Usina de Letras
Usina de Letras
277 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62176 )

Cartas ( 21334)

Contos (13260)

Cordel (10449)

Cronicas (22531)

Discursos (3238)

Ensaios - (10349)

Erótico (13567)

Frases (50580)

Humor (20028)

Infantil (5424)

Infanto Juvenil (4756)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140791)

Redação (3302)

Roteiro de Filme ou Novela (1062)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1959)

Textos Religiosos/Sermões (6183)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Contos-->O Vazio -- 10/05/2004 - 06:34 (Barbara Amar) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Illa pensava na forma mais adequada para se castigar. Lembrou-se do filme “A professora de piano”. Ficara muito impressionada com a cena da mulher enfiando a gilete na vagina.
- Não tenho coragem pra isso. Além do mais, creio que ela estava se masturbando ou pelo menos tendo prazer sexual; não é o meu caso. Quero me ferir de verdade, quero sofrer.
Quando jovem cortara o pescoço numa briga com o amante. Ela o pegara desprevenido e nunca se esquecera da expressão horrorizada de Sálvio; médico, ele mesmo a tratara comprimindo o ferimento. No final deitara-a nua, imóvel, e lambera vagarosamente, entre arrependido e excitado, o pequeno talo carmesim esquadrinhando os cantinhos mais sensíveis. Illa gozara com a toalha de rosto amarrada ao pescoço, o timbre do motel chancelando seu desamor pela vida. Chorara, quando tomada pelo orgasmo. Chorara, ouvindo Sálvio indagar:
- Quem é teu dono? Quem te faz gozar?
Ainda tinha a cicatriz, tênue, quase apagada pelo tempo, mesmo assim visível à jovem massagista da Clínica de Estética:
- Que marca é essa no pescoço?
E diante do olhar constrangido de Illa:
- Foi você quem fez?
- Sim, teve vontade de responder, eu mesma, mulher bomba prestes a mandar tudo pros ares.
Preferiu mentir inventando um assalto:
- Foi um garoto montado numa bicicleta quando roubou meu cordão de ouro. Ouro antigo, pesado, você sabe.

Ao se preparar para a mamografia de rotina despiu o robe branco do hospital e respirou fundo preparando-se para a dor ao ter os seios esmagados contra a chapa de aço.
- Nossa, que mamas jovens, elogiou a técnica.
Já estava acostumada, as amigas sempre perguntavam:
- Como é que pode uma mulher de 56 anos não usar sutiã?
Sabia que, às suas costas, comentavam:
- Só tem seios bonitos porque nunca amamentou.
Seu ponto fraco. Arrependia-se de ter abortado os três filhos. Em compensação mantivera os seios em forma. Sem plástica.
Ângelo, o garoto de programa bissexual, ao vê-la nua pela primeira vez, espantara-se:
- Você fez plástica nos peitos?
Ela negou mostrando-lhe a ausência de cicatrizes. Apesar disso, fitou-a incrédulo. Bicho grosso, não tinha a menor sensibilidade.
- Pra ser garoto de programa tem que ser educado, sabia?
- Porra, eu sou assim. O que você esperava?
- Então vai ser peão de obras, filho da puta.
Viviam brigando até ela entender, em definitivo, que ele só queria seu dinheiro. Tá bom, talvez gostasse um pouquinho dela, “como uma irmã”, carregando afetado no “r” com sotaque curitibano. Illa acabou dispensando-o, principalmente ao descobrir sua preferência por homens. Jonathan, o amigo dele com quem ela transava às escondidas, doce vingança, contou-lhe que Ângelo era liberal, o que no jargão dos michês significa chupar pau.

Voltara a pulsão masoquista; admirava os seios imaginando cenas horripilantes:
- Bem podia cortar os mamilos ou me lanhar toda com a faca da cozinha.
Por ordens médicas, bebia à noite um cálice de vinho tinto para reduzir o colesterol. Agora o enchia até a borda e se empanturrava de tranqüilizantes.
- Quem sabe morro dormindo?
Mantinha uma relação sadomasoquista com um homem de fala macia, elegante e atencioso. Ela gostava de apanhar, mas ele, sofisticado, preferia a humilhação aos castigos corporais. Não era adepto de violências. Mantinha-a em um estado de permanente angústia, um especialista na arte de frustrar. Bastava querer uma coisa para que o maldito fizesse o contrário; qualquer desejo era boicotado, mormente se ligado à esfera sexual. Gláucio seguia a linha Buñuel - quanto mais Illa o ansiava, maior seu afastamento. Jogo demoníaco, de levar qualquer um à loucura. Não conseguia abandoná-lo. Estava viciada nele, no sexo depravado quando a dividia com os amigos; nas palavras ciciadas enquanto a sodomizava; na língua perita em martirizá-la até que ela implorasse pelo orgasmo. Orgasmo compensador; alicerce a ampará-la naquele arremedo de vida.
Gláucio a torturava esperando uma reação. Queria que a mulher abandonasse a passividade e o machucasse também, mas Illa negava-se a entrar no jogo até que a situação se agravou a ponto dela explodir. Arrependeu-se. Após cinco anos de íntima convivência havia se rebaixado aos seus próprios olhos.
- Hoje você venceu, meu amor. Tornou-me sua igual.
Tantas humilhações toleradas, tanto deboche, tanta maldade até que, enfim, ela lhe deu o troco.
- Li seu anúncio numa revista oferecendo-se como escravo sexual. Para homens, bem entendido. Nem adianta negar, reconheci seu estilo. Gostei do detalhe da chuva de ouro (banho de urina, para os não versados no esporte).
Gláucio ouviu impassível, fumando, alternando o olhar da janela para o teto, sem dizer palavra. A mulher admitiu ter errado na dose. Sabia quanto ferira o companheiro ao lhe revelar o segredo que o rebaixava - uma figura classuda, um homem bem-educado convertido em urinol.
- É isso que dá agüentar tudo calada. Passei dos limites, logo eu que jurei não revidar, pensava, querendo voltar atrás. Esquecia o quanto havia sido empurrada à situação extrema.
Illa humilhou-se muito implorando que o amante a perdoasse, até o ameaçou com suicídio. Ele a ignorou.
- Indiferença, pensou Gláucio. A indiferença rói as entranhas daquele que ama. É um copo de ácido despejado garganta abaixo, corroendo a mucosa, destruindo e queimando. Dor sem anestésico.
Saiu sem bater a porta, nenhum olhar para trás.
Vencida, Illa contabilizava menos um ponto nesse relacionamento doído e vazio de expectativas. Imaginava-se flutuando, instável, a caminhar sobre flocos de algodão. Seu destino. Seguiria assim até onde seu corpo a levasse, até quando encontrasse uma janela aberta por onde pudesse voar.

Rio, 08/01/04

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui