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Contos-->Mãe e filha - Rara magia -- 01/04/2004 - 23:14 (Barbara Amar) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Caminhavam juntas. A mãozinha da criança agasalhada pela mão feminina. Tão diferentes uma da outra. Para mim, desde o começo, ficou claro tratar-se de mãe e filha. Minha sensibilidade diferenciada captou imenso amor a uni-las; mais que isso, uma aura irreal as envolvia. Buscando detalhes, constatei a dolorosa tristeza a impregnar os olhos castanhos da mulher, embora sorrisse para a criança. Já a garotinha era a alegria em pessoa, curiosa, balançando a cabecinha loura, tudo anotando com as jóias extraordinárias dos olhos azuis. Azul incomum, cor do firmamento, irradiando felicidade.
Saíam de um “shopping center” em Botafogo e não carregavam compras. A guria, pequeno espécime de bailarina, andava na pontinha dos pés. Reparei que a moça caminhava igual, de forma mais disfarçada. Pareciam ignorar o mundo, absortas em si mesmas. Tive, confesso, vontade de segui-las, dominado por descomunal curiosidade. Queria inteirar-me das suas vidas, provar seu dia-a-dia, acompanhá-las qual anjo protetor. Assim, fui escoltando-as, invisível, até o modesto sobrado onde entraram, ali perto, na rua da Passagem. Postei-me na calçada em frente na esperança de vê-las na pequena varanda ou, quem sabe, debruçadas à janela. Movia-me sem pressa observando os diversos estabelecimentos comerciais. Por fim, tomado de audácia, atravessei a rua e entrei na loja de miudezas que ocupava o andar térreo da rústica construção. Perdido entre fitas, linhas e quinquilharias, fui atendido pela senhora idosa, dona do armarinho. Após ter escolhido uma bugiganga qualquer indaguei, com ar inocente, se ela morava ali mesmo.
- No sobradinho?
- Sim, confirmei, esforçando-me para encobrir a ansiedade.
- Não, disse com simpatia. Moro no Leblon.
- Ah, pensei
De propósito, mantive a frase inacabada e ela caiu no laço.
- Eu o alugo para uma moça e sua filha.
E com íntima maledicência, completou:
- Mãe solteira, o senhor sabe.
Balancei a cabeça fazendo-me de entendido e lancei o dardo que me envenenava a mente:
- Por acaso ela tem algum amigo a ajudá-la?
A velha se acercou, louca por uma fofoca:
- Ah, isso não sei. Está sempre com a garota a tiracolo.
Fez uma pausa teatral e a acompanhei, suspenso à suas palavras.
- Ninguém sabe em que trabalha. Às vezes, sobem umas pessoas.
E após outra pausa, mais longa:
- Homens, mulheres, juntos ou separados. Sei lá, um mistério.
- E ela não comenta nada?
- Nadinha, concluiu com um muxoxo.
O assunto morreu; para agradar à senhoria fiz outra compra.

Cheguei em casa, no Leme, preso à lembrança das duas. Normalmente faço um lanche, assisto os noticiários da televisão (todos) e adormeço de madrugada. Durmo pouco, no máximo quatro horas e está bom. Nesta noite fugi à rotina. Deixei-me ficar no leito, embriagado em divagações. Como se sustentariam elas? Esses visitantes, quem seriam? Acabei adormecendo fustigado por sonho tenebroso. Reconheci, em primeiro plano, o rosto moreno da mãe, em prantos. A filha, um pouco afastada, vestida de bailarina, toda cor-de-rosa, dançava sobre o assoalho esburacado. Quis adverti-la do perigo quando força sobre-humana me atingiu. Era a mãe, agora uma leoa em fúria. Enquanto lutávamos, um berro estridente atravessou o espaço. A criança caíra num alçapão e jazia inerte, talvez morta. Acordei trêmulo, o pijama ensopado e a cabeça latejando, como se uma artéria estivesse na iminência de romper.


Hoje é domingo, o dia que escolhi para visitá-las. Sim, porque só faço pensar nessas criaturas. Gasto o dia inteiro planejando um modo de me acercar sem ofendê-las, impulso obsessivo, reconheço, que me empurra à insanidade.
Nem tenho coragem de ir ao trabalho (o que não é problema), meu mano é o dono da firma e acha mais vantajoso manter-me em casa.
Tenho boa aparência e mal atingi os trinta anos; não fosse este ar grave e austero a me obscurecer o rosto por certo teria tantas namoradas quanto meu irmão.

Antes de me acercar do sobradinho sondei a rua, quase vazia de pedestres, passagem obrigatória de ônibus e automóveis. Após certo tempo acionei o interfone:
- Boa tarde. Meu nome é Reinaldo Fonseca e sou engenheiro responsável pelo gás. A Companhia está trabalhando em regime de urgência para prevenir vazamentos, daí ser importantíssimo inspecionar o aquecedor da casa.
- Logo hoje, domingo?, questionou uma voz feminina. Não temos aquecedor, moço. Usamos chuveiro elétrico.
- E seu fogão, madame? Não é a gás?
- Ah, isso é, ponderou ela, com voz pausada.
- Madame, meu intento é evitar acidentes.
Do outro lado, um silêncio meditativo.
- Então? A senhora permite a vistoria? É coisa rápida, insisti, o tom de voz conciliador incapaz de trair a emoção que me assaltava.
- Tá bem, concordou acionando o mecanismo eletrônico para abrir a porta.
As duas aguardavam-me no alto da escada. A mulher usava minivestido de malha, verde claro, e sandálias de dedo; a menina, uma veste branca curtinha. Descalça, agarrava-se à coxa da mãe. Após tê-las cumprimentado com cerimônia, elogiei a pequena:
- Mas que belezinha você é.
Ela me encarou desconfiada, puxando a saia da mãe.
- Que é isso, Loise? O moço tá falando com você.
- Ah, ela se chama Loise? Beleza de nome.
- É francês, explicou com orgulho a garotinha, perdendo o medo.
- Eu sei, minha fofura. Quantos aninhos você tem? Diz pro titio.
- Cinco.
Ela não abriu a mão esticando os dedinhos conforme fazem as crianças. Apenas me contemplou com suas pedras preciosas azuis. Será que tinha idéia da beleza dos seus olhos?
A dona da casa conduziu-me à cozinha do pequeno apartamento. Examinei superficialmente o fogão, fingindo buscar algo irregular, mais interessado nos detalhes do parco mobiliário. Azulejos brancos cobriam metade da parede, pintada em azul claro, onde se fixavam pequenos armários de fórmica branca. A geladeira, da mesma cor, modelo antigo, tinha como adorno uma peça de cambraia bordada, sobre a qual descansava a cestinha de pão. Tudo muito simples e asseado. Área de serviço modesta desprovida de janela, com pequeno tanque e secadora móvel.
Sorri ao ver, com o rabo de olho, Loise junto a mim. Aproveitei para interrogá-la sobre o pai e ela, singela em sua pureza, revelou só ter mãe.
- Ele foi pro céu, foi?
- Num sei, confessou candidamente.
Nessa altura já estava conquistado e, do fundo do coração, almejava ser pai daquela formosura. Surpreendi-me com a súbita chegada da mulher. Gentil, ofereceu-me suco de abacaxi, feito há pouco. Fui pego desprevenido pelos seios portentosos, mal escondidos pelo decote, as coxas bronzeadas e o cabelão ondulado ultrapassando o meio das costas. Parecia uma cigana. Não sei se ela percebeu o efeito da sua presença sobre mim. Seus olhos pousaram de leve na filha que, à semelhança de um animalzinho adestrado, correu a abraçar suas pernas. Fez um gesto delicado com as mãos convidando-me para segui-las à sala de jantar. Na mesa posta com toalha branca, bordada em alto relevo, repousava uma jarra de cristal contendo líquido amarelo claro. As taças completavam o conjunto; dava para notar que eram usadas apenas para visitas ou ocasiões especiais. Sentei no lugar por ela indicado e, quase sem sentir, bebi o suco de um só gole tal minha ardência. Serviu-me outra taça, fingindo ignorar meu desconforto.
- Tem feito um calor insuportável.
- Verdade, murmurei envergonhado, bebericando o suco, enquanto tomava coragem para lhe indagar o nome.
- Eula, respondeu.
- Diferente. Tem algum significado especial?
- Que eu saiba não. Sorriu-me.
Loise, o tempo todo sentada numa cadeira, levantou-se querendo colo. Eula a colocou sobre os joelhos e a criança fez uma carinha de quem ia cochilar.
- Alguém aí tá com sono, sinalizei para a mãe.
Ela sorriu, insondável. Tentando disfarçar minha agitação, citei um artigo meio besta sobre o sono (nem lembro mais). Eula mostrou um interesse educado, ainda que seus olhos, por segundos, emitissem um desconcertante esplendor. Tive a impressão de ouvi-la cantar baixinho para a garota adormecida, apesar de seus lábios estáticos.
Até hoje não sei ao certo o que aconteceu. A menina, belíssima, semicerrando as pálpebras, uma réstia de azul reluzindo entre os cílios negros. A mulher sensual cativando-me com seu jeito melancólico e misterioso. Um simulacro de cântico entoado por Eula, ou seria Loise? Poderia jurar que as duas tentavam me seduzir.
- Quer que eu leia sua mão?, perguntou-me Eula, sem mover os lábios.
Nesse momento Loise espreguiçou-se esticando as mãozinhas rosadas e, independente da minha vontade, inclinei-me para tocá-las. Tive-as entre as minhas, tão macias e pequenas. Ágeis, retraíram-se como pássaros a evitar uma armadilha. Quis desculpar-me, mas perdi as forças arrastado pela vertigem. Mal conseguia suportar-lhes o olhar. Havia aquele cântico. Seriam elas feiticeiras a me lançarem algum sortilégio? Pensei em fugir. Não consegui escapar daqueles olhos mágicos, ora azuis, ora castanhos, a me acariciarem, puxarem, enredando-me numa teia impenetrável de doçura e volúpia. A tontura crescente fez-me cair aos pés da cigana, que se ergueu segurando a filhinha pelas mãos. Em sonho me vi rolando, no assoalho de linóleo, abraçado aos corpos macios daquelas adoráveis mulheres.

Impressionante como um indivíduo sensível pode ser impelido a condutas anormais.
Acordei no dia seguinte no único quarto do pequeno sobrado. Nu. Minhas roupas jogadas a um canto, amarfanhadas. Horrorizado, vesti-me e, rápido, corri para a sala. A mesa intacta: somente uma taça usada contendo restos de suco, a jarra pela metade. E elas? Procurei-as no minúsculo banheiro. Retornei ao quarto. Gastei certo tempo para me aperceber que estava isolado da cozinha, a porta de comunicação trancada por dentro. Só o desespero pode explicar de onde tirei forças para demoli-la. O cheiro de gás, fortíssimo, invadiu meu organismo revolvendo-me as entranhas, logo eu que odeio vomitar. Recuei sujando a casa toda (como se isso fosse importante), à procura de abrigo. Mais tarde, protegendo as narinas com toalhas umedecidas, encontrei-as na área de serviço. Mãe e filha. Abraçadas. Mortas.
- Deus meu! Não é que havia mesmo um vazamento?
Esgueirei-me do sobradinho, como vil animal, rezando para não ser descoberto. Meu Rolex marcava cinco horas. O dia abria os olhos.


Encerrei-me em casa; sorte haver na despensa uma variedade de alimentos. O jornal que recebo, pontualmente, de manhã, nada comentou sobre o ocorrido. Passaram-se os dias. Nenhuma notícia. E eu, temendo dormir, receoso de seus fantasmas. Jamais pretendi fazer-lhes mal. Fascinação. Sim, este era o sentimento que nutria por ambas, em especial pela criança. O quê, de fato, sucedera? Teria as atacado movido por um acesso de loucura?
Hoje faz seis meses que as deixei, ou melhor, que elas me deixaram. Não resisto. Preciso retornar ao sobradinho. Por mais arriscado seja, é preferível ser preso a sobreviver com esta dúvida atroz.

As janelas fechadas, parecia inabitado. Deliberadamente me encaminhei à loja de quinquilharias.
- O senhor por aqui?, reconheceu-me, sorrindo, a proprietária.
- Tava passando, justifiquei, experimentando tomar pé da situação. Se a velha me sorria, as coisas estavam a meu favor. Remexi em algumas miudezas e ela, prestimosa, se aproximou:
- Sabe aquela minha inquilina com uma filhinha?
- Ham ham, grunhi, fingindo desinteresse.
- Sumiram.
- O quê?
- De um dia pro outro. Sorte já terem acertado o mês.
Fitei-a pasmado.
- O senhor tá surpreso? Prepare-se para o pior.
Incapaz de pronunciar palavra, amparei-me no balcão a fim de esconder meu tremor (o que esta megera tá esperando pra desembuchar?)
- Conversei com uma senhora, antiga cliente delas. Pelo que entendi a moça dizia-se astróloga, embora trabalhasse com magia negra e encantamentos. Bruxaria.


As duas apossaram-se da minha alma, possuíram-me. Não mais admito viver na sua ausência. Há dois anos, viro e reviro a cidade procurando-as em “shoppings”, parques, cinemas, enfim, em todos locais possíveis. Consultei uma variedade de astrólogos; pesquisei entre praticantes de magia negra. Ninguém as conhece.
Ontem, meu irmão, por falta de melhor escolha, pediu-me que viajasse a São Paulo capital para resolver problemas da firma. Hoje, quando aguardava a chamada para o vôo de volta ao Rio, quem vejo? A mulher morena de mãos dadas com a menina loura, felizes e sorridentes. Chamei-as pelo nome. Gritei. Disparei em seu encalço, tinha tanto a lhes pedir. Que me tomassem como escravo, me submetessem aos piores castigos e humilhações, mas não me abandonassem. Sei que me escutaram, do contrário não teriam acelerado o passo. Quase as alcancei. Pressentindo-me, a mãe volveu a cabeça e seu olhar tristonho pairou sobre mim. Um lampejo ameaçador brilhou no fundo de suas escuras pupilas recordando-me a fera raivosa do pesadelo. A formosa Loise sequer se voltou. Apenas riu escarnecendo da minha agonia. Uma risada madura, cruel e ardilosa.
- Meu Deus, como não decifrei o abominável engodo camuflado em sua figura infantil?

A visão derradeira, preservada até hoje, é sua imagem de princesinha dos contos de fadas, eternamente protegida pela guardiã: a cigana dos olhos tristes.

26/09/03
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