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Contos-->Predestinados -- 10/05/2004 - 04:40 (Barbara Amar) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Desde pequenos só tinham um ao outro. Por quatro anos brincaram sozinhos, inventaram jogos, criaram personagens, construíram um mundo à parte afastados das demais crianças. Bem gostariam de ter rompido esse isolamento juntando-se aos guris descalços e mal vestidos da vizinhança - “gentinha” - segundo D. Zulmira, mãe de nossos heróis. Como se divertia aquele pessoal empinando pipa, pulando corda e jogando bola de gude. Houve somente uma tentativa do casal de irmãos se aproximarem dos vizinhos. Atraídos pelos gritos alegres da molecada foram até eles para brincar de roda. A princípio foram aceitos, súbito um dos garotos mais velhos começou a gritar com Alexandre. Josiane jamais conseguira entender o ocorrido. Lembrava-se apenas da expressão de Luigi, irritada e ameaçadora. O que seu irmãozinho fizera de errado? Também não sabia como chegaram em casa, poucos metros distante. Talvez sua mãe, sempre atenta, os tivesse retirado em meio ao tumulto.
- Daqui pra frente vocês não olham pra esses italianos!

Josiane, um ano mais velha, desde cedo revelou-se apegada ao caçula. Influenciada pela mãe, passou a protegê-lo exercendo de forma precoce o papel maternal. Um acidente sofrido pelo menino no seu terceiro ano de vida tatuou a memória da irmã. Sentados, lado a lado, nos degraus de mármore da varanda, assistiu o pequeno rolar inesperadamente escada abaixo. Acompanhou a correria da mãe e da tia velhinha carregando a criança nos braços e lavando-lhe a cabeça no balde. Apavorou-se com a mudança na coloração da água, de repente rubra; só depois veio a saber que aquilo era sangue.

Como todos irmãos, viviam brigando mas logo voltavam às boas. Coincidência ou não, adoeciam ao mesmo tempo até quando separados. E nem eram gêmeos.
Certo dia sua mãe os avisou que iriam estudar no melhor educandário do bairro; lá poderiam conhecer novas crianças e fazer amizades, muito bom para eles sempre retraídos.
Assim, numa tarde, foram levados, um tanto receosos, ao famoso colégio situado numa alameda e dirigido por freiras. Ignoravam a rígida disciplina da escola obrigando a distinção dos alunos de acordo com o sexo. D. Zulmira, no futuro questionada a respeito juraria, também, desconhecer o fato.
Para Josiane, uma catástrofe. Abruptamente apartada do único companheiro deixou-se dominar pelo terror, pela sensação de abandono. Vendo-o caminhar entre mulheres desconhecidas que vestiam indumentária estranha, negra, recendendo a mofo, não resistiu. Fragmentou-se. Por isso chorou. Aparentando tranqüilidade, ele olhou-a apenas uma vez como em despedida e seguiu adiante.
Josiane foi conduzida, entre lágrimas, a uma sala onde já se encontravam outras meninas. Não conhecia ninguém. Aos cinco anos era a mais nova da classe. Sentaram-na ao lado de Jandira, uma garota magra de tranças louras enroladas sobre as orelhas. Logo uma freira aproximou-se e, falando um português espanholado, ordenou-lhe que pegasse o caderno de rascunho.
- O que é rascunho?
- Quando se dirigir a mim, chame-me de Madre, advertiu-a a religiosa.
As alunas cochicharam. Quando a Madre repetiu a ordem, Josiane, com voz trêmula, insistiu:
- Mas não sei o que é caderno de rascunho!
- Rascunho, rascunho, bradava a Madre, impaciente.
As coleguinhas, divertindo-se com a confusão, riam na sua cara. A criança em desespero voltou a chorar. Uma gordinha sentada à sua frente, tomada por um rasgo de bondade, explicou-lhe:
- Chora não. É o caderno pra você rabiscar, fazer desenho.
Josiane não tinha esse caderno. Restou-lhe, em falta de melhor, enxugar as lágrimas e apreciar as colegas desenhando. Cuidou em especial de se esquivar da professora pois sua veste a assustava; parecia um corvo, daqueles vistos no cinema. Infelizmente, crianças emotivas despertam intolerância e sadismo. Seu choro fácil agradou à Jandira, que resolveu atormentá-la. Soube pela própria Josiane de sua preocupação com o maninho (assim ela o chamava), percebeu-lhe a agonia e, em sua cruel cabecinha, engendrou um plano para mortificar a novata. Conseguiu convencê-la de que Alexandre teria morrido, vítima de sacrifício humano. Josiane recusou-se a acreditar, mas a megerinha soube ser convincente. E agora, a menina de cabelos curtos e franja soluçava baixinho pedindo para Papai do Céu salvar seu irmão. As outras alunas, insensíveis, brincavam entre si enquanto Jandira saboreava os efeitos de sua maldade.
Tocou a sineta anunciando o recreio e as crianças levantaram-se rápidas. Josiane as acompanhou, apreensiva; resolvera procurar o maninho independente de qualquer ameaça ou castigo. Era sua obrigação defendê-lo. Neste momento, no corredor defronte, abriu-se uma porta donde irromperam vários meninos. À frente vinha Alexandre, o menorzinho da turma, calmo como sempre e para alívio da irmã: vivo! Ela ignorou alunos e professoras, atropelando a todos, ao correr para estreitá-lo em seus braços conseguindo, por instantes, driblar a dor e a amargura e esquecer aquela tarde infernal.


Vinte anos transpostos, lá pelos idos de 1969, novamente correria para abraçá-lo na saída da faculdade. A diferença: teria em seus braços um corpo ensangüentado, inerte, vítima de bala perdida disparada por agente da repressão.
Algumas semanas depois Josiane sumiu de casa e nunca mais foi vista. Soube-se, passadas décadas, que fora admitida em um grupo de esquerda, dito subversivo, mergulhando na luta armada contra o golpe militar.
Certamente se reunira ao maninho. Era seu dever protegê-lo.

17/03/03
Reescrito em 10/04/04

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