Parte de mim quer ficar,
parte quer sumir
Parte deseja o mundo,
parte, a inconsciência
Parte de mim mantém-se ereta,
parte rasteja
Parte anseia pelo agora,
parte conta os dias.
Metade de mim escreve
a outra metade canta
e ambos os meios em nada coincidem
com os nove versos primeiros
Por que meu todo é absolutamente
incoerente.
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Às vezes busco o céu
longe, no brilho da estrela
mais longe ainda
onde a retina adivinha
pulsos outros
de outros sangues
ou outras faces exangues
Fixo, assim, meu olhar estrangeiro
emana ondas de frustrações coletivas
de minhas incompletas concepções.
Mas, que lixo,
ser poeira cósmica
neste infinito.
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Inês acordou certa manhã
abriu a janela
aspirou o odor fétido do mundo
ligou a tv
e absorveu o mal empacotado
foi à padaria
e o português lhe roubou no peso
beijou a filha, na volta
e desejou muito esquecer
a bagagem de manhãs iguais
– tão sordidamente iguais
pequenas e sujas –
e encontrar no olhar desbravador da filha
o meio para consertar seu próprio olhar
filtrar seu sangue
retomar a estrada que conhecia antes
e lhe parecia o único caminho...
“e foi onde mesmo que deixei de ser eu mesma?”
Mas a filha tinha pressa
e pouca paciência para as crises maternas.
Inês olhou o arsênico
branco, convidativo
a única coisa limpa e verdadeira.
Os familiares cantaram
“dust in the wind”
na missa de sétimo dia.
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Fico pensando se lá no seu novo mundo,
lá nos umbrais
na ante-sala do além
Inês terá encontrado um bom ouvinte
que se reconheceria nas histórias ouvidas
O poeta disse uma vez
que as dores de amor são iguais
por que o amor é um só.
Parafraseá-lo-ei:
as dores de tristeza são iguais
por que a solidão é uma só...
e olhe lá, neste meu mergulho
– sem snorkel, sem respirador –
assim, de chofre em minhas angústias...
agradeço a ausência de outra substância danosa
que não meu doce, antigo, fiel e amigo
companheiro cigarro.
Dirão os asseclas da tese
“mens porca in corpore sano”
que me mato aos poucos...
Tudo bem
Não tenho, ainda, a pressa da Inês.
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