Usina de Letras
Usina de Letras
147 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62177 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22532)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50582)

Humor (20028)

Infantil (5424)

Infanto Juvenil (4757)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140791)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6183)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->RANGEL DE TAL -- 15/02/2000 - 10:21 (Jefferson Carvalho) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
As visitas de Rangel àquela bonita casa assobradada na rua Assunção, em Botafogo, tornaram-se menos freqüentes e, por fim, cessaram completamente. A casa, uma herança deixada pelo pai, pertencia aos irmãos Laura, a mais velha, Carmina, mais nova e um terceiro irmão caçula.
- Onde andará Rangel, Carmina? Perguntou Laura pensativamente, enquanto tomava chá, em um final de tarde de novembro de 1885.
- Se tu não tens notícias de teu pretendente como saberei eu? Respondeu Carmina, ironicamente.
- O que terá acontecido ao homem? Ele parecia tão interessado em mim, disse Laura.
- Deve ser os negócios. Afinal, negociante tem que viajar muito, respondeu a outra.

Laura conhecera Rangel durante a encenação de uma peça no Teatro D. Pedro, quando este sentara na cadeira ao lado da sua. Antes do início da peça, Rangel entabulou conversação com Laura, tecendo comentários a respeito da peça e seu atores que impressionaram a moça. Educado, desinibido e bem-falante, notadamente, ele manifestava conhecer bem as artes, pelo menos no que dizia respeito às peças teatrais.

Ao término, Rangel pediu permissão para acompanhá-la até sua casa. Embora já estivesse acompanhada do primo André, um rapaz de seus vinte e três anos, Laura, pelo prazer que a conversa de Rangel lhe proporcionara, assentiu.

Durante o trajeto do teatro até à casa de Laura, a conversa no coche entre os três foi animada, com Rangel narrando os fatos da cidade, sobretudo, os acontecimentos teatrais e musicais. De vez em quando, o som dos trotes dos cavalos era abafado pelas gargalhadas dos três, quando Rangel dizia um chiste ou narrava algum fato hilário sobre cidadãos da cidade ou sobre membros da Corte.
Ao chegar no portão da casa, Rangel, polidamente, desceu primeiro e, pegando Laura pela mão, ajudou-a a descer e, despedindo-se dos dois, disse-lhes:
- Foi um prazer conhecê-la, senhorita...
- Laura
- Foi um prazer conhecê-la senhorita Laura.
- Como é mesmo seu nome? Perguntou Laura.
- Rangel.
- Pois, Sr. Rangel o prazer foi meu também. Apareça quando quiser.
- Certamente que apareço, senhorita. Até logo. E, dirigindo-se ao primo de Laura, disse-lhe:
- Foi um prazer conhecê-lo, rapaz.
- O prazer foi todo meu Sr. Rangel.

O olhar de Laura seguiu o vulto de Rangel enquanto este descia a rua, assobiando a música da peça que tinham visto, até que sumiu na escuridão da noite.
Quatro dias se passaram daquele encontro. Então, numa tarde, Rangel aparece na casa de Laura. Esta o recebe com um sorriso.
- Olá, Sr. Rangel
- Olá, senhorita Laura. Como vai? Eu estava de caminho por estes lados e resolvi fazer-lhe uma visita, se não incomodo.
- Claro que não incomoda. Vamos entrar.

Laura, então, fez entrar Rangel e, em seguida, apresentou-o à Carmina. Sentaram os três na sala, enquanto era servido um chá.
- O que o senhor faz, Sr. Rangel? Perguntou Carmina, olhando-o de alto a baixo.
- Eu estou no ramo de venda, senhorita Carmina. Vendo café.
- Bom negócio? Perguntou Laura.
- Não tenho do que me queixar.
- E sua família...
- Já ouviu contar o fato picaresco a que deu causa o nosso Imperador, senhorita Laura? Perguntou Rangel, interrompendo Carmina.
- Não, nunca. Respondeu Laura
- Pois, vou lhe contar o fato hilariante. Nosso Imperador e sua comitiva, quando foi aos festejos da independência da América, encontrou-se com o inventor Graham Bell. Este convidou nosso Imperador a examinar uma máquina de sua invenção. Chegaram-se todos junto ao aparelho telefônico. Graham Bell entrega-lhe um transmissor, enquanto vai a uma boa distância a outro transmissor ligado pelo fio. Com o telefone no ouvido, o Imperador ouve a voz do inventor e, espantado com aquilo, grita: Meu Deus! Isto fala!.

Laura e Carmina explodiram em gargalhadas com a anedota que até duas mucamas da casa riam sem parar no corredor que dava para a cozinha. Davam grandes risadas com a história do Imperador e outras que se seguiram, todas contadas com maestria por Rangel.
E a história do major alemão Ewald, conhece senhorita Carmina?
- Conte-nos, Sr. Rangel.
- Esta história já tem muitos anos. O Major Von Ewald, quando da contratação de mercenários na Europa por D. Pedro, não o nosso, o pai, era o comandante da tropa alemã. Pois, o Major tomou-se de amores por uma rameira lá das bandas da Praia de Botafogo. No dia da independência, quando a tropa dos alemães, usando seu melhor uniforme, põe-se no desfile, o povo ficou pasmo quando viu que, na Bandeira do Brasil, levada pelo batalhão, estavam presas as ligas de D. Gertrudes, ali colocadas pelo Major como prova de seu amor. Quando D. Pedro soube do fato mandou prender o Major, rebaixou-o de posto e, ainda, mandou dar-lhe uma surra de varas.
- E como foi o fim do tal Major? Perguntou Laura.
- Bem, não se sabe ao certo. Sabe-se que ele fugiu. No entanto, depois foi preso de novo e, por fim, o Imperador o perdoou.

A conversa foi animada durante a visita de Rangel à casa de Laura, que nem notaram o passar das horas. Já era noite quando Rangel, tirando do bolso do colete um relógio preso por um gôndola, disse:
- Meu Deus! Nem notei o avançado das horas. Preciso ir embora.
- Já vai mesmo? Perguntou Laura.
- Sim, preciso ir. Foi um prazer conhecê-la, senhorita Carmina.
- O prazer foi todo meu Sr. Rangel. Apareça quando quiser.
- Certamente, senhorita.

Depois disso, as visitas de Rangel tornaram-se regulares. Duas ou três vezes por semana Rangel ia à casa de Laura trocar um dedo de prosa. E, para a moça, aqueles momentos era de descontração e prazer.

Era ele um homem alto e espadaúdo. Aparentava estar perto dos cinqüenta anos. Dele não se podia dizer que fosse bonito, porém, era simpático. Nas visitas à casa de Laura, sempre vinha trajado com cuidado: um terno bem cortado de sarja marrom com colete, chapéu e bengala. Por cima do lábio superior, um bigode grosso era mantido sempre bem aparado. Sua fala era alta e suas risadas, escrachadas, mas a sua conversa burlesca prendia a atenção, e essa era sua característica mais evidente. De traços rudes, ele trazia na face uma expressão de uma vida dura, cujo sofrimento lhe proporcionara alguns sulcos fundos no rosto, sofrimento este que ele disfarçava com um maneirismo folgaz, sempre contando anedotas e chistes.

Laura simpatizava-se com Rangel. Embora, tanto ela quanto sua irmã achassem-no um tanto estranho. Rangel, sempre que argüido a falar sobre si mesmo, seu trabalho, sua vida ou sua família, desconversava e mudava de assunto. Carmina notara esta atitude de Rangel e comentou isso com Laura.

No entanto, esse mistério que envolvia a vida de Rangel, em vez de afastar Laura, pelo contrário, fazia com que ela gostasse mais de suas visitas à casa. Os momentos que passava ouvindo suas histórias eram de muito prazer para ela. Ela sentia-se cada vez mais atraída por ele, apesar de, até aquele momento, não saber nada a respeito dele. Nem mesmo do seu sobrenome ela tinha conhecimento. Numa certa ocasião, ela até lhe perguntou qual o sobrenome de sua família, porém, Rangel, habilmente, lhe ocultou.

Com o passar dos dias, um certo sentimento por Rangel foi tomando espaço no coração de Laura. Não era nenhum sentimento arrebatador ou um amor Shakespeariano, que, no fim, o destino selaria com alguma tragédia. Laura deu-se conta de que um sentimento de admiração, carinho e respeito era o que sentia por Rangel; e a possibilidade de que eles estabelecessem um relacionamento que ultrapassasse a amizade já acudia-lhe à mente.

Na verdade, o sentimento que Laura tinha por Rangel era parecido com o sentimento paterno. Sendo ainda muito moça, Laura perdera o pai, um próspero comerciante, vitimado que fora por uma Tísica Galopante. E agora, inconscientemente, ela via em Rangel a figura do pai, que, tão prematuramente, desaparecera.

Laura era uma mulher entrando nos trinta anos, e, depois da morte do pai, um tio assumiu os negócios da família, ficando para ela a responsabilidade de cuidar dos irmãos, já que a mãe era uma mulher de saúde debilitada já de longos anos. Com tal responsabilidade, pouca condição teve ela de entabular relacionamentos com os homens e, agora, ela via em Rangel a possibilidade de contrair matrimônio, que, para ela, já era assunto preocupante, dado que achava estar ficando velha demais para isso.

Por outro lado, Rangel demonstrava um interesse por Laura, um tanto quanto velado, mas a moça o percebia. Não que ele lhe dissesse galanteios, para isso ele não tinha jeito. O que evidenciava em Rangel era o prazer de conversar com Laura e de estar na sua companhia.

Foi nessa condição que, sem nem uma explicação coerente que acudisse à mente de Laura, cessaram as visitas de Rangel à sua casa.

Naquela tarde de novembro, vemos Laura indagando de Carmina o motivo plausível de Rangel ter desaparecido.
- Faz dois meses que ele não aparece. Pode ter sido mesmo algum negócio inesperado que obrigou o Sr. Rangel a uma viagem, conjeturou Laura.

Dali a três dias, Laura vai ao Largo do Rosário a ver algumas coisas na quitanda do Sr. Soares. Ao adentrar no largo, deparou com um tumulto de gente concentrada na calçada de um dos lados da rua. Aproximou-se da multidão e viu quando dois soldados, às pressas, colocavam um homem desacordado em cima de uma carroça. Era um homem de aspecto andrajoso e sujo. Laura percebeu quando, junto ao homem desmaiado, colocaram na carroça uma bengala. Ela, então, num sobressalto, aproximou-se da carroça e olhou de perto para aquele homem ali estirado. A face de Laura descorou ao notar que aquele homem era o Sr. Rangel. Rapidamente, a carroça arranca à frente, enquanto a multidão se espalha dando passagem ao cocheiro.
- Pobre Rangel! Escuta Laura, ainda, tentando concatenar as idéias a respeito do ocorrido. Era o Sr. Soares, dono da quitanda, que, também, estava ali no meio da multidão e presenciou o acontecido.
- O que disse, Sr. Soares? o Sr. conhecia aquele homem?
- Um pouco. Ninguém conhecia bem Rangel.
- Como assim?
- É que ele era um homem misterioso e ninguém sabe, ao certo, da sua vida. Há muito tempo ele vive por aí, pelas ruas. Ninguém sabe se ele tem casa ou onde ela fica. Me disseram que parece ser numa cafua lá para as bandas do Morro da Previdência. Também, nunca se soube se tinha família. O que se sabe é que ele enlouquecera depois que flagrou a esposa, uma moça muito mais nova que ele, num ato de adultério em sua própria cama. Depois disso, a moça fugiu com o amante. Ao que se sabe, ele amava muito a moça, e, depois que a perdeu, sua vida definhou-se ao ponto de perder o emprego, a casa e, por fim, a sanidade. Ele já foi internado várias vezes em casa de tratamento mental. Há fases em que fica no seu juízo perfeito, e, quando recobra a razão, é um outro homem. Ele passou um bom tempo lúcido, mas já faz uns dois meses que não lhe é restituído o lume da razão.

Laura ficou num misto de perplexidade e comiseração, ao ouvir a narrativa do Sr. Soares. Não podia acreditar que o homem por quem nutrira certa admiração e simpatia, e em quem via a possibilidade de um relacionamento conjugal, era o mesmo protagonista da cena que acabara de presenciar, como também do relato que contava o Sr. Soares. Abalada, ela voltou para casa como se uma fenda houvesse sido aberta em seu coração.

Laura passou os próximos dias triste e sem vida. Porém, havia dentro de si uma chama de esperança, embora pequena, de que encontraria Rangel novamente; não o Rangel de cima da carroça, mas o Rangel que ela conhecera poucos meses antes.
Passados cinco dias, Laura, tomada de resolução, volta ao Largo do Rosário, indo direto à quitanda de Soares, na esperança de obter alguma notícia de melhora de Rangel .
- Como tem passado, Senhorita Laura? Perguntou Soares.
- Bem, obrigada. Tens notícia daquele senhor do acontecido de outro dia, o Sr. Rangel?
- Faleceu ontem de manhã, respondeu Soares, secamente.




Jefferson Carvalho
bsbab345@zaz.com.br

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui