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Erotico-->Segredos de Família -- 24/08/2003 - 11:22 (José Ricardo da Hora Vidal) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O apartamento ficava em um típico conjunto de classe média. Não era grande, nem pequeno – era médio, com seus três quartos e a cozinha ampliada com a demolição da dependência de empregada. Cada quarto tinha um apare-lho de televisão (mais uma na cozinha) e na sala, uma enciclopédia empilhada no chão fazia a vez de mesa para o telefone. Era um apertamento normal de uma família normal – com direito a contas a pagar e dois automóveis. Lá vivia a família Sousa. Um pai, uma mãe e um casal de filho – o varão era o mais velho e a caçula era a filha.

O filho primogênito, R…, nós o encontramos agora de frente para a ja-nela de seu quarto. A janela estava aberta, a noite é de outono e o vento cons-tante, fino e frio anunciava em assovios sua presença. R… Sousa olhou para o chão de andares abaixo e olhou para o céu de andares acima. Olhou para o in-finito horizonte de uma cidade grande horrorosa.

Seu coração estava triste, chorava sangue muito. Seus olhos estavam ba-nhados de melancolia e desengano.

Em sua escrivaninha, seus escritos careciam de arrumação, denunciando seu gosto por literatura e filosofia. Livros e manuscritos subiam em pilhas, al-ternando paráfrases de Goethe com máximas de Nietzsche. Estudos sobre Schopenhauer e Sartre com versos de Dante e Lorde Byron.

R… contemplava o infinito escuro da noite. Em que pensava ele, neste momento? O que ele pretende fazer neste instante?

R… pensava na sua família, na sua pobre e medíocre família.

Pensava em seu pai, F… contabilista aposentado. F… vivia sua vida de pacato cidadão comum, que começou a trabalhar logo que concluiu o segundo grau. Embora fosse esperto e um dos melhores alunos de sua turma, F… não fez vestibular. Tentou uns cinco concursos (para atividades das mais diferen-tes) para o serviço público mas não passou. Trabalhou em uma empresa média de serviços. Ganhava razoavelmente bem, dava até para viajar no fim do ano, mas nunca tinha dinheiro para comprar livros que não fossem precisar para es-cola. Aliás, achava um desperdício pagar RS 11,90 por volume de Homero ou Machado de Assis, se com esse dinheiro ele comprava pão para a família du-rante uma semana.

R… pensava também em sua mãe, J…, dona de casa. Sua pobre mãe, cujo único divertimento era a televisão. Não se cansou até colocar vários apa-relhos pela casa. Mesmo que os olhos estivessem presos nas tarefas domesti-cas, a TV estava ligadas, para que J… pudessem saber da última fofoca de Le-ão Lobo, dos casos de Márcia Goldsmith, das dicas de casa e cozinha de Ana Maria Braga, Claudete Troiano e Olga Bongiovani, do jornalismo sensasiona-lista de Datena e Milton Neves, dos casos de ADN de Ratinho. E ela dizia or-gulhosa que pela TV, ficava super informada do mundo. Livro ela não tinha tempo para ler…

R… pensava na sua irmã caçula, S…, que já tinha um carro e que nunca pegava em um livro. Queria porque queria entrar no curso de Enfermagem, mas não havia jeito ou maneira que a convencessem de ler algum dos clássi-cos de literatura que eram pedido no vestibular. O motivo evocado era singelo e convincente: No cursinho, ela decorava os macetes e os resumos, o que lhe dava mais tempo para se dedicar às matérias específicas. E depois, (SE) e quando passar, de que adiantará os versos e os romances de autores mortos para o exercício de sua profissão?

R… pensava na sua vida. Pensava quando criança ele foi um dos primei-ros na classe. Pensava quando era sempre chamado para fazer ajudar nas peças e nos recitais na escola. Pensava nas redações premiadas, que ornavam o giná-sio no fim do ano. Pensou nos versos que figuraram na antologia ditada pelo colégio. Pensou nas notas altas que tirou em toda sua vida escolar. Pensou no teste de aptidão que fez e lhe indicou a trilha das letras. Pensou também na tristeza da família, quando R… optou pelo curso de psicologia, em lugar de um curso mais nobre com Medicina ou Arquitetura, ou mais rentável, como Informática ou Economia. Pensou e penou estes anos em que fazia um facul-dade sem estímulo e era assediado a fazer qualquer concurso público que lhe desse qualquer salário de dez salários mínimos. Pensou nas horas em que fica-va sozinho, a noite em seu quarto, ouvindo música clássica e escrevendo seus contos queridos, seus poemas maduros e suas peças teatrais inconclusas, como único consolo para sua alma. Pensou nas brigas que teve com seu pai, quando R… trocou uma carteira de habilitação pela máquina de datilografia.

R… pensava na contradição que foi sua vida. E com o coração amargu-rado, olhou para o chão de andares abaixo e para o céu de andares acima. Olhou para o infinito horizonte escuro da cidade. Volveu o pescoço e contem-plou seu quarto, cujas quatro paredes era uma única estante repleta de livros, livros, revistas e livros. Sentiu em sua face o vento frio e constante o outono. Fechou os olhos e refletiu nos passos que iria dar naquele momento.

E com os olhos fechados, viu na miríade dos séculos as estrelas apaixo-nadas de Olavo Bilac, nas quimeras íntimas de Florbela Espanca, no barco ébrio de Arthur Rimbaud. Viu a praga que sua família era para o mercado editorial. Viu várias famílias vivendo pequenos dramas iguais ao seu – de um jovem se recusar a seguir a alienante e alienada mediocridade da vida moder-na. Viu uma legião de seres humanos vegetando na ilusão de terem nas mãos o carro do ano. Viu (com carinho e ternura) as mulheres que passaram em sua vida, que aceitavam seus poemas mas recusavam o seu coração de poeta.

E com os olhos fechados, R… subiu no parapeito da janela e colocou uma perna para fora. Seu coração batia acelerado. Sentou-se devagar. O vento zunia um réquiem amigo. Um sino funeral alhures replicava baixinho. Respi-rou fundo, colocou a outra perna para fora e…

………………………………………………………………………………

Termino aqui o um retrato de família. Sinceramente, não sei o que R… fez. Não sei se ele pulou pela janela do décimo andar ou se seu espírito voou para as estrelas na cauda de algum poema. Não me lembro de ter ouvido choro de mãe ou grito de irmã. Não se S… passou no vestibular ou se leu algum li-vro. Creio que seus pais continuam seguindo a sua vida normal: J… assistindo Ratinho e Datena e F… pagando em dias as contas da casa – mas não tenho certeza.

Em todo caso, se o leitor ou a leitora quiser rezar para que Deus ilumine a alma de R…, a ovelha negra queria ser escritor, peço que reze também para que iluminem a família Sousa também – afinal, ninguém merece uma maldi-ção dessa…
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