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cronicas-->Paralelos -- 04/09/2000 - 11:29 (FAUTH) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ontem estava pensando. Paralelo a isso, abria a porta do automóvel para ir embora. Pensava nas coisas que eu tinha para preparar, pensava nos prazos.

Domingo foi um dia eleito em que fixei meus pensamentos. No domingo e nos afazeres para que, na segunda, tudo estivesse pronto. Tudo dentro dos limites e dos "conformes" do que deveria estar pronto na segunda. Paralelo a esses pensamentos, eu ligava o carro.

Enquanto eu lembrava da farmácia, da rua em que eu deveria entrar para conseguir a vaga mais fácil e comprar o remédio que me fora pedido mais cedo, meu pé direito afundava no acelerador, minha mão direita engatava a ré e minha cabeça movimentava-se para trás. Eu estava saindo. Literalmente.

Eu ali, parado. Pensando. E, paralelo a isso, o mundo começava a movimentar-se do lado de fora. A cada virada no volante, cada pisada no acelerador, o mundo entendia o que eu queria e ia obedecendo. Ninguém compreendeu as duas voltas que eu dei naquele balão. Ou pensaram ter entendido: "ele errou a entrada". Mal sabiam as pessoas que eu brincava de girar o planeta a meu bel prazer, com a velocidade que EU desejasse. Paralelo a isso, os prazos chamavam-me à razão. Por que motivo eu girava sem sentido, sem função, enquanto estava sendo esperado?

Esperado pela mulher que, às seis horas, estaria atenta aos barulhos da casa, dos motores que passavam na rua, ciente da minha segura chegada. Esperado pela filha que necessitava do tal remédio. Nada grave, mas o pai estaria chegando com ele. Esperado, na segunda, com aquelas atividades prontas em mãos. Um texto para fazer, uma fiação para consertar, um telefonema prometido. Tudo me esperava.

Mas eu morri. Ninguém estava comigo ou me vendo naquele instante. Poderia estar morto e ninguém saberia, pois ainda estava dentro do prazo, apesar da terceira volta na rotatória, fazendo o mundo girar. Eu parado, o mundo girando, as pessoas passando nesse carrossel e olhando para mim ali, no centro de tudo, de todos os acontecimentos e perfeitamente dentro dos limites do tempo.

Às seis horas a porta não se abriria. Às sete horas a esposa estaria com o telefone na mão. No dia seguinte, várias pessoas estariam em polvorosa a me procurar porque ultrapassara os limites que haviam me imposto. Não cumprira o tempo regulamentar, social e lógico do planeta.

Atravessando a margem do tempo e dos espaços dirijo o mundo como quero, sem precisar aonde pretendo chegar, simplesmente porque não pretendo nada além de pisar num pedaço do terreno da morte. Dou um pequeno chute na fragilidade das horas e gargalho dos círculos concêntricos que vão se formando, causados por essa pequena pedra que lanço displicentemente no silencioso lago que, faz-nada, está ali.

Paralelo a isso, chorarão os que se julgavam ligados a mim. Bem que sentiram algo estranho no ar - dirão. Mas só sentiram depois do prazo, tenho certeza. Um minuto que fosse, mas sempre depois da hora mais que prometida: comprometida. Antes não haveria como sentir. Nem eu sabia da quarta volta do balão.

Se, em vez de círculos a queimar combustível, eu estivesse a dirigir minha alma em direção aos céus ou infernos prometidos pelas vãs igrejas, ninguém estaria sabendo. Não agora, que encontro-me dentro do tempo que me foi dado e permitido e que faço dele quase tudo o que quiser.

Na quinta volta, quando faço o mundo girar mais rápido e aprofundo-me nas próprias entranhas, desperto alguém que está ali para não deixar que o mundo se desgoverne. Alguém que observa esse girar monótono e não permitirá que outro venha revolucionar o que anda "normalmente". Normais são os acidentes, normais os assassinatos, normal é a vida que levamos todos os dias, meio que dormindo no sem-querer da existência, ora porque dormir é mais fácil, ora porque não queremos ser acordados propositadamente pelo pedinte do sinal. Preto. Feio. Sujo e fedorento preto do sinal a querer empurrar-me sem-delícias balinhas. Dormir é melhor.

Como aquele pedinte, começo a acordar gente. A sétima volta está demais. Já não chegarei mesmo às seis horas em casa. Nem mesmo parei na tal farmácia.

Mundo-carrossel que fiz pra mim, mas já a mão autoritária recorta-me da minha própria vida que pensei ter em minhas mãos. Como um texto pronto, minha vida já não é minha. É dos outros. É desse mundo ridículo como aquele uniforme unicolor azul. Ridículo como tudo o que é uniforme e não varia. Ridículo como um dia após o outro em que sabemos de antemão o que vai acontecer. Um mundo onde o dejá-vu é, de certa forma, aguardado. Gostamos de repetições. Repito, portanto, aquele diálogo absurdo:

- O que o senhor está fazendo? Deve ser a décima volta que dá nesse balão. - pergunta o policial, cumprindo o seu prazo, estabelecendo e mantendo os limites do que aprendeu serem os aceitáveis.

- Estou passeando.

- Está procurando alguma entrada? Está perdido?

- Não. Estou dando umas voltas. - Disse isso sem conseguir segurar o riso que àquele homem pareceu deboche, mas eram as cócegas da semàntica que brincava em meu cérebro. O sentido daquelas voltas era diferente para cada um de nós. Para mim, ele é que girava. Para ele, eu era um louco que provocava sua ira.

- Documentos, por favor. - Pediu o guarda com gravidade.

Não sei para que servem os documentos, mas a falta deles é razão suficiente para sermos classificados como personas non gratas para a sociedade. Não podemos ser sem-registro. Os índios podem e nunca serão incomodados por isso. Vivem num mundo paralelo ao nosso, mas também têm seus tempos, seus compromissos, suas misérias. Eu não era índio e tinha documentos. E os documentos serviam para mudar o assunto. Quando a autoridade não tem motivos para interromper nosso curso natural, ela pede os documentos. Por que sou obrigado a parar? A vontade que tenho é mostrar os documentos metafóricos que levo por dentro das calças e gargalhar dos cornos previstos com que o filho de uma égua fuzilar-me-á.

Mas não. Sou educado. Ultrapassei os limites do esperável e o polícia não encontrava registro, no regulamento, capaz de impedir alguém de dar quantas voltas quisesse numa rotatória.

- Pode ir. Tudo bem. - Liberou. - Vai continuar dando voltas?

- Há alguma objeção?

- Não. Mas é muito estranho. Talvez o senhor necessite de algum tratamento.

- Pode ser. Tchau.

- Tchau.

Paralelo a isso, pessoas me esperavam. Minha vida me esperava. E eu tinha prazos a serem cumpridos. Ia pra casa normalmente, dessa vez, mas pensava na espiada que tentei dar numa dessas brechas da vida e descobri que há vigias por lá. Em cada esquina alguém olha para você à espera de uma resposta que aprove a própria existência. E esse alguém, que somos todos nós, só sabe que existe e que é normal porque é solene e educadamente ignorado nessas avenidas do cotidiano.

FAUTH
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