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Contos-->A COMPENSAÇÃO - 1ª parte -- 26/05/2004 - 21:47 (adelay bonolo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A COMPENSAÇÃO


— Quer dizer que você é de Altinópolis?

Virei-me de costas e deparei-me com uma moça ou senhora que havia feito tal pergunta.

Era uma quinta-feira, à noite, por volta das 21h e estava numa mesa de cervejaria tomando a costumeira “gelada” semanal com velho amigo meu.

— Hem!, perguntei, meio espantado, não imaginando que a moça se referia a mim!

Olhei melhor e vi que se tratava de esplêndido espécime feminino. Loira, de cabelos longos ondeados e anelados, boca carnuda, nariz afilado, maçãs do rosto avermelhadas, orelhas pequenas, de onde pendiam dois magníficos pingentes prateados, e olhos grandes amendoados. A moça aparentava uns 25 anos, medindo mais ou menos 1,60m de altura. Usava blusa amarela, com generoso decote deixando entrever os seios, por sinal belíssimos, calça jeans marrom, que lhe realçava os contornos, e um par de tamancos de tiras de salto alto.

— Quer dizer que você é de Altinópolis? Repetiu ela, dando ênfase na palavra Altinópolis e desenhando na boca, mais precisamente no canto esquerdo, um sorriso maroto, que não impediu notasse a alvura ofuscante de seus dentes, jamais vista por mim.

Vi que estava sozinha na mesa ao lado, tomando um copo de suco de laranja, sem gelo.

— Sim, respondi, absorto e encantado com a beleza que se me apresentava diante dos olhos, duvidando que era mesmo a mim a quem ela se dirigia.

— Senta aqui, balbuciei timidamente.

Meu velho amigo, com quem havia marcado esse encontro nessa noite, como fazemos há anos quase todas as quintas-feiras, sem dizer nada, num gesto que me agradou bastante, levantou-se e despediu-se rapidamente, não me dando chance de lhe apresentar a criatura.

— Como é que você descobriu?, perguntei-lhe, depois que se sentou à minha frente na cadeira que meu amigo deixara vaga.

Não disse.

Cláudia, esse era o nome da moça, além de muito bela, irradiava simpatia contagiante, que aos poucos conseguiu afastar meu costumeiro acanhamento, sobretudo com o sexo oposto.

Nunca me julguei padrão de beleza masculina, longe disso. De pequena estatura (1,57m), cabeça redonda, olhos verdes, não fui cortejado pelas mulheres na forma e intensidade como desejaria. Pelo contrário, na maior parte da minha vida, e já estou perto dos 45 anos, poucas chegaram a aproximar-se de mim, mais aconchegadamente, sendo que apenas uma conviveu comigo, numa experiência até certo ponto bastante dolorosa.

A timidez que trago do berço antepõe quase sempre barreira intransponível no início de relacionamento com elas. Olho para trás e recordo, num lampejo, as inúmeras vezes que perdi tudo nos primeiros passos. Desquitado há quase cinco anos da minha primeira e única esposa, perdi completamente o jeito (a “manha”, como se diz na gíria da moçada) e as técnicas de aproximação, que todo solteiro tem obrigação de saber e praticar, sob pena de ficar sozinho...

Mas a simpatia de Cláudia era tamanha, que em menos de meia hora já lhe havia contado toda a minha vida, desde a infância passada em Altinópolis.

Ela ouvia silenciosamente, desenhando de vez em quando aquele sorriso maroto no canto esquerdo da boca. Tive vontade de agarrá-la, de acariciar essa boca maliciosa, sufocando-a ardentemente num beijo prolongado.

Meu ímpeto inicial foi arrefecido. Cláudia começou a contar-me coisas da minha infância e da minha família que somente eu poderia saber. Comecei a ficar intrigado com o grau de intimidade que aquela mulher tinha da minha vida passada. Referiu-me cenas de minha passagem pelo seminário (onde fui interno durante quatro anos; queria ser padre!) que me deixou boquiaberto! Como poderia ela saber de tudo aquilo? Perguntava-me, ao tempo em que ficava perscrutando em seu rosto alguma coisa que me lembrasse dela no passado. Mas, nada! Nossa diferença de idade, cerca de 20 anos, eliminava a possibilidade de a ter conhecido naquela época, de que tivéssemos sido contemporâneos.

Por mais que lhe perguntasse de sua vida, de seus parentes e família, conhecidos e amigos na cidade, ela se esquivava, trazendo mais e mais episódios de minha infância.

E assim ficamos conversando animadamente até cerca das 23h, quando ela se levantou de supetão, deu um tchauzinho e foi-se embora. Eu fiquei estatelado na cadeira... nem ao menos lhe perguntei o número do telefone, o seu endereço, nada! “Grande babaca, sou eu!”, pensei; “encontro a mulher da minha vida, a deusa dos meus sonhos e a deixo escapar assim, melancolicamente, por entre os dedos!” Mas tudo isso é fruto, não só de minha timidez, mas também de minha pouca ou quase nenhuma prática com as mulheres, notadamente logo depois de minha separação, época em que já havia perdido por completo o mapa da paquera.

***

Como se viu no início desta história, nasci, nos idos de 1950, em Altinópolis, interior do Estado de São Paulo, cidade pequena, voltada para a lavoura do café e à produção de leite.

Filhos de uma família de origem italiana, eu e meus irmãos tivemos infância difícil. Comíamos o suficiente para não morrermos de fome, podendo-se dizer que éramos subnutridos. No café da manhã, quase sempre faltava pão. Minha mãe, diligente e criativa, usava de artifícios de toda sorte para alimentar-nos. Lembro-me bem da polenta rala de fubá que fazia de manhã, regada a leite quente, aguado para render, pingado com café; lembro-me também dos fritelli(1) que, às vezes, eram servidos como lanche, durante as tardes; era uma festa tais fritelli! Iguais, nunca mais comi.

Nosso pai, bem mais velho que mamãe, havia pego seguidamente várias maleitas(2), que o deixaram sem muita vontade de competição, logo ele que, de nascença, já não tinha ambição alguma... pouca coisa lhe bastava.

Assim, a carga da criação dos filhos recaía quase toda sobre nossa mãe, que, exímia estilista, costurava para a cidade toda.

Nessa época, apareceu por lá um grupo de missionários da Igreja Católica arrebanhando meninos para os seminários. Eu, que queria sobressair na vida, sem saber como, entrei nessa e segui-os à cidade grande. Lá, o ensino e a disciplina severa moldaram-me o caráter, aguçaram-me a inteligência e deram-me gosto pela leitura e pelos estudos. Adquiri muitas qualidades, mas também muitos defeitos, que me acompanham e me perseguem por onde ando, sempre. Fiquei seminarista por quatro anos, o suficiente para marcar em minha mente lembranças indeléveis. Foi exatamente no período dos 11 aos 15 anos de idade.

Saí, pois, aos 15 anos, como disse, tendo perdido, em contrapartida àqueles ganhos, toda uma vida de adolescência, a melhor parte dela pelo menos, época na qual se aprende as artes e as manhas da vida, sobretudo amorosa. É nessa fase que os meninos pegam o traquejo com as meninas e mulheres, começando a abordá-las e a namorá-las. O primeiro beijo, a primeira relação... tudo acontece aqui.

Tais perdas acarretaram-me dificuldades insuperáveis de toda a espécie, que me acompanharam durante muitos anos. Uma das histórias “piedosas” que contavam no seminário, e que serviam de ensinamento e exemplo, é aquela do rapaz que, tendo consagrado sua vida à N.Sª e a renegado depois, morreu repentinamente no ato da sua primeira relação sexual. Tal episódio, verdadeiro ou falso, impressionou-me muito e impediu que tivesse minhas experiências amorosas a não ser depois dos 21 anos de idade!

Nesse contexto, com essa bagagem de qualidades e o incrível porta-fólio de defeitos, aos 18 anos, a exemplo de todo mundo de lá, tive que sair da cidade pequena em busca de escola de nível superior e trabalho, sobretudo trabalho.

Completamente inexperiente de vida e com toda a timidez do mundo, cheguei à cidade grande, como quem vê o mar pela primeira vez: fiquei pasmo diante da grandeza das construções e do infernal barulho do trânsito, que corria ora como enchente, ora como estouro da boiada. Em poucos dias consegui emprego de auxiliar de escritório e morava numa vaga de quarto, num bairro bem próximo ao centro.

O preparo que o seminário me deu relativamente a conhecimentos acadêmicos de português, matemática, latim etc. foi suficiente para que passasse no vestibular e entrasse sem maiores dificuldades na Universidade.

O problema era o tal do relacionamento inicial. A timidez geralmente leva o cidadão que a carrega a individualizar-se, a cristalizar-se numa redoma, passando a considerar-se ora a figura mais importante do mundo, ora a mais desprezível. Ambas as opções são excludentes e predispõem-no ao isolamento. Foi o que aconteceu.

No viço de meus 18 anos não tinha, nem nunca tivera namorada e o medo terrível de conseguir uma, em decorrência daquela história “piedosa” que ouvira anos passados, me impedia qualquer tentativa nesse sentido. E mesmo que alguém me “desse bola”, não saberia o que dizer, nem fazer, ficando todo desconcertado, embaraçado, desajeitado, encabulado. “Tinha”, como dizia Machado de Assis(3), “orgias de latim e era virgem de mulheres”.

Meu trabalho era modesto, embora tivesse condições intelectuais e funcionais para vôos mais altos; por isso ganhava pouco, o suficiente para pagar a vaga de moradia, a compra de alguns livros e o que sobrava era tão pouco que não dava para me vestir como precisava.

Terminados os estudos normais da faculdade, comecei a trabalhar em um escritório de advocacia com um colega mais velho, que me serviu sempre, não apenas como amigo, mas como espécie de pai e protetor, inclusive reforçando meu caixa em momentos de necessidade(4) . Hoje lembro com muita saudade dessa criatura, considerando-me ingrato, visto que nunca mais o procurei, nem por telefone, como se jamais existira.

Em todo esse período de faculdade, apesar das facilidades que o ambiente proporcionava, da maior liberalidade que a convivência acadêmica ensejava, minha vida amorosa era reduzida ao mínimo indispensável e isso mesmo somente depois de superado o impasse da tal história “piedosa”. Condicionado pela timidez e pela dificuldade de freqüentar festinhas, bailes e outras efemérides da espécie, acontecimentos em que tradicionalmente as pessoas se conhecem e passam a namorar, meu campo de paquera ficava restrito às mulheres mais humildes, empregadas domésticas, serviçais de bares, de prédios etc. O enorme fosso intelectual existente entre mim e a escolhida amargurava-me de forma extraordinária, reforçando ainda mais meu complexo de inferioridade e encheria de vergonha meu pai, sempre zeloso pela minha felicidade, se me visse naquelas circunstâncias.


continua...

NOTAS
(1) Bolinhos de farinha de trigo fritos na gordura (ou óleo), muito apreciados pelos descendentes de italianos.

(2) Malária.

(3) Dom Casmurro – Capítulo XIV.

(4) Tive, na minha mocidade, um amigo do peito que foi um segundo pai. O livro que contém este conto está dedicado a ele.
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