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cronicas-->Minhas Duas Idades -- 24/06/2003 - 23:08 (Nereida) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Este aí é o quinto ou sexto título que estou tentando dar a esta crónica. Comecei com "Tiras de pensamentos", fui para "Crónica de um tempo repentino", passei por "Esperas e visitas", e demorei um pouco mais em "Minhas duas idades". O título que foi selecionado aí em cima tem tanto valor quanto quaisquer outros dos enlistados.

Porque estou agora morando numa cidade vazia. É uma cidade pequena, que vive dos escolares que a frequentam. Como é tempo de férias, não há quase ninguém. Para onde vão as pessoas? Mistério nunca solucionado por mim. Até que um dia eu também vou partir. Deixarei minha ausência. Como a árvore que cai e ninguém vê, e todo o mundo pergunta se ela faz barulho, pergunto se, quando eu for embora, alguém vá notar. Mas como não há ninguém, então não ficarei ausente. Como a filosofia enrosca a gente...

Porque comecei a ter tiras de pensamentos. Pensei como eu era aos 15 anos. Era completamente idiota. Não conhecia o beijo masculino que não fosse do meu pai, ósculo sagrado na testa, de manhã, quando ele saía mais cedo do que nós para o trabalho. Ou no ponto do ónibus, quando saíamos juntos e o meu ónibus chegada antes que o dele. Mas beijo de homem apaixonado por mim, por mim como mulher em brotação, ainda não conhecia. Portanto, em comparação com as garotas da minha idade, eu era uma idiota. Uma babaca, na língua atual.

E fui assim, até que, como eu diria na "Crónica de um tempo repentino", um homem me beijou. Foi de repente. Ele estava trabalhando em casa, fazendo uma reforma. Era um pedreiro espanhol. Homem jovem, mas para os meus 16 anos me parecia muito velho. Deveria ter uns 25 anos. Quando falava da Espanha, chorava. Ele batia pedras nas mãos, estava fazendo um muro de pedras entre nossa casa e a calçada. Pedras trabalhadas uma a uma. Trabalho insano. Um dia cheguei da escola, e fiquei ali parada, vendo ele bater pedra na mão com um martelinho que ele levava no bolso pra casa e trazia de manhã, para o trabalho. Me viu chegando e foi perguntando, "Aprendeu muito na escola hoje?" Não me lembro o que respondi, e ele continuou: "Meu pai me pós na escola e eu fugi. Só aprendi que Barcelona não era a capital da Espanha. E eu pensava que era. Mas Barcelona é tão bonita que poderia ser a capital. Olha, um dia você vai a Barcelona, sente-se nos bancos ondulados e lembre-se de mim. Porque eu não sou um pedreiro. Eu sou amante de cada uma das pedrinhas daqueles bancos. Meu avó trabalhou naqueles bancos de pedra de Barcelona." Aí ele começou a chorar, um choro silencioso. As lágrimas começaram a cair sobre as mãos dele, e ao trazê-las para o rosto, para secar suas lágrimas, elas caíram diretamente sobre as pedras. Aí eu comecei a chorar também. Que quadro! Eu ali de pé, ele sentado aos meus pés, eu carregada de livros e também com uma flor roubada, meio murcha, mas ainda bonita na minha mão suada, o pedreiro ali, chorando de saudade da sua Barcelona. De repente ele se levantou, não fiz nenhum gesto. Ele me segurou pelo pulso e me beijou. Beijo no rosto, pertinho da boca, e o mundo se abriu para mim. Que mundo? O mundo das sensações físicas. Um raio entrou por minha boca e foi se arrebentar nos meus genitais. Eu não entendi como uma coisa levava à outra, mas aconteceu. Devo ter ficado transtornada, vermelha, que sei eu. Ele me olhou completamente alucinado e não me lembro quem saiu correndo antes, ele ou eu. Mas ninguém ficou ali naquele lugar parado. E ainda hoje, quando passo por aquela casa que já não é mais nossa, como gostaria de saber qual entre as trezentas e tantas pedras, foi molhada pelas lágrimas do espanhol.

"Esperas e visitas", um outro título para esta crónica, encabeçaria um relato bobinho. Seria sobre o tempo em que eu esperava as visitas da minha mãe, senhoras que vinham trocar receitas, bordar não sei o quê para alguma organização religiosa, conversar sobre o romance me folhetim da revista O Cruzeiro, coisas assim. Eu achava tudo aquilo um desperdício do meu tempo. POrque eu tinha de ficar ali, participando. Era a maneira de minha mãe começar a me ensinar maneiras sociais, ou coisa assim. Cumprimentar as visitas. Encaminhá-las para onde estavam as outras que já tinham chegado. Ficar um pouquinho na sala. Ajudar a Maria com os copos de suco de uva se fosse verão, café se fosse inverno. E estar sempre alerta se a campainha tocasse para ir abrir a porta. E não deixar a cachorrinha assustar as senhoras. Ah como eu detestava esse dia! Era apenas uma vez ao mês, mas eu detestava. Até que um dia, uma das mulheres me perguntou, de sopetão, o que eu estava lendo. Eu disse --- era um livro que falava de Josefina, mulher do Napoleão. E até hoje não esqueci a descrição do manto que ela tinha, era de veludo com abelhas de ouro aplicadas por todo ele. Alguém que estiver me lendo poderá se lembrar desse livro? Acho que estava em algum Clube do Livro, mas não me lembro bem. Ou o retirei da Biblioteca Municipal, uma das melhores coisas que os nossos políticos paulistas fizeram pela juventude, espalhando bibliotecas pelos bairros da cidade de Sao Paulo.
Quando aquela senhora me perguntou sobre minhas leituras, aí tudo mudou. Passei a esperar o dia das visitas com muita sofreguidão, porque queria conversar sobre minhas leituras. Alguém chegoua ler "Siá Menina", que aparecia em capítulos, na revista O Cruzeiro? Pois aquela senhora e eu líamos cada episódio e ficávamos a conversar sobre o que achávamos das coisas. Desde então, não precisei mais ajudar Maria, nem me foi forçada a posição de solícita porteira. Ganhei status de intelectual.

O outro título, se você chegou até aqui, é o último. "Minhas Duas Idades" refere-se a minhas duas idades, como o nome indica. Uma, é minha idade cronológica. Outra, minha idade emocional. A cronológica, todo o mundo sabe, é a que poucas pessoas contam para as demais. Mas, tendo de mostrar seus papéis, sua carta de motorista, ou o seu passaporte, não há como esconder. Nem eu tenho intenção, embora não me paguem para dizer minha idade certa. Está na cara. Não pareço nem um dia mais velha, nem mais nova. Dentro de mim, parece que nasci outro dia mesmo. Não me lembro do tempo passando. Mas... minha idade emocional é outro papo. Esta, sim, cronometro, meço, peso e comparo. Às vezes ela se estica, às vezes ela diminui. Isto quer dizer que às vezes vou pra trás, outras vezes, vou pra frente (esta ocasião é bem mais rara). Agora, neste momento, "minhas duas idades" é o resumo de tudo isto que escrevi aí acima. Tenho idade bastante para lembrar dos folhetins de uma revista que (acho) nem existe mais. E tenho a pouca idade, a tenra, a nova idade de sempre me emocionar quando vejo um pedreiro carregando pedras. Ele também terá perdido a oportunidade de ficar na escola? Ele se lembrará de beijar uma adolescente que nunca tinha sido beijada antes? Será que ele sabe que ele poderia ficar embalsamado na memória de uma garota? E a senhora que lia com a menina... e vinha ouvi-la, paciente e sorridente, fazendo-a ser perdodada pela mãe tão sociável... Minhas duas idades estão me atrapalhando e perturbando minha narrativa. Porque eu quero dizer que tenho idade cronológica, mas ela não bate com minha idade emocional. Porque não fiz muitas das coisas que dão forma madura a uma mulher. Não me deixei beijar por muitos homens... e vivia protelando os macunaímas da vida, perdendo assim, as oportunidades de fazer as etapas emocionais seguirem mais ou menos pari passu, as etapas, digamos, intelectuais. Ou pelo menos, as demais.

Agora, minha gente, apareceu um macunaíma na minha vida. De repente, não mais que de repente. Fomos para o matinho brincar. Nunca nos vimos. Só pelo espaço cibernético. Vivemos ambos na antípodas da Terra, assim é que contamos com nossos computadores para nos embalar nas nossas redes siderais. Meu macunaíma não tem pejos e com pouco esforço, soprou pra longe todas as teias de aranha que me isolavam do mundo erótico. Este meu macunaíma, malandrinho como ele só, sabe fazer coisas do arco da velha. Nele eu vejo, sinto e revivo o beijo do espanhol que me arrebentou até as raízes mais recónditas; revejo as conversas das leituras que tinha com aquela mulher das visitas, e repenso minhas duas idades.

Meu macunaíma é mais importante para mim do que ele sabe que é. Nem eu sei o quanto. Mas nesta mistura de cidade vazia, lembranças de um beijo roubado, diálogos mentais e coisas tais, resulta este homem novo na minha vida, que não conheço e talvez nunca chegue a ver um dia, com quem estou convivendo uma aventura erótica. Se ele me estiver lendo, saberá de quem estou falando.

Minhas idades emocional-erótica e a cronológica, será que algum dia vão se encontrar? Para quê, perguntarão os distintos leitores... para poder acompanhar o macunaíma sem pejo, nem medo, sem culpa, nem nada.

Eu avisei: "minhas duas idades" é o título. Por alguma razão, ainda incógnita, prevaleceram como título. Uma longa crónica. Que rima com "mónica". Vejam o que o macunaíma está fazendo comigo. Derrubou um muro de pedra. Adeus, espanhol.
Viva o modernismo.Que trouxe o macunaíma.
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