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Contos-->UM CRIME QUASE PERFEITO -- 17/03/2004 - 20:51 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
UM CRIME QUASE PERFEITO


— Hoje tem reunião; vamos lá?

— Claro! E vou perder? Respondi vivamente a quem me havia feito tal convite. O certo seria “hoje há reunião”, mas meu interlocutor não era lá muito chegado a coisas de português e gramática!

Estávamos no mês de janeiro e o ano devia ser 1962. A cidade era o Rio de Janeiro. Por essa época, no meu entender os verdadeiros “anos dourados” daquela cidade, o Carnaval ainda não se tornara mera contemplação passiva dos desfiles de Escola de Samba diante da televisão, ou nas arquibancadas dos sambódromos espalhados hoje por toda parte. Brincava-se muito, a valer, generalizadamente. Muitos, de forma inocente, ingênua mesmo. A maior parte, porém, via nessa festa popular um grande incentivo para o extravasamento da libidinagem.

Nessa festa há uma exacerbação da libido, que exsuda como o suor nos dias quentes. Eu não era diferente. O Carnaval era motivo de muita sacanagem, ou pelo menos esperança de! Havia, no meu caso pessoal, uma grande justificativa, para não dizer vantagem: estava nos meus 22 anos.

A reunião a que estava sendo convidado era um dos ensaios que costumavam acontecer nos salões do Bola Preta, famoso clube carnavalesco do Rio de Janeiro. Meu amigo chamava-se Élio, mais conhecido como Elinho. Era uma espécie de Conselheiro do clube e conhecia tudo. Por ser bem mais velho que eu, sua roda feminina de amizades também tinha bastante experiência em vida e em anos. Mas em volta dessa experiência, muitas mulheres novas, na flor da idade, adejavam febrilmente. Era exatamente aí que eu punha meus interesses. Essa situação muito me agradava e, freqüentemente, acompanhava-o aos ensaios, que às vezes ocorriam na parte da tarde, alcançando a noite.

Não me recordo se essa noite específica trouxe frutos. Essa, como todas as outras da espécie, deve ter rendido alguma coisa, pelo menos um novo conhecimento, um número de telefone etc.

Trabalhávamos eu e o Elinho num estabelecimento bancário de uma só agência, num prédio de esquina da Rua da Assembléia, no centro do Rio, onde funcionava a direção geral (matriz) e todas as demais dependências da instituição. Não digo o nome e o endereço da empresa, nem darei maiores detalhes, para evitar que algum possível leitor desta história, contemporâneo daquela época, venha a identificar as pessoas citadas, as quais, acho, gostariam de permanecer incógnitas. Talvez essa preocupação seja inteiramente tola, pois muito dificilmente esta história encontrará algum leitor, ainda mais daquele tempo...!

Nossa comunidade de trabalho era bem pequena, ao todo o número de funcionários talvez não passasse de trinta, entre homens e mulheres.

Ah, as mulheres que trabalhavam ali! Havia o salão principal, à entrada do prédio, onde funcionava o expediente, com um grande balcão na frente e duas guaritas de caixa numa das pontas, tudo bem fiscalizado pela gerência, que ficava numa plataforma mais elevada, num canto do salão. Falava das mulheres! Nesse salão havia diversos funcionários, quase todos antigos, e duas moças atendentes. Que moças! Jovens, bonitas, bem vestidas com roupas que delineavam, e às vezes mostravam boa parte daqueles corpos magnificamente torneados e crestados pelo sol das praias cariocas, encantavam com a meiguice do trato com as pessoas, com a faceirice do olhar e com o sotaque gostoso e “caliente” que saia de suas bocas carnudas! Chama-las-ei moça um e moça dois, tão lindamente diferentes entre si, mas igualmente maravilhosas. Não sei se exagero nos adjetivos. Minhas lembranças daquele tempo são doces e suaves como o amor platônico que sentia por ambas, mais pela moça um que pela moça dois. A moça um era mais baixinha, condizente com minha altura e correspondia, pelo menos socialmente, às minhas brincadeirinhas libidinosas! A moça dois, também muito bela, era mais fechada e não gostava de certas liberdades...

Mas não demorou muito para reconhecer que minha paixão platônica — que hoje seria chamada de virtual — não tinha futuro. Fiz-lhe, à época, muitas poesias, a ela que era a musa de meus versos e de meus sonhos! Ao relê-los agora vejo-a inteiramente como era à minha frente! Que saudade, meu Deus! Onde estaria ela hoje? Será que o tempo terá respeitado aquele corpo sensual esquecendo-se de marcar-lhe os sinais da velhice? Digo velhice, pois, se viva, deverá ter uns 65 anos mais ou menos. Como eu! Mas eu, apesar da idade, não envelheci; continuo a ter na minha cabeça os mesmos 22 anos que tinha naquela época e sua lembrança me reconforta, afastando da minha mente o azedume que o tempo lhe cumulou.

No andar de cima do salão, logo depois de um mezanino, funcionava a parte interna da seção de cobrança e desconto de títulos. Poucos funcionários e muito serviço. Ali também havia duas moças, bonitas e novas, que, todavia, não tinham o charme e a beleza da moça um e moça dois, do andar de baixo. Cada qual, porém, possuía algo de particular que as realçava: a moça três, uma descendente de árabe, morena clara, tinha os cabelos pretos, de uma negritude que azulava, e uns olhos grandes, da cor do mel, como as tâmaras do deserto (onde seus ancestrais viveram), que chegavam a ofuscar os cabelos de tão belos. Gostava dela, mas de uma maneira diferente do que sentia pela moça um.

A moça quatro era uma suburbana da Baixada Fluminense. Sem preconceito com as pessoas dos arrabaldes, guardo a referência porque, em face da distância, ela estava sempre a correr, esbaforida, com medo de perder o ônibus. Nunca havia tempo para um happy hour com os colegas. Nosso relacionamento, em decorrência disso, não passava de assuntos de trabalho e nas horas do expediente. Mas, como eu desejava que tal barreira fosse ultrapassada! Invejava um dos colegas que morava perto dela e viajavam juntos, ida e volta, todos os dias! Ela era pequenina, branca, de olhos marrons, cabelos à altura dos ombros e uma boca de lábios médios, muito sensual. Estava quase sempre resfriada, talvez devido às friagens das manhãs suburbanas, o que lhe acrescentava charme especial, com a voz enrouquecida, o nariz avermelhado e a boca molhada. Como, naquele tampo, gostaria de ter beijado aquela boca, mesmo naquelas condições! Mas nunca tive chance e sentia um forte sentimento de inveja do rapaz que a acompanhava. Guardei também seus nomes e figuras na minha memória e deles me recordo com freqüência.

Como se vê, naquele tempo e durante muitos anos depois, aliás até hoje, era apaixonado por todas as mulheres do mundo! Devo ter sido correspondido por meia dúzia delas, se tanto! Volúpia putativa! Ah, aí está um nome substitutivo, mais antigo, para os verbetes platônico e virtual! Uma beleza de achado!

***

Volto ao prédio da Rua da Assembléia, onde passei grande parte dos dois melhores anos de minha juventude! Tinha à minha frente a sensualidade encarnada da moça um e, no andar de cima, a paixão recôndita pela moça resfriada. Algumas tardes passeava pelos ensaios do Bola Preta e à noite freqüentava a universidade.

A vida transcorria normal, salvo a grande ebulição política que agitava a cidade, como um vulcão prestes a explodir e que acabou explodindo mesmo dois anos mais tarde. No meio de todo aquele burburinho pairava eu tranqüilo, com meus sonhos intermináveis, minhas paixões eternas recolhidas e a libido liberada mas não saciada! Não sei se é culpa do sangue quente da raça italiana da qual descendo, ou da carência afetiva crônica de que padeço, ou de coisa melhor com que ocupar a mente, ou de tudo isso junto!

A rotina bancária consumia a melhor e mais produtiva parte do meu dia, deixando-me livres apenas as noites e as madrugadas.
O banco, como disse, possuía uma só agência, mas tinha uma clientela selecionada. Grandes lojas mantinham conta ali e utilizavam maciçamente o seu serviço de cobrança. É que, por ter uma só agência e ser muito pequeno, prestava aos clientes um atendimento realmente personalizado, coisa que os demais não podiam fazer. Freqüentava o salão, sempre com grande vozerio e alarido, um dos antigos presidentes do Botafogo Futebol e Regatas, que contava à época com jogadores de nome Garrincha, Nilton Santos, Didi etc. Via-se, também ali, assiduamente, o cantor Carlos Galhardo. Eu que era seu fã, desde criança, olhava admirado para aquela figura carismática, quase lhe pedindo para cantar Fascinação(1).

A práxis bancária da época era bem rudimentar, quase tudo feito à mão, artesanalmente. Máquinas, somente as de somar e uma grande, precursora dos computadores, que registrava a movimentação de depósitos e saques de cada cliente, mantendo o saldo atualizado, feita em fichas grandes, amarelas, com o nome e endereço do correntista em cima, no alto da página. Havia também a máquina autenticadora do caixa, ainda hoje existente sem muitas alterações. Colado à ficha, havia sempre um cartão de autógrafo, a fim de que o conferente, que liberava os saques, pudesse conferir a autenticidade da assinatura contida no documento.

Cada funcionário se encarregava de uma parte do processo: a moça um e a moça dois, às vezes ajudadas por algum outro funcionário, inclusive o próprio gerente, atendiam a clientela, colhendo os cheques, entregando-os aos funcionários encarregados do preenchimento das grandes fichas amarelas; dali, as fichas, apensadas dos cheques, eram encaminhadas ao conferente, que rubricava os cheques e os lançamentos feitos nas fichas; o próximo passo era dos funcionários do caixa, que chamavam os clientes pelo nome, — sempre em voz bem alta, especialmente quando o nome em questão era feio, ridículo ou produzia algum cacófato — e lhes entregava o dinheiro. Assim era a rotina dos saques. A dos depósitos era bem mais simples: o depositante ia direto aos caixas e efetuava os depósitos, cujo comprovante era depois lançado na referida ficha amarela e posteriormente autenticado pelo conferente. Enquanto o cliente esperava a realização de todo o processo nos recebimentos, no caso dos depósitos sua presença era dispensada, pois os lançamentos nas fichas amarelas poderiam ser feitos posteriormente.

O leitor poderá perguntar o porquê dessa explicação, já que hoje tudo é muito diferente, automatizado e informatizado. A quem interessaria a história da prática bancária? Sugiro um pouco de paciência ao leitor heróico que chegou até aqui.

Naquele processo, havia uma tarefa de suma importância, que era a do acompanhamento diário de toda a movimentação financeira, ou seja, o fechamento/balanceamento da movimentação do dia, que deveria constar dos balancetes mensais e do balaço semestral. O saldo anterior, correspondente aos depósitos e saques de todos os clientes até o dia anterior, era sensibilizado pelos depósitos e saques do dia presente, o que produzia um novo saldo para o dia seguinte, que deveria bater(2) "pari passu" com o encaixe do banco, acrescido de suas aplicações na antiga SUMOC, antecessora do Banco Central.

Essa tarefa, realmente uma das mais complicadas e importantes do banco, era executada por um só funcionário, o Otávio; esse é o nome fictício que lhe atribuo agora; era respeitadíssimo por todos e gozava de confiança irrestrita do gerente e dos diretores, que ficavam todos na mesma sala da Gerência. Otávio ganhava bem, bem mais que os outros, e não faltava quase nunca, nunca mesmo. Fazia já vários anos que não tirava férias e a chefia lhe era grata por isto. Não havia substituto à altura, até mesmo porque Otávio não permitia que outros funcionários se intrometessem em sua área.

Por essa época, a moça dois casou, lamentavelmente. Casou meio de supetão, no civil e no religioso. Houve uma bela festa a que todos compareceram. Só isso. Depois sumiu e nunca mais deu notícia.

Em seu lugar apareceu Cidinha, Maria Aparecida de Oliveira, em seu nome também fictício. Essa era diferente: muito meiga, doce, suave, falava manso e andava macio como que pisando nas nuvens ou em ovos, para não subirmos tanto. Tinha os lábios finos, a pele branquíssima, uma linda cabeleira negra encaracolada, e um corpo... ah, o corpo da Cidinha era realmente bonito, escultural! Cintura fina, fina, como a das divas do cinema; busto razoável (no tamanho, é claro!), lindamente delineado sob a blusa branca do uniforme que era obrigado a usar no banco; pernas torneadas, nem grossas nem finas. Mas o que realmente desequilibrava nela era o bumbum: Cidinha tinha uma bunda monumental, maravilhosa, respeitável, de fazer inveja às tiazinhas e feiticeiras de hoje. Mas não era disforme, tipo montículo ou murundu, como diria Ziraldo; era lindamente harmônica com o resto do corpo.
Não preciso alongar-me. A moça caiu logo na simpatia de todos. O banco cresceu de repente, parecendo haver dobrado de clientela. Os funcionários, sem exceção, apaixonaram-se pela moça, que não tinha nem namorado. Era nova, de 22 anos mais ou menos, e morava também no subúrbio do Rio. Que maravilha!

Mas, não é que veio a namorar exatamente o Otávio? Bem, explico: não foi bem assim. O assédio sobre ela era qualquer coisa notável: olhares e piadas e convites choviam e partiam de todas as direções. Ela, porém, irredutível, fingia não vê-los nem ouvi-los. Otávio foi mais sabido que todos, conquistando-a pelo interesse: dava-lhe presentes; no início, singelos; depois, encareceram e atingiram as prateleiras e vitrines das joalherias. A moça recebia dele presentes caríssimos semanalmente e ela, mais por ingenuidade que por desejo de mostrar-se, usava-os delatando o doador. As jóias realçavam sua beleza, embora nem precisasse delas: ficava contudo irresistível, tal a maravilha daquele corpo encantador!

Otávio tinha família: três filhos menores, mulher e todo o parentesco afim daí decorrente. Morava também no subúrbio, em casa modesta. Não tinha carro e viajava de ônibus para o trabalho. O fato de não possuir carro não significava nada, nem tem importância no contexto desta história. Apenas faço o registro. Por esse tempo ninguém tinha automóvel mesmo, salvo exceções. As fábricas de carro nacional apenas estavam começando a produzi-los, trazidas da Europa pelo insigne Juscelino Kubitschek, o criador do fim de semana. Criador do fim de semana? Sim! A vinda do fusquinha permitiu ao carioca, paulista, mineiro, enfim, ao brasileiro em geral, de classe média, gozar o final de semana, que passou a ser maior. Antes dele trabalhava-se aos sábados e ninguém saía aos domingos para a estrada em busca de lazer: restaurantes, passeios... A rigor, não havia fins de semana.

***

Feita a digressão, voltemos ao Otávio, que passou a gastar desmesuradamente com a moça da bunda grande, em proporções cada vez maiores. A bunda não, os gastos... Sua paixão por ela interferiu no relacionamento conjugal. Separou-se. Montou belo apartamento para sua amada na Zona Sul da cidade, mobiliando-o com esmero, bom gosto e muito dinheiro. Não moravam juntos, pois ela não quis. Parece-me que a relação dos dois era mais platônica; se deitaram juntos, não sei, mas é provável que o tivessem feito, pois senão o fluxo de presentes certamente com o tempo estancaria... Mas isto não aconteceu. Pelo contrário: o derrame presenteiro aumentava a cada dia. Essa situação deve ter permanecido assim pelo menos por uns oito meses. Soube-se mais tarde que ele passara o apartamento para o nome da moça, e havia adquirido um outro para si, nas vizinhanças.

Numa quinta-feira, à hora do início do expediente, ela passou pela porta do banco, devagarinho e buzinando para chamar a atenção, dirigindo um fusca novinho presenteado pelo Otávio. Foi um gesto infantil, apenas para mostrar-se, deixando Otávio furioso. Lembro-me bem desse dia: era final de mês, dia de fechamento do balancete mensal e contagem do encaixe do banco. Como costumava acontecer nessas datas, Otávio ficou até tarde fechando as contas e fazendo o balanceamento dos saldos. Qual não foi a surpresa geral dos funcionários ao verificarem no dia seguinte, pela manhã, na abertura do expediente, que Otávio não fora para casa, nem dormira! O balancete não ficara pronto, pois as contas não fechavam. Havia algo de estranho no ar. Por volta das onze horas da manhã, Otávio, pressionado pela Gerência para apresentar o famigerado balancete, não teve jeito senão admitir:

— Sr. Gerente, não consegui fechar as contas. Elas não batem. Há qualquer problema que não consigo detectar. Estou pregado, cansado e com muito sono. Não consigo enxergar mais nada! Vou pra casa. Na segunda-feira, já descansado, acharei a diferença!


Mais não disse. Via-se patente a sua perturbação. Estava pálido. Desconversando, pediu licença à gerência e foi para casa dormir.

Nessa mesma sexta-feira, à tarde, todos os chefes das seções do banco e os funcionários mais graduados e antigos, — ao todo umas oito pessoas —, receberam da Gerência um bilhete em envelope lacrado, com os seguintes dizeres:

"Convoco V.Sª para comparecer amanhã, sábado, às 8h, no gabinete desta Gerência, para tratar de assunto da maior gravidade. Recomendo sigilo absoluto.
Assinado: a Gerência"

Levei um incrível susto ao abrir o envelope lacrado, não usual nas comunicações internas do banco, e ler o que ali se dizia. Devo ter ficado pálido, sem saber do que se tratava. Percebi, logo, porém, que outros chefes, como eu, também haviam sido aquinhoados com a mesma deferência. Passei o resto da noite apreensivo, pois nem suspeitava do que fosse. Acho que a maioria dos convocados estava na mesma situação que eu.

***

No dia seguinte, uma bela manhã carioca, de sol quente desde cedo, dirigi-me ao centro da cidade, passando por algumas praias da Zona Sul, já apinhadas de banhistas, o que me deu uma inveja danada de quem estava ali. Já me habituara a freqüentar as praias aos sábados pela manhã. Como disse alhures, esse dia havia sido incorporado ao descanso dos finais de semana, esticando-os.

— Bem! - disse o gerente, sem qualquer cumprimento inicial. - Já que estão todos aqui, vou direto ao assunto. Apresento-lhes o detetive Moacir, da Delegacia de Roubos e Furtos, que lhes vai fazer uma preleção.

Todos os funcionários convocados entreolharam-se desconfiados: polícia! “Que teria havido”, pensei comigo, quase tão alto que tive medo de que os outros ouvissem meus pensamentos.

O detetive Moacir, um mulato alto, magro, de cara fechada, de meia idade, discorreu durante quase uma hora (uma eternidade!) sobre as diversas diferenças entre furto, roubo, fraude, desfalque etc. etc.: o resumo da ópera era que alguém estava roubando, furtando, desfalcando, fraudando enfim o banco. A nossa missão ali era tentar apurar, o quanto antes possível, a técnica utilizada e os valores envolvidos.

Entre os convocados não estava Otávio; mas ninguém, acredito, ligou o fato à pessoa dele; nem eu, a despeito de toda a celeuma verificada no dia anterior, quando foi pra casa, cansado e acabrunhado, sem ter fechado o balancete do mês!

Feitos os discursos, arregaçamos as mangas e pusemos mãos à obra, usando dois velhos chavões para dizer que iniciamos os trabalhos com afinco. Segundo explicou-nos o detetive, que conhecia bem essa coisa de desfalque em bancos, o meliante deveria ter agido assim: sobre depósitos falsos teriam havido saques verdadeiros. Como descobrir?

O primeiro passo foi somar as fichas amarelas dos clientes, folha por folha, saldo por saldo, para verificar-se quanto deveria ser o encaixe do banco, retiradas as aplicações financeiras da instituição em outros bancos e na SUMOC. O resultado foi surpreendente! Os Diretores e o Gerente e Subgerente arregalaram os olhos, petrificados! O buraco era enorme; daria para comprar alguns apartamentos da melhor qualidade, nos melhores bairros do Rio! Quase todo o encaixe — dinheiro, cheques e demais valores disponíveis no cofre — tinha evaporado, sumido, inexplicavelmente! Inexplicavelmente? Não. Dentro de algumas horas mais tarde, tudo ficou esclarecido.

O autor dos desfalques não era nada mais nada menos que Otávio e todo o dinheiro sumido, ou grande parte dele, havia sido gasto com Cidinha. Ora vejam!

A técnica utilizada era a seguinte: durante as noites em que ficava sozinho fechando o balancete, ele abria contas novas, com nomes fictícios, preenchia a respectiva ficha de depósito, autenticava o documento em uma das cabines de caixa, preparava o cartão de autógrafo, tudo como se fosse real. Guardava a papelada em local que só ele sabia, longe de olhares alheios. No dia seguinte, exatamente numa hora em que houvesse muito movimento na agência, a ficha de depósito falsa, acompanhada do cartão e do recibo de depósito autenticado, era inserida no meio de outras fichas verdadeiras, relativas a depósitos que estavam sendo realizados naquele momento pelo público.

Não havia possibilidade de o contador desconfiar: todas eram idênticas, inclusive nas datas de autenticação do caixa. O contador chancelava o depósito falso, rubricando tudo. Pronto. Estava feita a tramóia. Ao final do dia, o fechamento dos caixas conferia com a soma dos depósitos e saques efetuados, obviamente retirados pelo Otávio os valores depositados falsamente. Em qualquer dia e hora depois, alguém, que nunca se descobriu quem seria, aparecia no caixa e sacava o dinheiro. E assim, o capital do banco ia sendo aos poucos surrupiado

O trabalho da equipe de pesquisa durou aquele sábado todo, até à madrugada, e continuou no domingo. Ninguém saiu da agência. O Gerente providenciou lanches para todos.
Lá pelas 14 horas do dia seguinte o trabalho ficou pronto. O pessoal, já cansado, não deixou de admirar a quantidade de fichas falsas abertas pelo Otávio: cerca de 35 depositantes falsos. Houve uma noite em que foram abertas de uma só vez 11 fichas. Deve ter sido na época em que comprou o apartamento para Cidinha. É importante observar que, para não chamar a atenção, os valores depositados fraudulentamente não eram expressivos; daí a necessidade de abertura de muitas fichas para propiciar a compra das jóias, do carro, dos apartamentos etc. A identificação das fichas falsas demorou a ser feita pela equipe, no início dos trabalhos. Com o tempo, verificou-se que todas eram parecidas, especialmente na assinatura do cartão de autógrafo. Outro fator importante era que a maioria dos depositantes era conhecida de quase todos, pelo nome. Dos depositantes falsos, porém, nunca ninguém havia ouvido falar. Era o princípio da pesquisa.

Segundo o detetive, a intenção do falsificador era de um dia começar a repor o dinheiro do banco, com a utilização de técnica inversa: os depósitos seriam verdadeiros, inutilizando-se posteriormente as fichas amarelas.

Mas não deu tempo. Para que os desfalques não fossem descobertos, em cada balancete, na ficha de soma dos saldos de todos os depositantes, o valor desfalcado era subtraído sem impressão, como fazia diariamente para efeito do fechamento da movimentação de caixa. A Gerência não tinha sido muito cuidadosa: se verificasse amiúde o encaixe do banco, certamente Otávio teria sido desestimulado a fazer o que fez.

Nessa última quinta-feira, ao fechar o balancete, não se sabe bem porquê, Otávio equivocou-se no montante que não seria impresso na fita da máquina de somar. Perturbou-se. Tentou novamente e os valores não fechavam. Passou a noite inteira tentando refazer as contas, o que de certa forma auxiliou muito a equipe: grande parte das fichas falsas tinham sido agrupadas, fora da ordenação lógica da ordem alfabética.

A perturbação de Otávio chamou a atenção da Gerência, que contatou a Inspetoria do banco. Em pouco tempo, o inspetor, o detetive Moacir e o Gerente tiveram certeza do que estava acontecendo: não sabiam, porém a extensão da coisa. Essa identificação do tamanho do desfalque é que foi atribuída à equipe da qual fiz parte.

— E agora, Sr. Gerente, o que vai acontecer? Era a pergunta feita por todos.

— Nada! Se esse desfalque vier a público, haverá uma corrida da clientela e a falência da instituição será certa. Portanto, pedimos a todos que mantenham todo o sigilo possível, inclusive como forma de garantir a manutenção do emprego de vocês todos.

Foi o que fizemos. Nenhum dos funcionários comuns ficou sabendo da história. Na segunda-feira, todos estávamos como que de ressaca. Lá pelas 4 horas da tarde, vimos Otávio subindo à plataforma da Gerência, acompanhado do detetive Moacir e de um dos Diretores. Entraram em uma sala reservada e de lá saíram umas duas horas depois. Otávio afastou-se do prédio, ainda acompanhado do detetive, não dirigindo o menor olhar para o salão onde estávamos: não demonstrava estar tão perturbado como deveria!
Cidinha entrou em férias só retornando ao trabalho uns dois meses depois. Não havia como recuperar dela o apartamento, nem todas as jóias e presentes que recebera de Otávio. Além do mais ela era muito importante como chamariz da clientela: continuava faceira e “gostosa” como nunca. Tudo permanecia como dantes: nenhum comentário dela ou dos colegas sobre o que havia acontecido!

Otávio não foi processado pelo banco, que temia que o caso viesse a lume e acarretasse a tão temida corrida ao caixa. Fizeram um acordo, no qual ele se comprometia a devolver todo o dinheiro desfalcado. Se cumpriu o acordo e se devolveu parte ou todo o dinheiro ninguém ficou sabendo. Não houve também jeito de tomar-lhe o apartamento que havia comprado na vizinhança do de Cidinha.

Otávio apenas perdeu o emprego: mas estava quase rico!

Alguns meses mais tarde o banco foi adquirido por uma grande instituição financeira. Eu mudei de emprego e de cidade. Nunca mais ouvi falar de nenhum dos personagens desta história. O Carnaval desfigurou-se, mas o Bola Preta lá continua...


Adelay Bonolo


(1) Um dos maiores sucessos do cantor e, mais tarde, de Elis Regina.

(2) Bater, na gíria dos contadores e bancários, significa conferir, coincidir, estar certo.
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