- Você não reparou?
- Reparar em quê, senhor? O troco não está correto?
- Não estou falando de dinheiro. Estou perguntando se você não reparou na minha mão.
- Na sua mão?
- É, olhe bem. Você não está vendo algo diferente?
- Diferente como?
- Olhe meus dedos.
- Qual é o problema?
- Você não percebeu? Eles estão tortos! Veja a diferença para os dedos da outra mão.
- Senhor, eu não vi diferença nenhuma Por favor, preciso atender aos outros clientes...
- Até semana passada eles estavam normais, como os seus.
- Ei, larga a minha mão!
- Desculpe, é que estou muito preocupado, nem consigo dormir direito. Fico o dia todo tentando desentortar os dedos. Eles estão ficando cada dia mais retorcidos, feito galhos. Se eles continuarem a entortar desse jeito vou ficar com a mão toda deformada. E se a mão esquerda começar a entortar também?
- Por que o senhor não procura um médico? Isto aqui é uma padaria.
- Olha a fila!
- Deixa de conversa fiada, vovô.
- Esse velho tá com o miolo mole.
- Queria ver se fosse com vocês. É com estas mãos que eu ganho a vida. Como vou poder consertar sapatos se meus dedos não têm conserto?
- Por que o senhor não vai ao hospital?
- Como é, esta fila anda ou não anda?
- O médico disse que é problema da minha cabeça. Ora, vejam só, problema da minha cabeça! Ele é que tem a cabeça torta pra não enxergar essa tortidão aqui. Mal olhou pra minha mão e foi logo passando um remédio, com aquelas letras tortas, mais tortas que os meus dedos.
- Desculpe, mas se o senhor não sair agora vou ter que chamar a polícia.
- Chamar a polícia? Mas o que eu fiz de errado? Só estou mostrando meus dedos... com todo o respeito! Será que ninguém se importa mais com os outros que não possa ouvir, por alguns minutos, o sofrimento alheio? Já vou me embora, não sou marginal pra você chamar a polícia. Pode ficar com o torto, quero dizer, com o troco.
- Cada maluco que aparece!
Senta-se no banco da praça e acende um cigarro. Observa os dedos enrugados e tortos, dedos que já foram ágeis e firmes, mas que agora mal seguram o cigarro. A fumaça que encobre seu rosto dá um aspecto irreal à praça e por um momento tudo fica turvado: casas, pessoas, cachorros, árvores, placas. Esfrega os olhos rapidamente e então percebe que não passou de ilusão de ótica. Olha atentamente os dedos e reconhece que estão apenas levemente tortos, talvez resultado de vários anos de trabalho duro. Mas algo ainda permanece torto: o olhar das pessoas que passam por ele, provavelmente tomando-o por mendigo ou assaltante. Volta para casa com uma certeza: "o mundo ficou torto".