haja folga e embromação

relaxando o pessoal.



Hoje cedo eu vi na rua,

todo bonitão, na sua,

o malandro João Camboa.



Trapaceiro impenitente,

ele me disse, contente:

–“meu patrão, ô seca boa!”























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1.Op. cit., p.28.







JOCA LOPES¹





Cabeça ornada de sedosas cãs,

e a serena altivez do pensador,

firmado em suas convicções cristãs,

este é o virtuoso, xilógrafo, escultor.



Nunca deu importância a coisas vãs.;

o seu mundo é o seu lar e seu labor.

Tem nalma a luz festiva das manhãs.;

é um esteta de autêntico valor.



Os talentos reais que Deus lhe deu

jamais quis enterrar no chão da herdade,

tal como o servo bíblico procedeu.



E suas músicas e obras de escultura

atestam dons e criatividade,

no belo da arte genuína e pura.





























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1.Op.cit., p. 30.







MEU PÉ DE PAPOULA¹





Há no estreito quintal de minha residência

uma linda atração de nossa mãe natura.

É um pé de papoula em plena florescência,

de trezentos ou mais centímetros de altura.



Gosto muito de ver seu verde e rubescência

– oferta vegetal encantadora e pura –

quando em sua pomposa e excelsa aurifulgência,

o clarão matutino em leque já fulgura.



E todas as manhãs, assim que o sol desponta,

pontualmente eu vou ali fazer a conta

das papoulas acaso então desabrochadas.



Esta é uma distração que me seduz e encanta,

ver o viço, a beleza e o garbo dessa planta,

– um lindo festival de flores encarnadas.



























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1.Op.cit., p. 47.





O POMO DE ASFALTITE¹





Esse fruto de pele em sangue e ouro embebida,

desfazendo-se em fel, desfazendo-se em lama,

havia de amargar por toda a tua vida.



Alfredo de Miranda Castro





Consta que às margens do Mar Morto existe

um fruto tentador, belo, dourado

cuja atração no exterior consiste,

que de cinza e lama infecta é recheado.



Quem o colhe ao desejo não resiste

de saborear o gomo cobiçado.

Ao prová-lo, porém, logo desiste,

ao sentir o mau cheiro evaporado.



Assim também no mundo há muita gente

intrigante, falaz, malevolente,

que, obedecendo ao seu destino torto,



se nos mostra gentil e prestimosa,

mas guarda nalma pérfida e maldosa

a corrupção do fruto do Mar Morto.

















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1. ARAÚJO, Nicodemos. Sinfonia do Coração, 1990.; p.30.







CROMO¹





Sobre uma nuvem dourada

o sol, soberbo, fulgura.

Na manhã iluminada

tem mais beleza a natura.



Mulheres varrem a calçada

da praça que se inaugura.

Os pardais, em revoada,

dançam ciranda na altura.



Com seus livros nas mochilas,

garotas passam pra escola,

brincando, fazendo filas.



Cantarolando, feliz,

a doidinha Marizola

se banha no chafariz.



























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1.Op.cit., p.36.

ALTO DA GENOVEVA¹



A Aureliano Diamantino Silveira



Aquele monte escalvado

e encravado

pertinho da lagoa,

onde a pacova floresce e a jaçanã revoa,

desde vetusta idade

se fez o atalaia da localidade.

E durante algum tempo a geração primeva

deu-lhe a denominação de “Alto da Genuveva”.



É que velha mulata rezadeira,

e experiente, e arteira,

“nas priscas eras que bem longe vão”,

ali plantou seu pé de ganha-pão.



Famílias abastadas

também ergueram lá suas moradas.

Finalmente o rochedo entrou na história,

alumiado de glória,

quando a gente do povoado em formação

um templo construiu pro ritual cristão.



Seis e meio decênios a capela

no mais alto do morro então ficou de pé,

formosa afirmação pujante e bela

de união e de fé.



Ali, naquele outeiro pedregoso,

sobre o qual, desde cedo, o sol radioso

derrama sua luz

aurífera e sadia,

há dois e meio séculos nascia

minha sempre querida Bela Cruz.

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1.Op.cit., p. 52.













SAMUEL BELI-BETE O AHASVERUS¹







(Lendo O MÁRTIR DO GÓLGOTA, de Perez Escrich)





– “Sabes quem foi Ahasverus? – O précito.

O mísero judeu que tinha escrito

Na fronte o selo atroz.

Eterno viajor de eterna senda,

Espantado a fugir de tenda em tenda,

Fugindo, embalde, à vingadora voz”.



Castro Alves







Jesus morrera além, no topo do calvário.

E toda a natureza

mergulhava em profundíssima tristeza.

Havia em tudo algo de extraordinário,

sob o grande domínio de um mistério

doloroso, sinistro, aterrador, funéreo.



Total escuridade a terra amortalhava,

e um silêncio feral no ambiente pairava...



Era o protesto augusto da natura

contra o crime maior da humana criatura.

Era a reprovação formal das coisas mudas

à monstruosa traição sacrílega de Judas.







Da negrura, porém, do imenso firmamento,

raro em raro, uma estrela peregrina

lançava sobre a terra

mortiço fio de mortiça luz

que vinha iluminar o cadáver sangrento

da Vítima Divina,

–Homem-Deus que o perdão, o amor e a paz

[encerra,

que a todos nós remiu nos braços de uma cruz.



Ao longe o velho mar na sua imensidade,

profanando a mudez da noite erma e sombria,

recitava, em surdina, um salmo de agonia.

E o gemer do oceano, em graves sons profundos,

parecia encerrar de toda a humanidade

o ato-de-contrição, no prantear dos mundos.



Interrogando a tétrica espessura

daquela noite escura

como a consciência negra do assassino,

um vulto pressuroso, um mesto peregrino

corria, ao léo, desabaladamente,

espantado, assombrado,

como a fugir de um inimigo irado

que o perseguisse alucinadamente.



Era Samuel Beli-Bete. Era um judeu

de coração mais duro que o granito.;

soldado mais feroz que a própria hiena.;

líder da horda que a Jesus aprisionara.

Esmurrara, cuspira, injuriara

aquela face cândida e serena,

satisfazendo, assim, o desumano hebreu

seu instinto maldito.





* * *

Depois Jesus seguia em rumo do calvário...

E cansado da aspérrima jornada,

ao passar junto à casa do sicário,

levando aos ombros nus a rude cruz pesada,

pedira-lhe uma sombra, um pouco de água

[pura,

a fim de amenizar a bárbara secura

daquela caminhada de amargura.



E esse homem perverso e sanguinário

nada, nada lhe dera.

Apenas lhe dissera,

sarcástico e feroz:

–“Meu nazareno inválido e tremente,

se és o Messias verdadeiramente,

faze um milagre aqui perante nós.

Oh! majestade mísera, desnuda,

faze falar a minha mãe, que é muda.

Se o não fizeres, pobre rei sem norte,

prossegue, avança em rumo do calvário!

Caminha pra teu fim! Caminha para a morte!”



E mais uma nojenta cusparada

no rosto de Jesus era lançada.



Nesse instante, no entanto, uma voz misteriosa

bradara-lhe, tremenda, sentenciosa:

–“Homem sem Deus, sem fé, sem coração,

sê maldito!

Caminha eternamente, ouvindo o forte grito

desta condenação!”



“Sê, pelo mundo afora, um sinistro andarilho!

Que todos: seja pai ou mãe, esposa ou filho,

Neguem-te tudo a ti, como negaste Àquele

que sobre a terra, e o mar, e o próprio céu

[excele”.



“E neste eterno andar jamais se te ofereça

uma pedra, sequer, ao pouso da cabeça.

Serás chamado de Judeu Errante.

Caminha! Adiante! Adiante!



* * * *



Beli-Bete viu Jesus, ao longe, ir prosseguindo,

gotejante de sangue o Gólgota subindo...

E então ele sentiu

invencível terror.

E, ao impulso de uma força estranha, interior,

[partiu...



O tempo transcorria...

O sol já moribundo

na curva do horizonte aos poucos se

[sumia...

E eis que o crepe da noite amortalhava o

[mundo

em negrume profundo.

E então de Beli-Bete a exótica figura,

dentro da escuridade pavorosa,

semelhava um gênio mau de horrenda

[catadura,



perquirindo a floresta emaranhada, umbrosa.

E a todo instante ouvia uma voz escarninha

que lhe bradava em regelante grito:

–“Samuel, sê maldito!

Caminha! Caminha!”



E o covarde judeu, tiritando, corria,

em seu caminho eterno...

Eis que chega a uma gruta

enorme, tumular, escura como o averno.;

estranha galeria

cheia de antigos túmulos cavados

em plena rocha bruta,

a tresandar emanações infectas.

Chamavam-na os passantes, assombrados,

–Vale dos Profetas.



Beli-Bete ia fugir. Mas, entrementes,

escutou um chocar de ossos contra ossos.

E divulgou, então,

macabra multidão de máscaras tão feias,

que o sangue fez se lhe gelar nas veias:

–Esqueletos ferais

erguiam-se dos fossos,

de olheiras abismais

e enormes dentaduras.

E, acercando-se dele, hediondos,

[sorridentes,

pareciam zombar das pobres criaturas

que no mundo falaz se toucam de vaidade,

como se numa esquálida caveira

não se resuma a vida passageira,

em sua verdadeira e triste realidade.



E, nesse mesmo instante,

eis que uma voz possante,

(a voz de Absalão)

como um rebôo longínquo de trovão,

dentre as tumbas falou, rouquenha e fria:

–“Caminha, Samuel! Caminha noite e dia!”



E no abismo da noite em trevas mergulhada

ele ouviu cascalhar diabólica risada.



* * *







Sempre na sua marcha pressurosa,

o torvo hebreu, suarento, horrorizado,

regressou ao seu lar,

de onde saíra aflito e atormentado

pela força fatal, misteriosa

que o impelia a sempre caminhar.



Entrou, e procurou, desesperado,

sua entrevada mãe. Mas a velhinha,

ao vê-lo então gritou, num eco angustiado:

–“Retira-te, meu filho! O teu pecado

fez de ti neste mundo erva daninha.

É a justiça de Deus, oh! desgraçado!

Caminha, Samuel! Sempre caminha!”



Vendo o grande milagre consumado,

novamente partiu exausto e apavorado.

Além pousou, a medo,

sobre um penhasco, à sombra do arvoredo.

Mas das negras escarpas do rochedo

uma voz reclamou, grave e medonha:

–“Não me nodoes com tua vil peçonha.

Vai! Cumpre do destino os desígnios fatais,

que teu caminho não acaba mais!”



E o judeu caminheiro prosseguia...

De sua própria sombra em pânico fugia.



Na seqüência da caminhada ingrata,

banhado de suor, tremendo de canseira,

tal se tangido fosse a golpes de chicote,

chocou-se brutalmente em plena mata,

no rijo caule de senil figueira.

Recuou, assombrado...

E eis que depara

o cadáver do infame Iscariote,

preso à corda em que à noite se enforcara.



E uma cor fantástica, rubente,

como nódoas de sangue, pelo chão,

brilhavam-lhe ao redor sinistramente

as moedas malditas da traição.



A Divina Justiça, em sua onipotência,

das moedas fizera ao pérfido traidor

trinta carvões em fogo atroz, abrasador,

cauterizando sempre a sua consciência.



Beli-Bete ia afastar-se, em seu fadário triste.

Trovejante, entretanto, a voz brutal de Judas

fez-se ouvir reboar dentro das trevas mudas:

–“Samuel Beli-Bete, és meu irmão,

pois nos irmana a eterna maldição.

Eu não sei de nós dois, perante o Deus

[Sublime,

quem praticou mais ominoso crime:

–Se foste tu, que o rosto Lhe feriste.;

–se fui eu, que feri Seu coração.





“Eu sou o vil sacrílego traidor.;

és o frio carrasco acusador.

Eu vendi-O, covarde, para o vício.;

tu compraste-O, cruel, para o suplício.

Mercadejei meu Chefe aos fariseus.;

tu cuspiste na face ao próprio Deus.

Sê, portanto, oh! precito,

como eu, pelos séculos, maldito.

No fundo de nossa alma torva, impura

permanente vulcão abre em fervura,

lançando o fogo atroz do próprio inferno,

na execução deste castigo eterno.;

rubro vulcão que lembra agitação telúrica,

com crateras, e lama, e exalação sulfúrica”.



“Infortunado amigo,

sobre ti e sobre mim a maldição se aninha.

Caminha, desgraçado! É este o teu castigo.

Caminha! Caminha!”



Desde esse dia o mísero Samuel,

alcunhado também Judeu Errante,

corre, na caminhada intérmina e cruel.

E escuta, sempre e sempre, escuta a todo instante,

a vingadora voz que a vida lhe espezinha,

clamando-lhe, implacável,

como eterna sentença inapelável:

–“Caminha! Caminha!”



































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1. Op.cit., pp.75 a 80.







ACARAÚ MINHA CIDADE¹





Salve, Acaraú.; Cidade,

cheia de encanto e bondade,

que me acolheu maternal.

Ninho amigo e camarada,

Onde canta a passarada

Na fronde do mangueiral,

e onde a verde mongubeira

refloresce a vida inteira,

no seu sonho vegetal.



Vejo a Matriz, as capelas,

as praças amplas e belas,

com estas árvores colossais,

onde brincaram, contentes,

filhos teus, hoje eminentes

figuras nacionais.;

e a casa – relíquia urbana

onde vibrou soberana,

a lira de Antônio Thomaz.



Vejo, com admiração,

as casas de educação,

em seu labor cultural.;

vejo o “Campo”, o “Açude Novo”,

“Outra Banda”, com seu povo,

com seu porto pluvial,

onde a garça voliteja

e o denso mangue verdeja,

à luz do sol tropical.









Marcando a Zona urbanita,

numa curva tão bonita,

que deslumbra a vista – olhai.;

o velho rio lendário,

em seu longo itinerário,

beirando a cidade vai.

E, já cansado da andança,

Nas águas do mar se lança,

Qual filho abraçando o pai.



Rompe a manhã clara e boa.

E, pondo a lesta canoa

aos açoites do terral,

o pescador inicia

seu labor de todo dia,

fazendo o Pelo Sinal.

E enquanto a vela se enfuna,

escuta a voz da graúna,

cantando no coqueiral.



Louvores à tua gente

progressista, inteligente,

trabalhadora e leal.

Povo honesto, povo nobre,

sempre unido – rico ou pobre

no convívio fraternal,

lutando pela riqueza,

pela paz, pela grandeza

de sua terra natal.

















Acaraú, minha vida,

minha cidade querida,

“meu jardim primaveril”,

és a mais linda parcela

desta Pátria augusta e bela,

deste imenso céu de anil.

És uma jóia encantada,

que por Deus foi lapidada,

para enfeitar o Brasil.

























































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1. ARAÚJO, Nicodemos. Cantos e Desencantos, 1993, p. 25.







SORRIA¹







Sorrir é um dom de Deus. Então, sorria.

Abra, de par em par, seu coração.

Faça vibrar su’alma, na harmonia

do concerto triunfal da criação.



Sorria ao fracassado e ao bóia-fria,

ao mendigo, ao vadio, ao pé-no-chão.

Sorria ao sol que aquece e que alumia,

sorria mesmo para a escuridão.



Sorria para o céu, pra natureza.

E, entre todos, na alegria ou na tristeza,

seja instrumento de fraternidade.



Veja no mundo um novo paraíso,

sorrindo para os outros, que o sorriso

é a universal linguagem da amizade.

























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1.Op. cit., p. 74.









MANHÃ DE SOL¹





Para o jovem intelectual Vicente Freitas





Linda manhã de sol. Luz e calor.

Em sua nova e esplêndida beleza,

festivamente acorda a natureza,

para a vida comum, para o labor.



O astro rei espalha seu fulgor,

manifestando a sideral realeza.

Tudo canta ante a rútila grandeza,

em coro harmonioso e encantador.



Há música nos campos e nos ninhos.

É a leda orquestração de um novo dia,

Sinfonizada pelos passarinhos.



E esta harmonia universal traduz

o festival de cor e de energia

do mundo inteiro se banhando em luz.



















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1.Op. cit., p. 83.









LAGOA DE SANTA CRUZ¹





Ao professor José Humberto Araújo





Lagoa de Santa Cruz. Eu lembro, com saudade,

aquele tempo alegre e bom de adolescente.

Então, com amigos meus, ali, diariamente

tinha-se muito espaço e banhos a vontade.



A lagoa sem perigo e o grupo sem maldade

tornavam um paraíso novo esse ambiente.

A leste vicejava o carnaubal virente

– riqueza natural da vila, hoje cidade.



Ao poente, bem perto, a colina florida,

onde a gente brincava humanizada e unida,

nessa quadra risonha e amiga da existência.



Ao contemplar-te, agora, ó plácida lagoa,

na lembrança feliz que a mente me povoa,

eu me sinto, outra vez, em plena adolescência.



















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1.Op.cit., p.86.









MEU GUARDA-CHUVA¹







Meu velho guarda-chuva, meu amigo,

sempre disposto a oferecer abrigo.

Querido e prestativo companheiro,

a ti sempre recorro,

nas horas da chuvinha ou do chuveiro.

E também quando o sol flameja pelo espaço,

e em terra me sufoca o cálido mormaço,

eu nunca dispensei o teu socorro.



Teu destino, amigão,

é servir a toda a gente,

sem reclamar, silenciosamente.;

sem pretender qualquer compensação.

Isto é belo, isto é nobre, isto é excelente.



Seja no interior ou seja na cidade,

sempre é marcante a tua utilidade.



Guarda-chuva, obrigado,

pelo serviço que me tens prestado.

















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1.Op. cit., p.122.







PRAÇA PADRE ANTÔNIO THOMAZ¹





Ao poeta e linhagista acarauense,

Dr. Francisco José Ferreira Gomes





De manhãzinha é muito bom pra gente

olhar a Praça Padre Antônio Thomaz.

O astro rei se eleva no oriente,

e um novo encanto ao logradouro traz.



A luz solar destaca no ambiente

o cromatismo dos jardins florais.

E se balança o mangueiral virente,

aos carinhos das auras matinais.



Antônio Thomaz e Monsenhor Sabino

vêm à nossa lembrança agradecida

no evocativo badalar do sino.



A Igreja Matriz domina a praça.;

e o Cristo Redentor na torre erguida,

lembra uma oferta da Divina Graça.



















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1.Op. cit. p., 130.





JOÃO DAMASCENO Vasconcelos





JOÃO DAMASCENO Vasconcelos – poeta, jornalista e escritor cearense, nasceu na cidade de Bela Cruz, a 13 de agosto de 1924. Filho de José Florêncio de Vasconcelos e dona Idalina Maria da Silveira. Em Bela Cruz, exerceu o cargo de Chefe da Estação - Postal - Telefônica e Diretor do Jornal “Correio de Bela Cruz”. Em Acaraú, representou o distrito de Bela Cruz, na Câmara Municipal e foi Secretário da Prefeitura. A vida que levou, de exemplar humildade foi, até certo ponto, a razão do desconhecimento de sua obra, por parte do público, em face da excelência artística dos sonetos que escreveu e que hoje são patrimônio cultural a ser conservado e estudado. Uma característica do poeta que merece ser ressaltada: o seu domínio perfeito da língua portuguesa, sem prejuízo das marcas naturais impostas pela fala brasileira ao idioma. Sua obra faz-nos raciocinar quando expõe sua erudição e proficiência. Em vários pontos de seus livros se faz notar o amor do poeta ao seu torrão natal e o quanto universal é a sua bagagem psíquica. É autor dos seguintes livros publicados: “A Congregação Mariana no Mundo Moderno” (Conferência), 1948.; “Retalhos de Sonhos” (Poesias), 1956.; “A Sonhar e a Cantar” (poesias), 1968.; “Mário Domingues Lousada” (Dados Biográficos), 1971.; “Cinza e Fagulhas” (Poesias), 1972.; “Meu Itinerário” (Sonetos), 1982.; “Fragmentos e Poeira” (Poesias), 1985. O poeta viveu em Bela Cruz até o ano de 1975, quando mudou-se para a cidade de Fortaleza, onde trabalhou na Receita Federal. Faleceu, a 09 de junho de 1990, deixando viúva a Sra. Maria Ledioneta Vasconcelos e três filhos estudantes.







O ANOITECER¹





Ao por do sol a bela Natureza

Empalidece a fronte,

Ao ver o último raio com tristeza

Despedir-se do monte.



Repleta de amargura a terra chora

Seu extremoso amante.

E a ventania a soluçar deplora

A mágoa cruciante.



Do campanário o bronze soa ao longe

Marcando o fim do dia,

Na sua cela solitário o monge

Entoa: Ave Maria!



E o viajor à margem do caminho

Curva-se reverente...

Que prece reza o coração baixinho

No crepúsculo dormente!...



Percorre o espaço um fluido desalento

Ao coração magoado.;

Badala o sino da saudade lento

Na igreja do passado.



Do mar as águas gemedoras crescem

E lançam-se chorosas.;

E alucinadas quebram-se, perecem

Nas praias arenosas.





Silêncio triste... a Natureza agora

Em ermo lacrimoso

Veste o crepe da noite, qual senhora

Que viu morrer o esposo.



Entanto o céu de estrelas coruscantes

Acende em claridade.;

Lembra no altar os círios palpitantes

Ao culto da saudade.



















































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1. VASCONCELOS, João Damasceno. Retalhos de Sonhos, 1956.; p. 25.





PARTIDA¹





Partiram contentes, alegres cantando,

Fiquei soluçando de mágoa e de dor,

Sentindo sozinhos no pranto afogados

Meus olhos magoados por ti meu amor.



A noite era linda e o céu todo estrelas

Fulgentes e belas de puro palor,

E um carro as estradas veloz percorria

E eu triste gemia por ti meu amor.



Além, muito além, essas vozes morriam,

Já se confundiam com o rir zombador

Das sombras noturnas vagando ao relento

Ao ver meu tormento por ti meu amor.



Tu foste, no entanto, levando outros sonhos

Fugazes, risonhos de encanto e esplendor,

Ferindo e matando a quem tudo suplanta,

Quem geme e quem canta por ti meu amor.



Nem mais um momento sequer te lembraste

De alguém que afagaste do peito o calor.

Que chama de afeto o meu ser consumia

Quem louco sentia por ti meu amor.



Assim tu mataste desta alma os encantos,

Rolando os meus prantos, qual pálida flor

Roreja das pét’las mimosas o orvalho

Pendida do galho por ti meu amor.





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1. Op. cit., p. 41.









OLHAR FASCINANTE¹







Eu não cria em amor, mas certo dia

Em que eu estava sozinho a meditar,

Tu passaste, formosa, a me fitar

Naquela tarde cheia de magia...



E esse teu meigo e fascinante olhar

Um paraíso azul em mim abria...

Uma flor milagrosa que inebria

Senti minha alma triste perfumar...



Desde esse olhar macio como arminho,

Senti meu peito encher-se de carinho,

E a ventura inundou meu coração.



Era o amor que em minha alma se acendia...

E hoje que sinto o que ontem não sentia,

Creio no amor e creio na paixão.



















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1. Op. cit., p. 43.











CASA DE FARINHA¹





No velho casarão lá da fazenda

Tendo ao lado o “aviamento” a farinhar,

Uns raspam mandioca e na contenda

Dos “capotes” se buscam superar.



Robusto “puxador” a corda emenda

E logo trepa-a à roda a desandar

Tangendo o “caititu”.; outro a cevar

A mandioca, senta-se na tenda.



E o “prenseiro” debruça-se na prensa

Tirando a massa por ser peneirada

E o pão fazer de utilidade imensa.



E o “forneiro” no seu labor ingente

Espalha e junta a massa ainda molhada

Com o seu “rodo” a mexer no forno quente.























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1. Op. cit., p. 87.







VISÃO DE UM SONHADOR¹





Ao rumor trepidante da cidade

De Fortaleza à Praça de Alencar

No ônibus de Caucaia um bom lugar

Ocupamos sentados à vontade.



Deslizou-se por sobre o calçamento

O gigante pneumático a gemer...

Quais fitas de cinema em movimento

Passam ruas e praças ao vencer.



Foi quando percebi na minha frente,

Sentada sobre um banco a criatura

Mais bela que eu já vi na terra ingente,

– A encarnação da própria formosura.



Aspásia fez lembrar seu lindo porte,

Ou Cleópatra formosa. Se Beatriz

Um novo Dante prende à sua sorte,

Fiquei cativo ao seu olhar feliz.



Uma auréola de luz e simpatia

Cinge-lhe a fronte bela e singular

E rósea tinha a face, e a sinfonia

De Bellini nos lábios de nacar.



Seus olhos brilham mais que duas estrelas

No céu daquele rosto encantador.

E o seu sorriso tinha das mais belas

Nereidas, sugestões de ardente amor.









Pendia-lhe sobre os ombros as madeixas

Onduladas, castanhas, perfumadas,

Onde a brisa murmura ardentes queixas

Destas almas que trazem cativadas.



A cada riso seu e a cada olhar

Minha alma se deslumbra à realeza,

Alvoroçada e alegre ao contemplar

Em transportes de amor tanta beleza!



Não se conteve mais meu coração

Guardar silêncio indiferente e mudo,

E em palavras repletas de afeição,

Eu disse-lhe em surdina tudo... tudo.



Fascinante ela olhou-me num sorriso,

Numa doce expressão que tudo diz...

Despertou-se-me na alma um paraíso,

E eu julguei-me no mundo o mais feliz.



Não soube de seu nome. A timidez

Inata de minha alma não deixou

Que o seu nome escutasse uma só vez.;

– Eis pois a grande dor que me ficou.



Passaram-se os minutos, entretanto,

É o ponto de parada já chegado...

E eu tive que deixar banhado em pranto

O vulto deste amor terno e encantado.









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1. Op. cit., p. 95.









BELA CRUZ¹





Amo-te ó minha Bela Cruz querida,

Terra bendita, esplendorosa e linda.

No teu regaço é mais feliz a vida,

Tem mais encantos, mais amor ainda.



És tão formosa,

És tão gentil,

És flor mimosa

Do meu Brasil!



És o meu sonho

Puro e ideal,

Doce e risonha,

– Não tem igual.



És minha terra sempre abençoada

De Deus Supremo Criador dos mundos.

A tua igreja é bela e respeitada

A alcandorar-se para os céus profundos.



Os teus frondosos mangueirais virentes

Dão-te este cunho de beleza imensa

Com suas verdes copas florescentes

Lantejoulando à luz do sol intensa.



Dos edifícios seu conjunto assoma

Em praças, ruas sempre arborizadas.

És bafejada pelo grato aroma

Dos campos teus em brisas perfumadas.



Os teus coqueiros majestosos crescem

Soltando aos ventos singular canção.

E altivamente para os céus investem

Num incontido anseio de emoção.



Teus carnaubais são sempre verdejantes,

Ora oscilando ao vento brandamente

Acordam na alma sonhos deslumbrantes

Ao flabelar da fronde viridente.



Em tuas belas manhãs orvalhadas

Vem te saudar a passarada em festa

Que aos primeiros clarões das alvoradas

O seu concerto mavioso empresta.



Tem mais fulgores o sol que ilumina

Os nossos campos, várzeas perfumadas.

Tem mais poesia na meiga lucina

Se à noite espalha luzes prateadas.





































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1. Op. cit., p. 98.









AO CAMPONÊS DE MINHA TERRA¹



I



Ó nobre camponês de minha terra

Que vives pobre, mas honesto e honrado,

Teu santo exemplo de homem devotado

Que edifica e constrói por Deus, não erra.



Só desejas a paz, não queres guerra,

Posto no trabalho livre e denodado.

Velas teu lar modesto e respeitado,

Onde o amor e a ventura humilde encerra.



Detestas as violências sanguinárias

Destas idéias, que, revolucionárias,

Em teu nome se pregam, – luta insana.



Que te venha a assistência, de verdade,

Mas não te roube, em troca, a liberdade,

Patrimônio moral da espécie humana.



























II





O cristão camponês – homem prudente,

Amigo do trabalho e do seu lar,

Não se deixa levar por essa gente

Que lhe promete o que não pode dar.



Permanece, portanto, intransigente,

Na tarefa fecunda de aumentar

A riqueza da pátria, onde somente,

O conforto dos seus há de encontrar.



Não lhe seduzem loucas utopias,

Porque bem sabe, as grandes alegrias,

Só nascem do trabalho honesto e honrado.



Ama a seu Deus e a tradição cristã

Dos ancestrais, a preservar com afã,

O patrimônio que lhe foi negado.

























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1. VASCONCELOS, João Damasceno. A Sonhar e a Cantar, 1968.; pp. 47.; 48.









FORMAS E FATOS¹





Na sucessão das formas da matéria,

Montes e depressões lhes são triviais.

Há na opulência, como na miséria,

A insegurança própria dos mortais.



Ascende o sol na profundeza etérea

– Fonte de luz e forças naturais.

Sobem da terra as sombras pela artéria

Que lh’as projeta aos fundos siderais.



Sempre à mercê de múltiplos fatores,

Inépto a vencer as próprias dores,

É o ser cujos contrastes bem humanos,



Levam-no à liça escura ou entre faróis,

Onde, másculos, forjam-se os heróis

E provam-se os covardes e os tiranos.

























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1. Op. cit., p.55.







FELICIDADE¹







Felicidade – é a aspiração constante

Que povoa o coração da humanidade.

Vezes seu vulto de mulher, distante,

Aos homens manda acenos de amizade.



Outras, bem perto, lhes atrai, pujante.;

Todos correm ao encontro da beldade...

Esta, porém, lhes foge a cada instante,

Deixando-os em pungente soledade.



Vê, pratica a justiça.; sê constante

E humilde na virtude e na bondade,

As ofensas perdoando, sem desplante!



Pois ser virtuoso e bom, não ter vaidade,

Amar a Deus e ao nosso semelhante,

É ter a posse da felicidade.

























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1. Op. cit., p. 57.









SIMPLICIDADE¹





Gosto muito de ti, simplicidade,

Pelo que tens de humano e de divino.

Do teu brando regaço peregrino,

Estendem-se os caminhos da Verdade.



Irmã gêmea e fecunda da humildade,

Cuja posse nos traz perene ensino.;

Teu convívio transforma o meu destino

Numa fonte de paz, serenidade.



Eu gosto, enfim, de ti, simplicidade,

Genial conquista do homem sábio e justo,

– Feliz roteiro da arte e da bondade.



Atributo de Deus – verás sem custo,

O artifício, quebrar-se, da maldade,

E ao domínio do Bem curvar-se o injusto.























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1. Op. cit., p. 74.









MANHÃ DE INVERNO¹





A Nicodemos Araújo





Manhã de inverno. Há brumas no levante.

Toda a terra polvilha-se de neve...

O sol descerra a pálpebra e de leve

Lança um beijo de luz vitalizante,



Ao viso da colina e à verdejante

Crina da flora e aos poucos circunscreve

Belo poema de luz que a espaço breve,

Da terra envolve-lhe a órbita pujante.



Das orvalhadas copas frondejantes,

Rouxinóis e canários gorjeiam ternos

Seus lindos madrigais mais fascinantes.



Impregnam o ambiente e o ar que respiramos,

Os perfumes florais e os sons eternos,

Na bucólica paz que tanto amamos.

















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1. Op. cit., p. 79.









AS ROCEIRAS¹





Com o sol a lhes dourar a face pura,

Nos seus fecundos beijos matinais,

As roceiras esbeltas e joviais

Vão, manhã cedo, para a agricultura.



Amainando no campo a terra escura,

Ou desleitando as vacas nos currais,

Seus gestos nobres, simples, naturais,

São espontâneos e feitos de ternura.



Ágeis, demonstram tal desenvoltura,

Nos seus misteres de predileção,

Que lhes dão um halo de grandeza pura.



Seus virginais afetos, castos são,

Que o adorável recato configura,

Nos costumes saudáveis do sertão.

























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1.Op. cit., p. 91.











CONVERSA DE CALÇADA¹







Falando a alguém presente na calçada,

Certa senhora assume posição.

Outros ali têm vida esquadrinhada,

E já se volta pra cozinha, então:



– Comer feijão! Diz a vizinha, inflada,

É coisa que eu não faço! Em meu fogão,

Eu não sou rica, mas, por qualquer nada,

Jamais ferveu panela de feijão.



Só à minha mesa vai café com pão,

Frutas e carne, arroz e macarrão.;

Peixe fritado é o prato preferido.



Enquanto ao pé do fogo, os filhos dela

Perguntam-lhe, no fim de tal balela:

– Mãe, será que o feijão já está cozido?

















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1. Op. cit., p. 99.









EXORTAÇÃO¹







Soluça, coração, quanto quiseres,

No silêncio do peito torturado.

Jamais darás ao mundo desalmado

A conhecer a mágoa que sofreres.



A ocultar a tua dor, quando puderes,

A cada passo canta um sonho amado.

Da treva arranca um céu todo estrelado,

Põe mil flores nos rastros que fizeres.



Escreve com o teu pranto amargurado,

Um poema de ventura e de alegria

Às belezas da vida consagrado.



E, a exortação, ouvindo, que te fiz,

Darás ao mundo um sonho de harmonia,

E a ti mesmo a ilusão de que és feliz.























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1. Op. cit., p. 134.









RETROSPECÇÃO¹







Nunca fui um elemento saudosista,

Pois sempre tive horror voltar atrás.

Só, à frente, caminhava moço e audaz,

Numa ânsia insatisfeita de conquista.



O futuro!... O futuro sempre à vista,

Dava-me força e alento, quanto mais

Magoava-me o presente, e, contumaz

Detestava o passado, pessimista.



Hoje, que a saúde e os anos me envelhecem

E as cores do futuro empalidecem,

É forçoso, afinal, retroceder.



E o olhar, volvendo atrás, surpreso sinto,

À vista do passado, se não minto,

Que fui feliz, outrora, sem saber.





















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1. Op. cit., p. 136.









BELA CRUZ¹







Ó minha Bela Cruz, terra querida

Do berço de meus pais, meu próprio berço,

Onde a primeira luz sorvi da vida

E rabiscara o meu primeiro verso.



Desta existência a quadra mais florida

Passei-a no teu regaço, em sonho imerso.

Sentir pudera de alma enternecida,

Que encerras para mim todo o universo.



Pois, maternal, lhes guardas no seio teu,

Meus avós e meus pais e um filho meu

E os amigos que a morte arrebatou.



Fiel à Cruz que lhe deu seu nome, crente,

Seu povo cresça forte e inteligente,

No amor à Pátria e a Deus que l’ha forjou.





















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1. Op. cit., p. 141.









CIDADE DE ACARAÚ¹





À memória do Pe. Antônio Thomaz







Inundada de luz e de harmonias,

Com os seus modos gentis e hospitaleiros,

Sorridente e feliz, todos os dias,

Propina os seus encantos feiticeiros.



Ninguém resiste às claras melodias

Do cântico das graúnas nos coqueiros.

Do velho mar, bem perto, às sinfonias

Embalam-se os intrépidos veleiros.



É a apoteose de um sonho doce e terno

Que eleva o coração da Natureza

Na mais suave expansão de amor eterno...



Povoam-lhe, ainda, límpidas seqüências,

Dos versos musicais de real beleza

Do cantor imortal das “CONFIDÊNCIAS”.

















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1. Op. cit., p. 142.









MARIA LIMA¹







Finou-se, para sempre, à luz da vida,

Após longo e terrível sofrimento.

Porém, com sua alma forte e bem nutrida,

Soube as dores vencer sem desalento.



Foi dócil, serviçal, quanto movida

Do espírito cristão, com zelo atento.

Alma plena de fé, casta e florida

Tinha a bondade e o amor por alimento.



O seu culto a Jesus e à Virgem Santa,

De quem foi filha amante e dedicada,

Foi um exemplo de fé que nos encanta.



Lá da Pátria dos bons onde, por certo,

Tiveste, Maria Lima, bela entrada,

Por todos roga deste mundo incerto.





















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1. Op. cit., p. 202.









ANO NOVO¹





Passageiros do trem de um ano que se finda,

Chegamos à estação de um ano que começa,

Cansados, da paisagem monótona e infinda,

Da marcha rotineira que o tempo não tem pressa

De lhe mudar o ritmo, e, de cujo saldo, ainda,

Trazemos na bagagem, decepções a bessa,

Algumas lições úteis, alguma experiência

Que nos podem servir no resto da existência.



Descendo ao burburinho alegre da Estação

Do trem que chega ao fim, do trem que agora parte,

Abraços, cumprimentos, festas, com efusão,

Trocamos, mutuamente, e assim vamos, destarte,

Tomando, novamente, assento no saguão

Do trem do Ano Novo, ornamentado com arte,

Que agora põe-se em marcha, em ritmo inseguro,

Para a grande aventura incerta do futuro.



E vamos caminhando, e temos a impressão

De que a felicidade, – assim diz a esperança –

Havemos de encontrá-la em doce reclusão,

Naquela curva, além, que a nossa vista alcança,

Para o almejado e grande abraço, ao coração,

Teremos junto ao peito, seu vulto de criança.

De vez que em vão nossa alma ardente a procurou,

Ao longo do caminho, no ano que passou.









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1. VASCONCELOS, João Damasceno. Cinza e Fagulhas, 1972.; p.31.









MINHA OPINIÃO¹





Direi minha opinião clara e sensata,

Àquele que pratica o mau costume

De cunhar os seus méritos em prata,

E os méritos alheios, em vil estrume.



Não vê que ao decantar-lhe a glória inata,

De ilusões quixotescas e em cardume,

Com a lâmpada de Aladim, a coisa exata,

Quando ele tem nas mãos um vagalume.



E esquece que no estrume é que as sementes

Tornam-se em belos lírios, crisantemos,

Toda a casta de flores redolentes.



É, pois, um feio orgulho, presumimos,

No outro minimizar o que não temos,

E exaltar demasiado o que possuímos.

























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1. Op. cit., p. 40.







GOSTO LITERÁRIO¹





A José Lopes Vasconcelos







Gosto de ler os grandes pensadores

Que às verdades conservam sua pureza.

E lh’as descobrem singular beleza

Que faz também os grandes sonhadores.



Como, aliás, sucede, aos esplendores

Do Evangelho de Cristo e à sua grandeza.

Seu simbolismo espelha a natureza,

E na alma lança os divinais fulgores.



Romance que descreve o rotineiro

Sem cuidar que lhe venha revelar

Nova expressão de belo, por primeiro,



Raramente em meu espírito tem chance.

Pois de outro modo não tolero estar

Preso ao insípido enredo de um romance.



















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1. Op. cit., p. 41.









CONTRASTES¹





Há dos contrastes reais à trama urdida,

Que nem todos percebem, claramente,

Uma expressão saudável e florida

E a triste morbidez de um ser doente.



Como o sorriso e o pranto.; a morte e a vida.;

A esperança dinâmica e o impotente

Desespero.; o ódio e o amor.; treva e a vivida

Luz.; o fausto e a miséria.; o agnoz e o crente.;



A doçura e o amargor.; blasfêmia e prece.;

A vingança e o perdão.; mistério impar:

– Para o homem elevar, é um Deus que nasce.



Finalmente, é nos dado perceber

Que, se em criança, corremos sem pensar,

Nós, adultos pensamos sem correr.





















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1. Op. cit., p. 57.









O SEIXO DA ESTRADA¹





Este seixo que à beira da estrada,

Nós o vimos coberto de pó,

No aconchego da terra pisada,

Sempre estranho a quem passa e tão só,



É a presença soturna e marcada,

Das angústias sofridas por Jó.;

É a memória dos tempos velada,

Séc’los antes do Rei Faraó.



Seu mistério é um convite calado

A um mergulho no mar do passado,

Onde dormem pesares e glória.



Seu silêncio solene nos fala

De um segredo que punge e resvala

Lá dos fundos do tempo e da história.























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1.Op. cit., p. 71.









CIDADE DE ACARAÚ¹





Aos meus amigos de Acaraú





Minha linda Acaraú, por quem promovo

Estes humildes versos sem beleza,

Em ti trabalha e vive um grande povo,

Na pista do progresso e da grandeza.



Meu amor e admiração por ti renovo,

Berço de ilustres filhos. A natureza

Imprimiu-te um sorriso sempre novo,

– Visão mediterrânea de Veneza.



Teu lagamar azul, tuas belas praias,

Teus verdes coqueirais e as ondas gaias

Dos decantados mares de Alencar...



Tens um conjunto de belezas raras

Que inspira sonhos e emoções mui caras,

E ensina a gente a ser poeta e amar.















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1. Op. cit., p. 131.









SONETO¹





Quando escrevo meus versos, um soneto

Vou modelando, estrofe por estrofe,

Um quarteto primeiro, outro quarteto,

Espontâneos surgindo vão de chofre.



Aparece depois o que é um terceto.;

E sem que a gente saiba por que bofe,

Outro terceto sai, quando o poemeto

Já no copo efervesce como o ORLOFE.



Se tento revesti-los de outras formas,

O esforço meu retoma as mesmas normas,

E eu tenho, no final, mais um soneto.



É automatismo incrível tudo isto.;

Eis a simples razão porque persisto

Nos “superados” moldes do dialeto.





















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1. VASCONCELOS, João Damasceno. Fragmentos e Poeira, 1985.; p. 8.









HITLER¹







Explode o gênio da Nação teutônica

Com as energias pletóricas da raça,

Mas lhes faltaram disciplina e a tônica

Dos ditames da paz que o amor congraça.



O Fuherer ergue a voz altiva e irônica,

E arrebatar consegue grande massa,

Sob o signo nazista, diz a crônica,

Aos planos de vingança que ele traça.



Pela falsa miragem do conceito

Do super-homem de Nietzsche, perfeito,

Afeta a Hitler criminoso orgulho.



E ao tentar dominar povos inteiros

À escravidão da força, com os parceiros

Leva a Alemanha à divisão e ao esbulho.























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1. Op. cit.,p.12.







AMPARA-ME, SENHOR!¹







Este mundo adverso que acompanha

Com gestos desleais os passos meus,

É este mesmo que usando de artimanha,

Procura colocar-me contra os céus.



Maldosos articulam-se em campanha

Movida contra mim, por trás dos véus

Da velha hipocrisia, e, com tamanha

Desenvoltura própria aos fariseus.



E assacam-me calúnias, vilania,

A vigiar-me os caminhos que percorro,

Na tentativa de flagrar-me um dia.



Na minha sensação de desamparo,

Ouvi, Senhor, vos clamo por socorro!

Sou um pobre servo que vos pede amparo.





























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1. Op. cit., p.16.









PRECE¹





Senhor! que tudo vedes e assistis,

Não só na superfície, na aparência,

Mas em profundidade, a própria essência

Dos seres e das cousas mais sutis.



Que sofro, bem sabeis. Se o mal que fiz

Fez-me assim merecê-lo com violência,

Usai com vosso servo de clemência,

Sustendo o gládio que me fere a raiz.



Libertai-me das garras do inimigo...

Que em vosso amor encontre paz e abrigo

Nas ciladas dos meus perseguidores.



Pois serei como o feno ressecado

Sob os pés dos transeuntes triturado,

Sem ter vossos orvalhos protetores.

























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1. Op. cit., p.22.









CONFITEOR¹





I





Sinto, já não sou mais como era dantes,

De espírito otimista e lutador.

Foram-se minhas forças mais vibrantes,

Desfalece em meu ser todo o vigor.



Será o fardo dos anos? As constantes

Procelas desta vida? Este amargor

Que sobe das entranhas lacerantes

Dos males que me afligem com furor?



Pois meu passo vacila, a mente falha.;

O sentido da vista se me turva.;

Toda a sorte de angústia me retalha.



Já me chega o torpor da luta insana...

– Desenganos? Cansaço? Atinjo a curva

Da paisagem sem vida de um nirvana.

























II





Quedei-me triste e ouvi tua voz celeste,

Divino Mestre amigo, na Escritura,

Falas-me em tom paterno, com doçura:

“Toma tua cruz e segue-me”, disseste:



“Se queres vir a mim”. No mundo agreste,

Eu te peço, Senhor, dá-me a segura

Visão do teu amor, à luz mais pura

Da fé que me sustenta e me reveste,



Nas ciladas do mal, qual santo escudo.

Dá-me , quão mais ferido, ou mais vazio,

Mais forte me erga e marche, sobretudo.



Marcando embora em sangue nos escolhos,

Afronte o mundo hostil, seu desafio,

Mesmo que jorrem lágrimas dos olhos.

























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1. Op. cit., pp. 30.; 31.







MELANCOLIA¹







Respiro em tudo a só melancolia,

Desde a rósea manhã à luz do ocaso,

Somando aos olhos meus, monotonia,

Paisagem do deserto, em campo raso.



Se escuto o canto da ave, ou a melodia

Que outrora me empolgava a curto prazo,

Hoje os ouço, quais trenos de elegia,

Ou expressão de tristeza, em cada caso.



Já não consigo mais prender-me a nada...

A rude sensação da experiência,

Em tudo faz-me ver uma cilada.



Ódio não tenho ou visos de vingança

Contra quem quer que seja, mas a essência

De um desencanto imenso como herança.























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1. Op. cit., p.45.







QUANDO MOÇO¹





Quando era moço, conduzindo sonhos,

Ideais formosos que me estimulavam,

Os meus dias eram cálidos, risonhos,

E céleres meus passos avançavam.



A palmilhar embora ermos tristonhos,

Meus olhares ditosos lobrigavam

Flores em profusão que os tons bisonhos

Em festões coloridos transformavam.



Mas o tempo chegou em que a ilusão,

Como fogueira em noite de São João,

Em cinzas se desfaz, que o vento leva,



Quando ao cair da tarde o sopro frio

Do ocaso se anuncia, entre o sombrio

Final do dia e o aproximar da treva.



























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1. Op. cit., p. 49.







SOBRE A TRISTEZA¹





Tenho escrito, meu Deus, coisas sombrias,

Que a muitos faz pensar, sem amor, sem fé.

Mas Jeremias – Profeta de Javé,

Lamentações também fez em seus dias.



Ó, Habacuc, vejo o quanto te angustias,

Em tuas deprecações Àquele que é,

Pelos males de Israel.; clamas até

Vir de Deus a resposta em Quem confias.



Na noite tenebrosa da agonia,

Até Cristo em Getsêmani dizia:

“Minha alma está triste”. Fazem ver



Os exemplos citados, de fé e amor,

Como a própria tristeza, angústia e dor,

Inseparáveis são do humano ser.



























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1.Op. cit., p. 53.









BELA CRUZ¹





Aos meus conterrâneos





Aqui distante, ó minha Bela Cruz,

Quão doce me é lembrar todos os dias,

Quando escutava as ledas harmonias

Da passarada, em tuas manhãs de luz.



Revejo a tua Matriz, erguida em cruz,

Que tantas e incontáveis alegrias

Proporcionou-me, às santas liturgias,

Com irmãos e amigos, cuja fé traduz,



Do alto da torre, a Virgem Protetora

Da cidade feliz de que é Senhora,

A velar por teu povo, as mãos em preces.



A seus pés, ruas e praças, teus passeios

P’ros céus, jardins abertos, sobre esteios

De vida, amor e paz, onde floresces.





















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1.Op. cit., p. 66



ACARAÚ¹

A Nicodemos Araújo



Relembro com carinho os belos anos

Que ali passei.; sua gente hospitaleira.;

Seus vastos coqueirais sob a fagueira

E branda viração dos oceanos.



Sua formosa Matriz, e, em outros planos,

Escolas e Avenidas.; a urbe inteira,

Do centro aos bairros.; sua visão faceira.;

Seus pontos de atração e lazer humanos.



Eu lhes mando através deste soneto,

Meu grande abraço e fraternal afeto,

Num testemunho vivo de amizade,



À cidade e ao bom povo acarauense,

Cuja nobreza de alma nos convence,

Por quem sinto ternura, amor, saudade.







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1. Op., cit. p. 71





A UM POETA¹



Poeta! Tens ao alcance de tua mão,

Um tesouro suavíssimo de glória.

Não o desperdice nunca, meu irmão,

Como, ele, o filho pródigo da história.



Que um dia contou Jesus à multidão

Do povo que o seguiu na trajetória

De sua vida terrena, além região

Palestinense, em rumo da vitória.



Discerra a natureza, aos olhos teus,

O livro escrito pelo próprio Deus,

Cheio de sabedoria e de belezas.



Mira-te em seu conteúdo majestoso

E o Autor verás. E não darias tal gozo

Por insanos prazeres ou riquezas.





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1. Op. cit., p. 73.





REALIDADE¹



Luta, sonho e esperança, assim tem sido

A minha caminhada de alguns anos,

Enquanto as decepções e os desenganos

Tornaram-na, por certo, sem sentido.



Com a mente torturada e o peito ardido,

Ante as contradições e os desumanos

Desígnios dissolventes dos meus planos,

Há os desmoronamentos do vencido.



Tenho a minha alma e o próprio coração

Minados já por tantos dissabores,

Que o viver se me torna uma paixão.



Perdoa-me, Senhor! Mas eu não minto.

As coisas que escrevi têm essas cores

Da dura realidade do que sinto







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1.Op.cit., p. 84.

VICENTE FREITAS Araújo





VICENTE FREITAS Araújo – nasceu em Bela Cruz, Ceará. Filho de José Arimatéa Freitas e dona Maria Rios Araújo. Dedica-se à literatura e às artes plásticas, distinguindo-se como poeta, cronista e caricaturista. Depois de estudar em algumas escolas de sua cidade natal, mudou-se para Fortaleza, passando então a conviver com um grupo de escritores e poetas, freqüentadores da casa de Juvenal Galeno. É autor dos Livros: Almanaque poético de uma cidade do interior (1999).; Nicodemos Araújo – uma antologia (2000).; O carpinteiro das letras (2002) e Bela Cruz – biografia do município. Participou de várias antologias, dentre as quais, mencionamos: Poetas brasileiros de hoje, Shogun Arte Editora, RJ (1992).; Valores literários do Brasil, Litteris Editora, RJ (1996).; Contos e poemas do Brasil, Litteris Editora, RJ (1997).; Os melhores da literatura, Litteris Editora, RJ (1998).; Anuário de escritores, Litteris Editora, RJ (1999).; Encontro com a palavra, Scortecci Editora, SP (2000).; Seleção de poetas notívagos, Scortecci Editora, SP (2001) .; As melhores poesias do século, Litteris Editora, RJ (2002).; Três milênios de poesia e prosa (2003). É verbete da Enciclopédia da literatura brasileira contemporânea, vols. VII e IX, de Reis de Souza.; Dicionário biobibliográfico de escritores brasileiros contemporâneos (1998), de Adrião Neto.; Enciclopédia de literatura brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, MinC/ABL/Global Editora (2001). Em 1996, o Conselho Editorial da Revista Brasília, outorgou-lhe a Medalha do Mérito Cultural, pelos relevantes serviços prestados à cultura do país e por sua participação nas iniciativas literárias do Grupo Brasília de Comunicação. Em 1999, recebeu Medalha de Bronze, no Rio de Janeiro, por sua classificação em terceiro lugar, no II Festival Nacional Literário, promovido pela ABRACE. Foi um dos finalistas do prêmio nacional de poesia Menotti del Picchia – 2000 e do internacional Von Breysky – 2001. Seus trabalhos podem ser vistos no site: www.jornaldepoesia.jor.br/vicentefreitas.html







BOCA DA NOITE¹





Sinto uma profunda necessidade de solidão,

não a solidão do cadáver estendido...

Sou, verdadeiramente,

um cadáver estendido

e, ao mesmo tempo, um escravo das palavras.



As pessoas, enquanto sonham, não sabem

que sonham.

Essa é uma das vezes bastante raras

em que compreendo o onírico e o que sou:

um cadáver vivo, real. Não apenas um defunto.



Sonho com um máscara de três bocas.

Meu Deus, pra que tanta boca?

basta uma. Calada:

a boca da noite.



Sei que há diversas maneiras de conceber-se a verdade,

apesar de tudo me levo a contradizer-me:

nenhuma afirmação pode ser absoluta.



















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1.FREITAS, Vicente. In revista Letras & Artes, suplemento de cultura de Tribuna do Ceará, edição de 06.09.1986.







SONETO PARA BELA CRUZ¹





Ao Professor Gabriel Assis Araújo





Oh, minha santa Bela Cruz, por ti renovo

meu romanceiro de amor que não te limita.

Jamais alguém supera o que já fez teu povo

para que crescesses assim nobre e bonita.



Terra formosa assim não pode ser descrita

e talvez não se encontre igual outro lugar.

À noite, quando o povo sobre ti dormita,

eu faço serenatas para te encantar.



Minha terra natal, oh minha enamorada,

exposta ao vento e ao sol, despida, iluminada,

qual suave paisagem fixada numa tela...



Terra do passado, futuro e do presente,

para sempre prender o coração da gente...

É preciso vencer, crescer muito mais bela.



















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1. FREITAS, Vicente. In Jornal O POVO, edição de 07.01.1989.







SONETO COR-DE-ROSA¹





Moça bonita, musa cor-de-rosa,

nesta tarde calma, bela e radiosa,

fico a pensar em ti, maravilhosa

e nua, lua nua luminosa.



Sonho e sinto nessa tarde de ouro,

raio de sol, o teu cabelo louro...

mulher azúlea e rósea, meu tesouro,

sinto-me leve como um jovem mouro.



Cai a noite a ensombrar os horizontes,

e ao leve embalo murmurar das fontes,

adormecemos sobre velhas pontes...



Mas ouvindo a maciez de tua fala,

sobressaltado, acordo sobre a mala,

indo de encontro à solidão da sala.

























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1.FREITAS, Vicente. In Poetas Brasileiros de Hoje, Shogum Arte Editora, Rio de Janeiro, 1992.; p. 98.









SONETO AO DIA DO TRABALHO¹





Ao professor José Arimatéa Freitas Filho





O trabalho e os bons propósitos

a bondade e a retidão

são os melhores depósitos

pra abrigar o coração.



O trabalho e a oração

formam bonito jardim

florescendo em profusão

os tesouros de Aladim.



Estas são palavras mágicas

mui sinceras e simpáticas

de um futuro florescente.



Versos de ação e de graças

que espalhamos pelas praças

como singelo presente.

















______________________________________

1.FREITAS, Vicente. In Valores Literários do Brasil, Org. Reis de Souza. Rio de Janeiro, 1996.; p.13.







POEMETO PARA BELA CRUZ¹





– Trabalhando nessa terra,

tu sozinho tudo empreitas:

serás semente, adubo, colheita.



João Cabral de Melo Neto







Contemplando teus campos naturais

Pólens, pingos de orvalho – na úmida várzea –

Teu aniversário ouso hoje comemorar

E novamente canto teu cenário silvestre:

Espessos pomares

Casinhas modestas

Quintais pastoris

Com ruídos de vila e senzala.



Teus pequenos fatos anônimos

Hoje queremos cantar,

Com amor mais ardente

Com zelo mais forte.



Desta verde paisagem ribeirinha

Jamais olvidamos

Genoveva, a primeira habitante

Capitão Diogo Lopes, o médico

João Damasceno, o poeta

Joca Lopes, o músico...

– Onde estão todos eles?

Sobre as margens deste rio encantador

Permanecem.





Tua gente tem a face curtida por sóis luzentes

E sabe avançar

recuar

resistir

defender-se.



Tua história contém tudo:

Corpos

almas

significados

Amores

belezas

paixões

Orgulho

delicadezas

canções

Esperanças

benefícios

doações

Experiências

resultados

conclusões...

(Deleites da terra.;

lida enfadonha...)



– Onde a gente de bem trabalha e sonha!



















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1. Com este poema, o autor obteve o 3º lugar, no II Festival Nacional Literário – 1999, promovido pela ABRACE, Rio de Janeiro.

RIBEIRA ENCANTADA¹



Ao poeta Nicodemos Araújo





Saudável ribeira, mel agreste

sumo de orvalho e essências matinais

trago no olhar o linho das nuvens

e na boca sabores de luar.



Vem, poeta, até este pomar

vislumbrar este rio, este mar

e o fogo que aqui irrompe no verão

e o homem que em sua lida

faz o lavrar do chão

trabalho rústico de enxada e mão

esforço e riqueza da nação.



Esta ribeira é para nós um país de sonhos

tão belo, tão diverso, original

plantemos o companheirismo

como árvores ao longo deste rio

e assim seremos incomparáveis

imbatíveis.



Ribeira minha encantada

gama de verde carnaubal em distante extensão

murmúrios do vento celestial

acariciando o coqueiral.



Acaraú, meu Rio das Garças

osso e carne em mim feito estrela

– Sangue e Vida desta Ribeira.







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1. FREITAS, Vicente. In Best-Seller – O Melhor da Literatura, Litteris Editora, Rio de Janeiro, 1997.; p. 234.





SONETO DA INTIMIDADE¹





Invulneráveis são teus seios belos

que sempre dão prazer, prazer profundo.

Além de belos, belos e fecundos.

E eu corro muitas léguas para tê-los.



Parecem duas frutas despencando

dois frutos sob a blusa, intumescidos

e quando os vejo assim desenvolvidos

mesmo acordado... fico assim sonhando.



As tetas de cor roxa e graciosas

aumentam suas formas voluptuosas

e tremem quando em busca de carinhos.



E quando no teu íntimo absorvidos

às vezes minhas mãos e meus sentidos

beliscam como leves passarinhos.

























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1.FREITAS, Vicente. In Um Amor Diferente, Litteris Editora, Rio de Janeiro, 1998.; p. 115.









METAMOFORSE¹





Treva da noite,

nos ombros curvos da cidade,

aglomerados,

nos olhos turvos das janelas

tudo jaz sem equilíbrio.



Parte, ó homem, à aventura do amor

esquece um instante teu Ego

não é utopia fantástica,

é possível.



Talvez achareis meu poema

perdido em ruínas

com tua rude miséria exposta

em metamorfose.



Homens, rainhas, reis,

não pequemos pela maçã ou pelo pão,

voltemos à nudez do paraíso:

Mundo sem dor,

onde o homem não tem forma de lágrima.

















_______________________________________

1. FREITAS, Vicente. In Poemas e Poetas IX, Litteris Editora, Rio de Janeiro, 1999.; p.123.









O PALHAÇO¹







Quando o palhaço a dor num riso esculpe-a

e transmuda-a num tênue pranto, e vence-o

sente, às vezes, aflição, uma volúpia

que o faz sofrer sorrindo ou em silêncio.



No picadeiro canta e rola e cala

ninguém sabe quem é, qual o seu nome

qual a família que a miséria embala

quais os filhinhos, muita vez, com fome.



Conta histórias, alegre... e logo finda

sorri e canta alguma coisa linda

não tinha inspiração, mas apelava.



E eu que, pasmado, tanto gargalhava

fico confuso e mais surpreso ainda

não sorria o palhaço, e sim, chorava.





















______________________________________

1. FREITAS, Vicente. In Dez Vezes Literatura, Litteris Editora, Rio de Janeiro, 1999.; p. 207.









SONETO JÁ ANTIGO¹





Lutei com nada e nada valia a lida.

Amei a Natureza e logo após a Arte.;

Aqueci as mãos ante o fogo da vida.;

Tudo se afunda e estou como quem já parte.



Walter Savage Landor





A terra é uma estranha hospedaria.;

a vida, um espelho em sua face nua.

Deus a criou, o homem, todavia

vai destruindo como coisa sua.

Minha alma está cheia de desilusões

parece que estão sempre à minha porta.

Eu vivo ainda, e o que mais importa

é encher de poesia os corações.

Vagueio assim dias e noites a esmo

eu sou o estranho fantasma de mim mesmo

tudo se transmuda: o homem e o mito.

Como um petardo hei de explodir, aflito

e a morte então há de quebrar meu canto

me escondendo em vão pelo infinito.















_____________________________________

1.FREITAS, Vicente. In Anuário de Escritores - 1999, Litteris Editora, Rio de Janeiro,

1999.; p. 436.











SONETO DOS NOVENTA ANOS





Ao poeta Nicodemos Araújo





Poeta monumento do momento

Da história – memória, eternidade

Teus livros, em sua integridade

Cantam as pétalas do tempo e do vento.



Ora projetam lírios, teu portento

O rio, o mar, o campo e a cidade

Do homem a velhice, a mocidade

Com seu encanto e seu deslumbramento.



O soneto é tua alma, tua vela

O poema, inspiração, tua janela!

E, hoje, quando o sol nos visitar



(Pelos santos mandatos desse dia!)

A Ribeira do Acaraú vai decantar

As virtudes do poeta e da poesia.

















______________________________________

1.FREITAS, Vicente. In Sonhos e Expectativas, Scortecci Editora, São Paulo, 1999.; p. 161.









SONETO AO MEU PAI MORTO¹





"Hoje, meu pai está morto,

frio, calado e remoto:

Deus é a gleba do meu pai".



Francisco Carvalho





Teve assento nos abrolhos das garças

Do Acaraú. Ali também nasci.

Teu humilde trabalho não segui.

Teus conselhos ouvi, vezes esparsas.



Já agora, me diz a eternidade

Que meu pai é todo alma. Alma só.

Depois de humano, à flor da areia, pó.

Faina da terra. Pó. Vento. Saudade.



Foi tua vida o trabalho, as orações,

A humildade que não invejava

A fortuna de alheias possessões.



Sabes tu que o amei e o quanto amava

E esses versos ternamente hão sido

– Um cavador pra te exumar do olvido!













______________________________________

1.FREITAS, Vicente. In antologia Encontro com a Palavra, Scortecci Editora, SP, 2000, p.

209.









SONETO DE IMPROVISO¹





mais de horas levei a ler

teu álbum de poesias

procurando entender

o que nele me dizias



tua bela poesia

é livre arquitetura

atestado de ternura

trégua da melancolia



teus versos fazem lembrar

teu corpo, tudo o que cheira...

e eu neste meu cantar



citando o velho Bandeira

quero dizer-te agora

– te adoro, Teodora























______________________________________

1. FREITAS, Vicente. In III Antologia Nau Literária. Komedi Editora, Campinas, SP, 2001, p. 115.









MACUNAÍMA¹







sou Macunaíma

o herói sem geografia

sem residência fixa

sem hora



sou Martim Cererê

sou um mito

um mágico

um milagre

sou carente de você



sou sensível

às vezes, Caipora



– sou Macunaíma, o herói





















______________________________________

1. FREITAS, Vicente. In III Antologia Nau Literária, Komedi Editora, Campinas, SP, p. 116.













SORTE¹



Ao poeta Carneiro Portela





Mil novecentos e pouco

quando passava u’a moça

mostrando a perna morena

seu Zezinho da janela

de sua casa pequena

murmurava entristecido: – Exe mundo ‘sta perdido!



E agora, meus amigos,

nem se sabe o que é vestido

e as filhas de Zezinho

estão atrás de marido

(Deus sabe como elas são)

a sorte do seu Zezinho

foi ter perdido a visão.











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1. FREITAS, Vicente. In III Antologia Nau Literária, Komedi Editora, Campinas, SP, 2001, p. 116.











A MAGIA DO TEU OLHAR¹







o teu olhar verde como planta

é uma floresta ao sol

e assim – como quem amou e esqueceu –

é que me surpreende e me espanta



se falo de teu olhar e falo de planta

é que preciso usar da linguagem dos poetas

pra decantar teus olhos de ninfeta

e a natureza também é verde

– e encanta



o essencial é saber ver

de teu olhar o verde suave

que teu olhar é um canto de ave

– e te encanta



o teu olhar completa o meu sonho

e como se fosse do tamanho do universo

o teu olhar ocupa o meu verso

– e me encanta









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1. FREITAS, Vicente. In antologia E por Falar em Amor, Casa do Novo Autor Editora, SP, 2001, p. 735.









SONETO ERÓTICO¹





se eu não tivesse, amada, o teu amor

que tanto sonhei, tanto busquei e tanto

exaltei com ternura e muito encanto

eu viveria ainda imerso em dor



eu me transmudo, às vezes, ao compor

e a seiva sublimada do meu canto

dá paz ao coração e o torna santo

fazendo meu poema um semeador



a todo instante na cama e no amor

espanto a lágrima e espanto a dor

escorregando sobre tuas pernas



acho graça, não creio que pecamos

sendo carne, a isto é que aspiramos

– nossas almas que gozem sempre, eternas



























BRINCANDO COM DRUMMOND



Quando adoeci, um médico safado

desses que vivem matando gente

disse: Vai, Vicente, tá sem jeito na vida.



O homem espia a casa

e corre com medo da mulher.

A noite talvez fosse linda

não houvesse tantos ladrões.



Vivo levando pernadas:

pernas feias, sujas, empenadas.

Meu Deus, pra que tanta perna,

pergunta minha boca.

Porém, o meu coração

não pergunta nada.



O bigode na cara do homem

é engraçado, simples e fraco.;

tem poucos, raros cabelos.



Mundo, caro mundo,

se eu me chamasse Aparecida

seria uma mancada,

não seria uma saída.

Mundo, caro mundo,

mais caro é o custo de vida.



Eu não queria dizer

(minha boca não queria)

mas essa fome,

mas essa crise

deixam a gente esmorecido como o diabo.







MONSENHOR ODÉCIO



Hoje comparamos Monsenhor Odécio

a um grande pássaro

que de árvore em árvore

e de galho em galho

fez desse ninho – Bela Cruz,

o ninho ideal da gratidão e do amor.



Como bom pai nos dirigiu aqueles

belos conselhos, sábios e exatos

falou de Judas, também de Pilatos

para que não agíssemos como eles.



Para onde fores, Monsenhor,

para onde fores

iremos trilhando as palavras tuas

porque Deus nosso Pai é justo, enfim...

é bom, é luz, e sendo luz, Deus

haverá de nos guiar assim!



Os passos a seguir do Salvador,

anunciar divinas esperanças,

são partes que completam todo o bem.

Receba, Monsenhor, no Jubileu

tudo o que nossa gratidão encerra:

– seu corpo ser na terra, nossa terra.;

a alma, lá no céu, ser céu também.















INÉRCIA





pelos meus ouvidos

passam há muito tempo

ditos confundidos

ao meu pensamento



sons indefinidos

qualquer sentimento

passam como o vento

pelos meus ouvidos



não sei o que almejo

(tormento maior)

eu sinto e não vejo



ando a contrapor

inércia e desejo

suspirando amor





































SONETO TECIDO NUM SONHO





Nossos reflexos sobre o mundo de hoje,

entre dedos de fogo e olhos de medo,

reflorescem retorcidos num sonho de morte

e vivemos um refluxo de verbetes.



Sou reduto e relento, believe or not,¹

E, beneditino, me inspiro, num só vinho.

Sou eu, somos nós, somos todos

Escondendo o rosto triste e concorrente.



Em sonho existimos só espírito,

sem tempo, em sussurros, sem inverno.

Sou um menino de ferro, sou feliz?



Sou seco, sou verde, cor comum

(princípio esquecido e ser remoto)

sou ventríloquo venturoso e infeliz.























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1. Expressão inglesa: “acredite ou não”.











SERENATA¹





a idéia desata

simples e nua

trazendo da lua

um raio de prata



que meu olhar recata

que cresce e flutua

se espalha na rua

com a serenata



a música ressoa

o som vem e vai

tudo é tão bonito



a lua se escoa

e a música se esvai

além do infinito































O CASTELO





Sou um simples agrimensor.

Não tenho obsessão

ou neurose compulsiva

nem mesmo preocupação

com os ditames da conduta desta Aldeia.



Apenas não gosto desta Vila

de opressão e angústia...

Vou pra terra de Bandeira,

lá não sou amigo do Rei –

talvez tenha a mulher que queira.

Se não, me enforcarei!



A política Kafkiana desta Aldeia me sufoca.

Esse castelo nunca foi concluído.

Nem mesmo os alicerces. Nada! Nada!



– Sou um simples agrimensor!































ANGÚSTIA



Vejo o mundo com sua face mágica

e difícil.

Gostaria de poder decifrá-lo

em signos lúcidos.



O que quero mesmo

é saber os limites do inexplicável

o exato deslinde

entre a face abstrata

e o lado carnal do homem.

Abaixo os evolucionistas

com suas mil e uma hipóteses.

Não somos simiescos!



Meu Deus! sem religião

será possível um contato entre nós?

Estou aqui...

com os pés fincados à beira do Atlântico

olho a água sem respostas.



À beira do Atlântico?

– Meu Deus, parece um poço!

















SONETO BRANCO







Se você quer conhecer seu pai

pergunte pra sua mãe

tudo o que ela disser

será aceito sem discussão.



A experiência direta não é perfeita

se você quer fazer poesia e amor

leia Cem Sonetos de Amor

do poeta que nasceu em Parral.



O poeta é assim: exalta e canta o amor

não só Neruda, muitos outros

para Florbela dou meu coração.



Também canto, escrevo e amo

se você quiser meu amor

– é só me procurar.



























ACRÓSTICO







Planeta vivo do sistema solar

Legenda viva de fontes naturais –

Animais, vegetais e minerais...

Não podemos negar:

Ecologia é a ciência do momento.

Tipos variados de estudos

Ajustam teus fenômenos geológicos.



Tens em teu solo

Esplêndida formação de minerais,

Relevo submarino, ilhas de corais...

Rochas e fósseis preciosos,

Ativam teus recursos naturais!



































TAL UMA RARA FLOR





Não há filha da beleza

de magia como a tua

menina meiga e bela

tal uma rara flor



O teu luzente olhar

menina-moça, faceira

à luz da rosa dos sonhos

vem silente se mesclar



Teus doces lábios, menina

encantam o céu e o mar

e vêm as ondas ligeiras



buscam elas te beijar...

de que vale esse poema

– se você não me abraçar?





































SONETO EM FORMA DE APELO¹







Que o jogo sórdido da desconfiança

Esse micróbio da malversação

Em sua inevitável extinção

Desapareça sem deixar herança.



Que venha a nós, a paz e a esperança

Prestes a iluminar esta nação

Que eu diga sim e saiba dizer não

Com mais serenidade e confiança.



Que os lamentos dos pobres infelizes

(Desnutridos, famintos, seminus)

Sejam entendidos, desde já, por nós.



Que todos nos unamos mais felizes

Na certeza incoercível de que a luz

É dom de Deus pra todos os faróis.

















_______________________________________

1.FREITAS, Vicente. In antologia Encontro com a Palavra, Scortecci Editora,

SP, 2000, p. 210.









O GÊNIO





Madrugadinha sonhei.

Sobrevoava uma grande cidade.

De repente a paisagem mudou

E eu descia sobre uma miserável favela.

Pousei numa rampa de lixo.

Imagine o tesouro que encontrei!

– Uma velha lamparina.



Comecei a esfregá-la.

Espontaneamente, uma fumaça preta

Elevou-se do pavio

E – oh! – assombro! –

Um gênio baixinho,

Com voz de trovão, perguntou-me:

– Que ordenas! Não sou teu escravo,

Mas como encontraste esta velha lamparina...

Ordena que te obedecerei.



E eu, que fui dormir sem jantar,

Imediatamente respondi:

–Tenho fome! Traze-me algo para comer!



O gênio desapareceu na fumaça.



Acordei com pancadas na porta.

Era o Mané Trovão que me procurava...



–Trazia nas mãos uma lamparina.





MARINA





Marina pariu um peixe

e para espanto de todos

o peixe saiu voando,

em ziguezague, rumo ao mar.



Não era um peixe voador,

mas voava...planava...

Era o peixe do amor,

nascido, não do útero.;



do coração de Marina.

Ela sempre paria peixes

(fosse mesmo em pensamento)



pela boca, pelos olhos.;

os olhos verdes do mar

– o verde mar de Marina.





































SONETO DOS ALÉNS¹





Ao poeta Soares Feitosa





Abismo sombrio, sem fundo, infinito

quanto mistério e amargura afogas...

Seguimos pra morte, sem desviar o trilho

e caímos impotentes no vácuo estéril.



A terra é uma prisão côncava.; convexa,

indeferível, converte-nos ao pó.

Da noite imaterial vela o descanso

nos túmulos caiados, sem olfato.



Se daqui seguíssemos para outra vida

ou região ignota. Que toparíamos

senão perigo, não menos duro de vencer?



Oh mãe Natureza, talvez inacessível,

que nem mar é, nem terra, ar ou fogo

– desdobra-nos para o vôo da eternidade.





























MACHU PICCHU





Você já ouviu falar

de Machu Picchu

a cidade sagrada do Peru?

O lugar é belo!



Se você está de férias

pegue um trem em Cuzco

tem um sobe-e-desce

vales e montanhas...



Dói suas entranhas

da cabeça aos pés

dói além do quíchua.



Mas... deixe de moleza

e curta a beleza

de Machu Picchu.

































OS PENSADORES





Ao poeta Mário Gomes





Platão estava sempre de plantão

Espinosa furava como espinho

Malinowski gostava de índias

Dante andava sempre adiante

Bacon adorava tabaco

Fichte era fetichista

Adorno usava bijuteria

Hegel fabricava gel

Maquiavel usava maquiagem

Voltaire dava de ré

Descartes era descartável

Marx era o máximo

Nietzsche escrevia

O que Zaratustra dizia

Já o Galileu dava um telescópio

Por uma galinha

































ZIGUEZAGUE





Ao poeta José Alcides Pinto





Variações sobre a letra Z

Z azul – estremecido –

animado

Z que faz voltar ao A

ao ar

o Z da mosca

o Z do Zorro



Z de Nietzsche

de Zola

Z do livro na escola



Z de Zen

Z de Avesta

Z de zênite

Z de zero



Z de Zaratustra

Zamenhof

Zeppellin

Zapata

o Z que mata



Z do zodíaco

do raio

dos mares

Zumbi dos Palmares









Z da liberdade

dos Aztecas

do Quetzal



Z de Zita

Santa de Lucca

e minha irmã



Z de Zé-povinho

da zebra

do vinho



E agora José

um Z qualquer?



Z do universo

– o Z do verso





































APÊNDICE





OS CAMBARÁS EM FLOR





Lauro Menezes





Fitei ao longe... a serra era distante...

– O sol-oriente, um belo sol de maio,

Redoirava a esmeralda luxuriante

Da flora farfalhante

Que ostentava o esplendor de um verde-gaio.





A natureza era um evangelho santo.

Aberto no veludo das alfombras!

– Em tudo, um coração, em tudo, um canto,

Feito do mago encanto

Que habita n’alma de cetim das sombras!





Tomei de meu chapéu, parti risonho,

Levando dentro d’alma, em cada sonho,

Um gesto de beleza esplendorosa!...

– Distante, a serrania azul, formosa.;

Mais longe, a natureza sorridente,

Bebendo pelo azul do firmamento

A poeira da luz, pulverizada,

Que eleva-se do céu, na grande arcada,

Onde se perde o próprio pensamento!



Andei... corri... por fim, cheguei ao cume

Da fresca serrania, onde o perfume,

Na ebriedade da flor a flor, resume,

Ao dolente sabor da viração,

Balsamizando a dor...

Povoando a solidão!...









Andei perdido a esmo, entre os fraguedos,

Entre as lianas floridas,

Como criança que busca os seus brinquedos.;

Mas, as franças pendidas,

Quedavam do rigor de um sol ardente,

Num silêncio latente,

Como na sombra, as tenras margaridas!





Aos calores do sol chegou-me a sede...

E exausto de fadiga,

Andei, corri pela floresta verde.;

Mas, nem sequer a lépida cantiga

De uma fonte queixosa,

Ouvi, banhando a sombra veludosa.





Cheguei depois a um verde laranjal,

Belo vergel florido,

Onde via-se a pompa tropical

Deste Brasil querido,

Onde um rio é um mar... e o mar, cantante

Um cancioneiro astral,

Que, com luz irisante

Esplende a seiva nua e palpitante!



Entre o vário matiz das trepadeiras,

Na cabana, avistei de meu caminho,

Duas formosas e gentis fiandeiras,

Que, o canto unindo em matinal canção

À onomatopéia das palmeiras,

Fiavam docemente,

Os sedosos capulhos do algodão!





Quando eu cheguei à porta da cabana,

Assim como Jesus, a uma samaritana

Pediu água em Belém,

Eu fui pedir também

A essa gentil serrana,

Dos lábios cor de rosa...

Das duas a mais nova e mais formosa!





Ela sorriu... corou... deu-me a beber

A linfa de cristal que banha a serra

No regato a correr...

... E entoando um madrigal,

Olhou-me com um olhar que tudo encerra

Desde a ternura até o amor genial!...





Quedei por muito tempo, o olhar absorto

Nos verdes cafezais ...

E, que conforto

Eu não senti então?!

Os laranjais,

Tinham esse grato aroma das capelas

E o simbolismo branco de um noivado,

Fazendo recordar das virgens belas

O regaço de flores constelado!...



Amou-me muito essa gentil fiandeira

De lábios de romã.

E a sua terna irmã...

A mais velha, a primeira,

Disse-lhe um dia:

– Oh ! minha doce amiga!

Eu sei que tu amas!

– É muito forte o Amor e ainda é mais santo

Quando esse Amor o coração mendiga!





... mas, se o pranto,

te enliana o riso dentro da paixão,

hás de cedo findar-te, como as ramas

dos verdes cafezais pelo verão!

– Procura isso esquecer, sofrendo, embora,

É grande o amor,

mendigado na dor!

Porém, no esquecimento,

hás de matar o amor que te devora!

– O amor, morre também...

e as vezes tão depressa quanto vem!





...E a irmã lhe respondeu:

– Jamais!... Jamais!...

– Eu sei o que é o amor no coração

– Não posso me esquecer dessa visão

– Em tudo ela palpita... os laranjais

– Estes capulhos brancos de algodão,

– Tudo... tudo recorda

Essa visão que acorda

A minha solidão! Jamais! Jamais!



... E quando os cambarás brotando em flor

Puseram-se a murchar,

Eu tive que deixar

A pátria desse amor!...





... Nos alcantis o cambará murchava,

E eu, tendo que partir,

Disse à pobre menina que chorava:

– Eu parto... adeus... mas antes de sair,

Juro-te à luz do sol que me alumia,

Que breve hei de voltar!





– Quando as folhagens

Brotarem pelo inverno, das mangueiras

Na copa esmeraldina,

E, os cambarás em flor,

Florirem novamente estas paragens,

Eu voltarei com meu sincero amor!





Nos alcantis o cambará murchava,

e eu parti... eu parti...

mas, eu chorava!





Foi-se o tempo a passar:

– Na laranjeira,

As flores despontavam...

E a minha alcandorada companheira,

Essa gentil fiandeira,

Olhava no alcantil, se já voltavam,

Os seus dias de amor.;

Até que um dia,

Fitando sempre, viu que já floria,

O verde cambará brotando em flor!





...E eu nunca mais voltei!...

Ela expirou...

Mas, antes de expirar,

Chamou a boa irmã e murmurou:

– Sinto a morte chegar.; quando eu morrer,

Como consolação,

Eu quero ter na hora derradeira,

Dentro do meu tristíssimo caixão,

Em vez da branca flor de laranjeira,

– A flor desta paixão:

– Uns verdes cambarás, brotando em flor!





* * * * *





...Desde esse tempo, nunca mais murchou,

O cambará nos alcantis da serra.;

A flor do laranjal sempre fenece,

E, toda planta, uma vez só floresce,

Quando passa o verão:

– Somente o cambará não perde a cor,

...E vive eternamente...

...eternamente em flor!...























______________________________________

1.Poema extraído do livro Os Cambarás em Flor, de Lauro Menezes, 2ª Edição, Tipografia Araripe,1938.







VASO QUEBRADO¹



Lauro Menezes





Certa vez, uma moça, distraída,

Brincando, por acaso,

Lançou uma semente ressequida

Dentro de um vaso.



E depois atirou-o para um lado.

E alegre, jovial,

Foi-se embora, deixando abandonado

O vaso, num recanto do quintal.



Passou-se o tempo... E ela nem mais uma hora,

Um momento, sequer, pensou no caso.

Mas a semente germinara... E agora

Era uma planta a bem nascer no vaso.



Em pouco não continha humos bastante

A terra lá do vaso. E era de ver

A raiz, como serpe, coleante,

Dobrando-se, crescendo a cada instante,

Na ânsia de viver.



A planta pouco a pouco ia morrendo,

Exalando um perfume raro e doce.

Mas a raiz lutava, ia crescendo... crescendo...

E o vaso espedaçou-se.



Às vezes um olhar indiferente,

Lançado sem a mínima intenção, como a semente,

Germina. E pouco a pouco, e lentamente,

Vai nascendo em segredo uma paixão.





E o coração a custo vai contendo

A cálida paixão,

Que, dia a dia, aumenta, e vai crescendo...

E espedaça-se o pobre coração.



E é por isso que, sem se saber porque,

Fica-se admirado,

Quando ao acaso por aí se vê

Um pobre coração despedaçado.













































______________________________________

1.Cópia conseguida com o poeta Nicodemos Araújo, em 1986.















































































































































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