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Contos-->Bruna nasceu Adão... -- 22/05/2004 - 18:00 (Orlando Miranda) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Tinha em mente alcançar
tudo que era maravilhoso
Não deixava de recorrer ao Divino
Nem queria se equivocar com seu destino

Não seguia a vida tentando mudar as coisas
Para a maneira que sua compreensão
preferia entender...

Não pode mudar seu destino
Nem os gostos, nem as pessoas,
nem o dia...



Bruna Nasceu Adão...



Nunca mais a rua foi a mesma, aliás, acho que
nunca mais será a mesma depois que Bruna foi embora. Nos tempos em que ela morou aqui a rua era bem mais movimentada. Não é como hoje, vazia, deserta, parecendo não ter mais vida.
Naquele tempo as pessoas vinham de vários lugares, movidas pela curiosidade de ver Bruna de perto. Até hoje não conheci ninguém que se tornasse tão popular, em tão pouco espaço de tempo como ela.
Era celebridade no bairro. Até a rua começou a ter seu nome. Quando alguém pedia informações sobre algum endereço, localizado nas proximidades, logo quem se prontificava a dar a informação, referia que tal endereço ficava perto e citava a rua que era tida como a de Bruna sendo parte da referencia caminho.

Família vinda de Minas Gerais. A mãe, uma pessoa amável, de olhar alegre mas, por trás da alegria de seu olhar se escondiam anos a fio de alcoolismo.
A irmã, Fátima, um pouco mais nova que Bruna, era chamada pelos íntimos e também pelas pessoas que mexiam com ela na rua, de Fafá, em alusão a fartura dos seios, atributos marcantes dela, que faziam lembrar Fafá de Belém, a cantora que teve até um Fusca apelidado com seu nome.
Era dona de um rosto bonito e jovial, seus cabelos pretos longos e cacheados, deixavam a impressão de cuidados minuciosos.
Nitidamente era perceptível que gostava muito de conversar, o que é até comum ao povo mineiro, porém, procurava se reservar.
Não era muito acessível as pessoas, pois, tinha vergonha da obesidade que carregava. Mas todo mundo que conversava com ela gostava do seu jeito. Esse complexo, criado por ela, era um problema que só fazia alguma diferença para ela apenas.
As pessoas não à viam como uma gorda, simplesmente gorda. Sua beleza interior atraia proximidade... Talvez por isso, olhos mais atentos não eram capazes de enxergar os traços que, para ela, eram seus defeitos.
Não era raro vê-la chorando pelos cantos. Quando estava nessa condição, melhor nem confortá-la. Ficava, às vezes agressiva, e da mesma forma instantânea que essas tais crises surgiam, também iam embora.

Bruna era bem na dela. Via tudo acontecer ao seu redor mas, aparentemente não dava a menor importância pra nada. Era mais centrada, gastava seu tempo consigo mesmo, o que já era um enorme trabalho para sua preocupação. Não dava espaço nem gastava o tempo de sua vida, pra ficar se preocupando com as frustrações, próprias, de seus familiares. Muito menos, atenção para o pré-conceito mascarado que, supostamente, era atribuído a ela.

Bruna era alta. Seus cabelos eram longos como os de Fátima, sua irmã, só que lisos. Corpo esguio. Talvez isso colaborasse com a frustração de Fátima. Tinha um jeito de andar bem feminino, não abusava muito na maquiagem, apenas usava um pouco de rímel e baton de tom leve para realçar seus lábios, propensos a algum prazer. Pernas bem torneadas, cintura fina como pilão, braços longos, olhar penetrante.... assim era Bruna... Por conta desse olhar tão penetrante, não foi difícil fazer tantas amizades e tão rapidamente.

Casa sempre cheia e movimentada. Moleques, adolescentes e adultos, todos faziam festa e circulavam pelo pouco espaço da moradia de Bruna, durante o dia inteiro e parte da noite.
Comentários não demoraram a rolar. Com a mesma intensidade que as amizades chegaram, as inimizades declaradas e as discretas também se fizeram presentes.

Da mesma maneira que tudo acontecia rapidamente em sua vida, a regra seguiu e, não demorou muito para que todos soubessem que Bruna, a mais recente moradora do bairro, vista e desejada por todos, muitos que às vezes, só a viam de longe... Na verdade tinha nascido Adão. É isso mesmo, era um homem travestido de mulher.

De longe, sinto que a dor maior era de seu irmão, Paulo Cezar, o mais novo da família, um garoto que não tinha mais que 13 anos de idade nessa época.
Garoto irritado por completo de natureza. Falava de forma rápida, apreensiva e ansiosa, deixando a impressão de atropelar as palavras. Quem sabe, a irritação dele não fosse por um dia não ter conhecido seu pai e sentido o calor de seus braços ou de ter um irmão/irmã ou, até mesmo, os dois motivos juntos.

Paulo Roberto, às vezes, se referia a Bruna, ora como seu irmão, ora como sua irmã. Talvez, Bruna não seria a mesma, das mesmas formas, normas e atitudes, se fosse pela cabeça de Paulo Cezar.
Ele sempre deixou claro que se indignava pelo fato dela ser como era. Apesar da pouca idade e entendimento, era evidente que não apoiava as atitudes do irmão/irmã. Mas sempre à/o protegia quando alguém mais exaltado tentava agarrá-la, supostamente querendo tirar algum proveito, apesar de nesses momentos Bruna não demonstrar a mínima intenção de mudar a situação.

Nunca, alguém das redondezas, ouviu qualquer comentário relacionado ao pai, progenitor dessa família. A estória dele parecia ser algo que a família sempre desejou esquecer. Comentava-se, à bocas pequenas, que esse pai, provavelmente tivesse se distanciado por vergonha de Bruna ou do alcoolismo da mãe... Essa, quando estava um pouco alterada, se largava na mão do primeiro que aparecesse pela sua frente e, aí, tudo poderia acontecer.
A grande maioria dos freqüentadores da casa de Bruna, só apareciam lá pela conveniência de estarem em um lugar livre, no qual poderiam fazer o que bem entendessem, dentro do conceito de liberalidade e liberdade que bem aprouvesse a cada um. Uns iam só pra beber, outros pra correr a mão sobre o corpo de Bruna.
Existiam também os apaixonados por sua mãe. Alguns até muito enciumados.... Outros iam pelo coração, movidos por sentimentos, querendo apenas ajudar, pois, viam que além de ser uma família descriminada, também passavam por necessidades maiores que os aproveitadores não viam, por estarem preocupados com suas próprias intenções. Outros iam pela pura tentação do sexo com Bruna e ninguém sabe se os rumores falados por alguns chegaram a acontecer um dia.

Era evidente que Bruna sempre quis ter um namorado. Por mais que ela tentasse dar mais atenção para um ou para outro que freqüentava sua casa, na intenção de atrair o coração do suposto, não conseguia o efeito desejado. Ninguém seria capaz de dar um abraço nela num perímetro maior que as paredes de sua própria casa.
Enquanto ela não conseguia obter sucesso nesse seu intento, ia se divertindo com um e outro agarrão de seus admiradores, conseguidos em investidas escondidas, longe dos olhos de sua mãe e principalmente dos de Paulo Roberto.
Às vezes, corriam boatos entre os mais chegados que alguém menos precavido fora pego aos amassos e beijos com ela.
Mas, sexo com Bruna era uma incógnita. Existiam as desconfianças que jamais passaram disso. Talvez, se tal fato chegou a acontecer com algum conhecido, esse jamais seria capaz de declarar a veracidade do caso.
Entre os freqüentadores da casa existia um preconceito mascarado pelo motivo de, apenas, estarem num lugar onde se sentissem livres, cheios das liberdades que não encontravam ou encontrariam em outro lugar qualquer.

E a vida no bairro foi seguindo, como tudo nesse mundo segue...

As alegrias, as tristezas, acontecimentos para rechearem fofocas ou comentários casuais, tudo acontecia...
Pessoas morreram, crianças nasceram, moradores antigos se foram, outros chegaram. Meninas começavam a tomar corpo de mulher. Garotos foram engrossando a voz e criando pêlos no lugar do bigode.

Alguém casava... outros chegavam mais perto do amor de infância com sucesso e promessa de futuro juntos.

Tudo era alegria e, às vezes, tristeza... Mas, a tristeza não passava perto da casa de Bruna.

Com o tempo, as pessoas que não eram tão próximas a família, movidas por seus conceitos e pré-conceitos, foram abrindo os olhos para outras estimativas e começaram a vê-los de forma diferente.

A passagem de Bruna por esse lugar valeu, no mínimo, por ter aberto a cabeça de algumas dessas pessoas e com isso conseguir apagar alguns tabus idealísticos, como por exemplo, o fato das pessoas acharem que as coisas ruins ou que não julgam aprovável só acontecem na rua, com outras pessoas, mas, dentro da nossa casa com a nossa família, não”. É o tal negócio de enxergar sujeira na casa do vizinho, sendo que a sujeira esta em casa, mais precisamente, no vidro pelo qual se olha para a vida do mesmo.
Aquele é bandido... aquela é puta, ninguém presta, o filho do vizinho virou drogado. Mas, dentro da minha família isso não acontece.

As coisas ruins só acontecem aos outros, do lado de fora de nossas casas; esse era o pensamento. Achar que sempre vai existir um firewall que livre desses aspectos. Mero engano, existem coisas que acontecem que nem sequer podemos imaginar. Na maioria das vezes o problema esta tão perto mas, as vistas grossas não deixam enxergar.

Bruna foi compreendendo que não era mais vista com olhos e por olhos tão críticos. Já não sentia tanta vergonha de sair à rua, se arriscando a chegar em casa chateada ou triste. Começou a entender que as pessoas estavam começando a aceitá-la como ela era.

O movimento em sua casa continuava. Já estava cansada de se sentir só, das brincadeirinhas escondidas, dos agarra-agarras, longe dos olhos da vigília imponente de Paulo Cezar. Nada disso tinha mais graça. O que mais queria era um ombro amigo que também fosse dono de outras utilidades, as quais só ela imaginava.

Começou a alçar outros rumos. Sair mais, passear mais, se expor mais. Isso já não seria mais problema, ela não tinha mais vergonha de sair na rua.

Dia caloroso de domingo. Inicio de noite, pouco antes das 21 horas... um carro pára na rua, perto de sua casa. A iluminação não é tão atenta mas, os olhares à tudo que existe a seu redor são.
Um Chevette vermelho espalhafatoso pára... Um casal dentro, se envolve em trocas de beijos, aparentemente apaixonantes.
Imagine quem está lá fazendo parte dessas cenas... Bruna!...

Não demorou muito para que um dos freqüentadores de sua casa, que se encaminhava para lá, passasse perto desse carro e visse que quem estava dentro... Aos beijos e amassos. Era ela, era Bruna...
Apressou o passo ainda mais, para chegar com a novidade quente na sua casa.
É... é a Bruna que está lá... Com alguém, sei lá quem...

Sua mãe ficou apreensiva. Logo imaginou que a pessoa que estava com ela, quando soubesse realmente quem ela era, poderia tomar alguma atitude agressiva.
Enquanto uns riam pelos cantos, outros à aconselhavam a deixar as coisas acontecerem, com a promessa de que se algo de mais grave acontecesse, seriam tomadas atitudes, nas devidas proporções necessárias.
E todos eram olhares. O carro ali estacionado. A aflição da mãe, a gana dos que junto com ela estavam à espera de alguma atitude imprecisa, tomada pelo forasteiro... Tudo era expectativa.

É bom salientar que em bairros como esse que moravam, todo mundo se conhece, e conhecem os costumes dos que são próximos.

Jamais alguém poderia parar ali, naquele horário, se não fosse dessa comunidade. Os que se arriscavam poderiam a qualquer momento serem convidados a se retirar. A primeiro plano pelas boas relações educacionais, no segundo pela fidalga estupidez.

E Bruna lá compenetrada, repelida pelo momento. Talvez o melhor, ou o maior feito até então na sua vida. Ou até então o mais ousado.

O tempo foi passando... Naquela noite ela poderia dizer que quase deu certo e a noite conspirava à seu favor.
De repente, um apagão... Ouvem-se assobios, gritos, risos intensos vindos da rua. A mãe de Bruna também gritou de dentro da casa...
– Vamo lá na rua buscar minha filha...
Ninguém lhe atendeu. A mesma conversa de antes se desenvolve e da mesma forma , onde todos lhe pedem paciência.

Na rua... Bruna devia estar no ápice de seus momentos mais felizes, imaginando mil e umas fantasias. Agora, mais do que nunca, sua imaginação devia estar voando e, voando bem alto.
Naquele tempo, era comum no bairro, quando a energia elétrica faltava as pessoas saiam às ruas. Ficavam jogando conversa fora, fora de suas tocas, até que a energia elétrica novamente mostrasse sua cara. Algumas retornavam ao aconchego de suas casas quando o horário excedia. Principalmente aqueles que tinham compromisso com trabalho no dia posterior.
Os grupos iam se formando, piadas, conversas fiadas, fofocas e, logicamente, desentendimentos às vezes aconteciam.

Mas, nesse fatídico dia, tudo aconteceu de uma forma diferente. As pessoas foram descendo de suas casas para rua e lá estava aquele carro parado que ninguém conhecia. Os mais curiosos não perderam tempo na intenção, nem na curiosidade de saberem o que acontecia.
Quem estava dentro daquele carro?... A vidros fechados e embaçados, com farol aceso, aquela hora?..
Alguns moradores da rua passaram perto mas, não conseguiram reconhecer quem estava lá dentro. A falta de luz e os vidros embaçados do carro não colaboraram.

A curiosidade dói... E foi aumentando aos poucos. Em pouco tempo foi se transformando e transtornando a imaginação de todos que comentavam o porque daquele carro estar ali parado.
Foi um passa-passa pelo carro sem fim. Logicamente isso deve ter incomodado Bruna. O engraçado é o porque, seu suposto namorado não ligou o carro e deu o fora. Continuou no mesmo lugar, como se estivesse chegado naquele exato momento.

E a mãe de Bruna, alucinada, louca pra ir atrás dela mas, ninguém a deixava sair.

Provavelmente começou a faltar ar dentro do carro e o encantado resolveu abrir o vidro. Nesse momento passavam alguns curiosos e viram quem estava dentro do carro. Em pouco espaço de tempo todos na rua receberam com espanto a notícia: tinha um babaca dentro daquele carro com a Bruna. Certamente ele nem imaginava que poderia estar com uma bicha.
A molecada se agitou. Começaram a passar perto do carro e gritar...
– Ela é homem... – Vai acabar comendo você, seu trouxa...
– Cê pensa que ela é Maria... Mas ela é João, bobão...
– Aperta o pacote dela!!!... Giletão...
Foram falados absurdos, baixarias, altos palavrões. O que só serviu para aumentar o desespero da sua mãe. E ninguém deixava ela sair e dar um jeito na situação.

Esse povo queria mesmo era dar umas porradas no cara. Só estavam esperando a situação ficar apropriada, com a desculpa de deixar Bruna ser feliz .

Lá fora a bagunça continuava... A rua virou a maior zona. E o cara lá, acuado, dentro do carro.
Bruna a seu lado, quem sabe se gostando do ibope ou com medo do que poderia acontecer.

A situação estava cada vez mais pesada. É difícil saber a real intenção do povo da rua. Pior ainda, julgar quais eram suas circunstancias.

De repente o encantado saiu do carro gritando e nervoso:
-- Eu sei muito bem quem esta aqui comigo... Ninguém tem nada a ver com isso...
– Será que vocês tão fazendo isso porque tão com inveja?...

Essas palavras ecoaram na cabeça não só dos que observavam mas, principalmente dos que formaram a situação.
Ninguém entendeu nada mas, respeitaram o rapaz e pararam de falar coisas tão obscenas.

A mãe de Bruna sai de sua casa e vai de encontro a ela em desespero. Sem saber se lhe enche a cara de tapas ou se lhe abraça e, acaba optando pelo beijo...
Tira ela de dentro do carro e à abraça...
O enamorado ficou perdido no meio daquela confusão. Deve ter imaginado que Bruna o deixaria sozinho no meio daquela situação.
Enquanto caminha com sua mãe, Bruna olha para o povo vaiando, assobiando, falando palavrões e desabafa, com um nervosismo que ninguém havia visto antes. E pela primeira vez fala em tom de voz masculina, seguida de choro...
-- Se alguém mexer com ele, vai morrer na minha mão...

A velha mãe, consternada com o choro de seu filho/filha, olha para trás e convida o rapaz para acompanhá-los. Diz que quer muito conversar com ele. Ele movido pelas circunstancias do momento fecha seu carro e às acompanha.
Quando chegam na plenitude do portão de sua moradia, grita em bom tom, de forma que todos que estão dentro da casa ouvem:
-- Sai todo mundo daí... Ninguém mais vai mandar na minha casa, se não for eu ou minha família.

Paulo Roberto morto de vergonha, vai até o portão e abraça Bruna com o carinho que sempre teve por ele, mas dessa vez como se fosse realmente sua irmã.
Sua mãe acolhe e recolhe todos.
Fátima fica lá em cima e do alto da janela, agora, aberta, olhando a movimentação da rua e de tudo sem nada dizer. Não se manifestou de forma alguma.

Descem os tomadores de caipirinha, os tiradores de proveito, os abusados e os outros, a fila é um pouco grande...
Entram Bruna, Paulo Roberto, dona Marilia, mãe de Bruna e seu namorado... Luiz. Que até então ninguém conhecia.
A casa agora era só da família. Ninguém sabe o que aconteceu lá entre eles, após esses acontecimentos.

Depois desse dia, nenhum dos supostamente amigos mais próximos entrou na casa deles.
O engraçado é que as pessoas que sempre foram contrarias a essa família e desde o inicio da chegada deles, criticavam e viravam a cara para eles, resolveram tornar-se definitivamente seus amigos. Foram chegando aos poucos como quem nada quer. Um dia um sorriso, outro um bom dia ou boa tarde. Logo vieram os abraços e, a relação foi ficando cada vez mais estreita e amigável.

As portas que eram fechadas finalmente se abriram...

Foram vários, os antigos amigos que bateram na porta de Bruna. Tentativas existiram durante muito tempo, mas poucos obtiveram sucesso nesse intento.

A família continuou levando sua vidinha particularmente normal. Nenhum deles deixou de cumprimentar alguém. Apenas o relacionamento deles em relação as pessoas que um dia foram próximas foi modificado e de maneira abrupta.

Bruna continuou a sair normalmente. Luiz já não era mais visto com tanta freqüência na rua.

Paulo Roberto se tornou uma pessoa mais feliz... Fátima mais gorda, Bruna mais desejada e sua mãe aparentemente parou de beber.

A rua começou a ficar sem graça, sem movimento. A bagunça alegre, de todos os dias, começou a se dissipar até um dia ir embora e, foi...
Só restou o futebol dos sábados e domingos para alegrar.

Disso tudo só ficou a lembrança... Muitos momentos engraçados, pessoas, amizades, aprendizado de vida.
Lembranças... meras lembranças. E o tempo insiste em apagar algo que fez parte de momentos de uma vida.

Bruna e sua família também se foram. Ninguém sabe para onde. A mudança deles foi feita, provavelmente na calada da noite, como uma fuga. Ninguém sabe, ninguém viu. Não se teve mais notícias sobre qualquer um deles.

E os tempos dos anos passaram. A cada ano mais rápido...

As meninas que eram crianças viraram mulheres. Os garotos dos pêlos no lugar de bigodes, viraram homens. Alguns casaram e tem até filhos. Outros já não vivem mais nesse mundo.
Aqueles que ficavam preocupados naquele tempo com o horário de dormir, com medo de perder a hora e o emprego quando faltava energia elétrica, hoje estão aposentados.

Eu já trabalhava naquela época e ainda continuo e pelo jeito nunca vou me aposentar.

Um dia bati meu carro. Andava saindo atrasado quase sempre e não podia chegar fora do horário no meu emprego. Nesses dias e nessas circunstancias só pegando um táxi. Perde-se um pouco de dinheiro do mês, mas não se corre o risco de perder o tão sagrado emprego. E olha que o meu já andava em risco a muito tempo.

Saí correndo atrasado pela rua de minha casa num determinado dia, ainda tonto devido a balada da noite anterior. Meu objetivo era chegar a avenida mais próxima, de maior movimento, para que pudesse me ver dentro de um táxi, o que aliviaria minha cabeça da tensão e agonia de pensar que a minha noite passada me custaria um sermão ou até mesmo meu emprego.

Atordoado, disfunção motora notória, olhos areiados, minha pasta de trabalho insistindo em se enroscar por minhas pernas, a gravata querendo ficar mais no chão que na minha mão... E eu tonto, alucinadamente preocupado com o horário.
Já não tinha o direito da condição de perder meu emprego, nem mais idade para depender dos meus pais. Antes muito antes, eu já não deixava que isso acontecesse. Imagine nessas horas em que me sentia em risco e também irresponsável.

Meu carro iria demorar um bom tempo pra ficar pronto. Essa batida que dei foi forte, acho até que dei sorte pelo pior não ter acontecido.

Já faziam alguns dias que andava perdendo o horário do ônibus e sempre pelo mesmo motivo. Acordar tarde por causa dos excessos que cometia à noite.
Minha possibilidade, minha condição de vida não me permitiam pegar táxi todos dias.
O senso de responsabilidade só clareava nessas horas, quando era obrigado a gastar o que não podia com taxistas sedentos que cobravam, na maioria das vezes, mais de acordo com o atraso do cidadão do que com o que realmente seria honesto.

Entre meus trancos e barrancos, chego na avenida de maior movimento. Passaram vários táxis, alguns lotados... outros não pararam ao meu sinal. Pode ser que os motoristas não foram com minha cara. Mas enfim, minha agonia continuava e minhas tentativas de parar um táxi também. De olho no relógio não perdi nenhuma tentativa. Dava sinal a todos.

De longe avisto um táxi bem caidinho. Em piores condições em relação aos que já tinham passado por mim, até aquele momento. Faço sinal, ele pára... entro com a mesma pressa de chegar ao meu destino... E seguimos tentando desviar do transito caótico, no meio do rush da manhã.

Minha cabeça, agora mais aliviada, procurou um pouco de serenidade e de paz, mesmo que fosse breve. Fechei meus olhos mas, ao mesmo tempo, queria ver os caminhos que o taxista estava fazendo. Ainda estava dentro do meu horário.

Me recordo que a noite foi muito pesada. Não devia vacilar, senão seria bem capaz de acabar dormindo. Puxo conversa com o meu salvador, o taxista, para me manter desperto.

Confesso que nunca gostei muito de dar liberdade de papo para as pessoas, pois, às vezes, quando não quero falar, também não quero ouvir. Com isso, movido pela educação acabo sempre ficando contrariado. Mas, nesse dia não tinha saída. Ou conversava e me mantinha acordado ou corria o risco de perder meu emprego.
Me recordo que comecei com a conversa mais sem graça possível: -- Que trânsito!... Hoje pelo jeito vai fazer muito calor... Ensaiei alguma coisa sobre futebol. Falei de política. Defendi minhas criticas. O cara foi respondendo com contenção, nitidamente sem querer influenciar nem contrariar minhas idéias.
Papos!!!... Talvez só meu papo rolou até então...

O rádio ligado à volume baixo, com Gil Gomes ou, talvez Afanázio falando sobre um crime qualquer. Não dava pra entender muito bem. Alias, nenhuma cabeça nas condições que se encontrava a minha conseguiria distinguir com chances de acerto.

De repente o taxista diz que me conhece e a muitos anos. Procuro olhar para seu rosto através do retrovisor mas, sem sucesso de saber quem possa esta por detrás daqueles óculos escuros.
O papo continua e ele fala meu nome. Se recorda como eu era bom de futebol, lembra que eu gostava de briga de falar de política e outras particularidades. Só quem me conhecia realmente, poderia falar aquelas coisas.
Na primeira oportunidade peço à ele que olhe para mim. Ele olha, mas não consigo distinguir a pessoa do fato. Acreditei que nunca havia visto aquele cara em momento algum de minha vida.
Imaginei que fosse alguém que já tinha ouvido falar de mim em qualquer lugar ou até mesmo alguém com quem já tinha brigado. Mas não me recordava... E naquele tempo, isso era muito normal...

-- Você me conhece de onde, gente boa ?
-- Eu já morei aqui no bairro... Você lembra de alguém com o nome de Bruna???...
-- Claro que me lembro!!!
-- Então... eu sou o irmão dela...
-- Não Brinca, não me diga!.. Você não é o Paulo Roberto?
-- Sou sim... Eu sou o Paulo Roberto. Aquele mesmo que todos imaginavam que um dia viraria viado, complementou brincando: -- Ainda bem que você sempre me tratou bem, senão o bicho podia até pegar pro seu lado agora.

A conversa seguiu tendo como tema lembranças do passado. Eu olhava seu rosto através do retrovisor de seu táxi e mal conseguia acreditar no que estava me acontecendo.

Com o desenrolar da conversa, fui percebendo que ele ainda resguardava os trejeitos de quando ainda era menino. Continuava com aquele ar de pessoa irritada. Sua voz ainda atropelava as palavras quando se esforçava para se fazer entender. Talvez, movido pela ansiedade. Guardava ainda o mesmo sorriso maroto no canto da boca e o olhar iluminado.

A essa altura não me lembrava mais da cabeça atordoada, nem do horário nem do meu emprego.

Falamos sobre amigos antigos. Como estavam, onde estavam, se tinham casado, se tinham filhos.
Falamos também sobre nossas vidas. Fiquei surpreso ao saber que ele havia casado e tinha uma filha recém chegada que se chamava Beatriz.
Perguntei sobre sua mãe. Me disse que estava muito bem, só que se queixava muito da idade se achava velha.
Fiquei sabendo que Fátima tinha feito um tratamento e estava com o corpo como sempre quis. Casara-se com um cara bem de vida e tinha um casal de filhos. Quando ele falou isso, deixou nítido seu orgulho.

Ele me perguntou sobre Ivaldo, pessoa muito conhecida no nosso bairro. Por sinal sempre foi muito amigo meu. Expliquei o que havia acontecido com ele... Fora assassinado. Ninguém sabia das circunstâncias. Foi encontrado no IML depois de muito tempo do acontecido. Algumas pessoas o viram entrar num ônibus em uma determinada noite e essa foi a ultima vez que foi visto com vida.

Quando eu toquei nesse assunto, senti que ele ficou profundamente tocado. Na intenção de retornar a conversa para o astral legal que estava até então, procurei mudar de assunto e lhe perguntei sobre Bruna. Ele me perguntou se poderia parar o carro por alguns minutos. Disse que sim.
Já não estava mais preocupado. Aquele papo, aquelas lembranças estavam me fazendo muito bem.
Parou o carro. Se virou para mim com os olhos carregados de lágrimas. Lhe perguntei o que estava acontecendo. Ele tentava me falar alguma coisa mas, sua ansiedade e o atropelo em suas palavras não me deixavam entender nada. Pedi que tentasse se acalmar, isso durou algum tempo. Chorou feito criança, quando realmente conseguiu se acalmar um pouco, me pediu desculpas e disse que não seria necessário que eu pagasse a corrida do táxi.
Ainda virado para mim e com os olhos mareados, me perguntou se eu realmente queria saber sobre Bruna. Logicamente disse sim. Ele veio com a declaração inesperada. Bruna morrera assassinada à exatamente dois anos . Não foi necessário que eu o questionasse para saber o que havia acontecido. Me contou da forma que chegou para ele e sua família.
Uma tragédia... tinha saído de sua casa num dia de domingo de sol. Desses dias maravilhosos. Quando tudo esta bem. Quando você está feliz e está tudo bem. Falou para sua mãe que ia pra casa de seu namorado, que não era mais o tal de Luiz. A noite chegou. Ela não apareceu. A preocupação começou a chegar, principalmente, quando seu namorado apareceu e disse que não à tinha visto. Saíram a sua procura nos possíveis lugares em que ela poderia estar. . . em vão.
Foram até a delegacia. Conversaram com o delegado que disse:
-- Se fosse Adão, não precisariam se preocupar... Mas, como era Bruna a coisa ficava um pouco mais complicada, porém, ele não poderia fazer nada enquanto não decorressem 48 horas.

Voltaram para casa e ficaram esperando alguma notícia boa que não chegou, nem Bruna...
Segunda-feira 4 horas da tarde. Desespero em todos e nem uma notícia. Resolvem sair a procura nos hospitais mais próximos... Mais uma tentativa sem sucesso. Começam a pensar no pior. Resolvem procurar no IML e lá a encontram; toda retalhada. Cortaram seus lindos cabelo, os bicos de seu mamilos e seu pênis.

Comentou que no dia do enterro de Bruna, todos que moravam perto da casa deles na época, foram ao velório e também ao enterro. Até os que não entendiam muito bem os motivos pelos quais ela era assim.
Fiquei comovido com esse relato e chorei. Já estávamos quase chegando na porta da firma. Atrasado uns 10 minutos, e triste.

Perdi totalmente a vontade de trabalhar naquele dia. Não me interessava se seria mandado embora ou não. Não ia ter cabeça pra trabalhar aquele dia.
Paramos na porta da empresa... Perguntei à Paulo Roberto quanto era o valor da minha corrida. Ele, como já me havia alertado antes, disse que não cobraria nada.
O guarda da firma me viu. Saiu da guarita e veio perguntar o que estava acontecendo. Respondi a ele que nada de mais, só que aquele dia não teria condições de trabalhar; que voltaria para casa.
Perguntei a Paulo Roberto se ele poderia me levar de volta pra casa mas, dessa vez, cobrando.
Achei que não deveria ter acordado aquele dia. Detestava ficar triste.
E aquela hora da manhã, ele me chamou para tomar uma cerveja. De pronto aceitei. Já não tinha mais nada a perder.
Paramos num barzinho do conhecimento dele. Nesses do tipo que só param taxistas. Entrei e, como sempre, como em todas as ocasiões, me senti bem.
Sentamos... Ele pediu uma cerveja. Começamos a conversar e ele me disse: Não foi culpa minha... eu sempre quis que a Bruna fosse do jeito que veio a vida... Adão.
Se ela fosse do jeito que eu sempre quis, poderia até estar viva e quem sabe até estar com a gente agora, relembrando de vários momentos que fizeram parte de nossas vidas.
É uma pena, mas desde quando me conheço por gente, ela sempre fez de tudo pra chamar à atenção das pessoas. Sempre quis ser notada por onde quer que passasse. Sempre insistiu em ser o centro das atenções. Minha irmã se achava uma estrela. Talvez por isso ela tenha morrido, algum ou alguns seres dessa terra não deram espaço para o brilho que ela achava que tinha...




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