SEXTA-FEIRA
O cansaço é como um canto de sereia, envolve e enfeitiça sutilmente até roubar os sentidos sem que se perceba. E na última noite do roteiro, enquanto via inquieto o fim de cada hora, não me opus à quela sinfónica silenciosa. Queria dormir. Precisava! Mas, contrariando a minha própria vontade, permaneci acordado durante quase toda a madrugada.
Exatamente à s cinco horas da manhã, porém, Jajá bateu à porta do quarto. Assustado com sua veemência - típica de quem já repetiu algumas vezes o chamado -, quase em um único movimento me pus de pé, vestido, e com ares de quem apenas o aguardava para seguir viajem.
- Bom dia Jajá. E aí, tudo certo? Vamo nessa!!! Vamo nessa!!! - Falei apressado, enquanto esfregava com os nós dos dedos as olheiras.
Jajá é mesmo um sujeito muito prestativo e boa praça. A viagem que fizemos escutando Beatles, Queen, Titãs e outros clássicos foi ótima. Rimos e conversamos fartamente. Tanto, que quando chegamos em Barra da Estiva - mais ou menos à s sete e meia - parecia que tínhamos acabado de deixar Piatã.
Mas o dia estava apenas começando e prometia ser longo. Já avisado desde a véspera sobre a minha chegada prematura, o colega de Barra da Estiva apenas aguardava um contato para abrir a filial. Liguei para sua casa, fui prontamente atendido, e em poucos minutos já dava início ao trabalho. Só então Jajá retornou para Piatã, levando consigo minha gratidão e, principalmente, minha amizade.
Desta vez o trabalho foi rápido e limpo. Os equipamentos estavam velozes, configurados, cheirosos e bem dispostos. - Ótimo! Encerrei as atividades antes do previsto e sem nenhuma perda de tempo fui até a agência para, em seguida, embarcar rumo a Ituaçu. Bela paisagem. A poeira fina dos outros dias de roteiro dera lugar a um verde profundo, que com exuberància cobria as montanhas íngremes ao pé das quais eu viajava.
Estava confiante com o sucesso daquela primeira etapa. Ainda não chegara sequer ao meio da manhã e já havia vencido a maior parte do caminho até a segunda cidade do dia. Dali para a última, conforme me indicava um mapa, seriam poucos quilómetros apenas. Um detalhe, porém, me incomodava um pouco: minha barriga mexia mais que o normal; mais que o devido.
Também em Ituaçú os computadores estavam ótimos e mais uma vez o trabalho foi rápido e limpo. Os colegas daquela filial, inclusive, conseguiram para mim uma carona até Tanhaçu, o que me fez economizar um precioso tempo de espera. Não fosse minha barriga, cujos movimentos se intensificavam, teria apenas razões para me alegrar. Àquela altura - mal alcançava o sol o zênite - o cumprimento do roteiro estava assegurado e já sentia na boca o doce sabor da vitória.
Mas a minha barriga, definitivamente, não estava nos seus melhores dias. Enquanto viajava em direção a Tanhaçu, tentava contabilizar as poucas oportunidades que tive nos dias anteriores para - digamos assim - fazer uma limpeza, e me apreendia. Vale ressaltar que não estou me referindo a uma simples varrida na fachada, mas a uma verdadeira faxina: da sala de visitas aos cómodos do subsolo. Uma espécie de bota-fora, para ser bem claro! Havia, e era impossível não perceber, muito mais créditos que débitos na minha contabilidade fisiológica. Um estorno, portanto, era cada vez mais necessário!
E o calor causticante de Tanhaçu não ajudava em nada. Ao contrário, me exauria. Resultado: enquanto meus dedos configuravam os equipamentos da derradeira filial, meus pêlos se ouriçavam e minha testa derramava suor sobre o resto do corpo que apenas existia. Sem saber o que se passava comigo, os colegas - num gesto de extrema delicadeza e atenção - me ofereceram até um suco de caju. Tive menos forças para recusar que para beber. Além do mais, a minha situação já estava de tal maneira crítica, que duzentos mililitros de suco não iriam fazer lá grande diferença.
Pelo menos, e para a minha sorte, também ali os computadores estavam em perfeitas condições de uso. Em virtude disso, em muito pouco tempo eu me vi livre para levantar - cautelosamente! -, guardar os disquetes, fechar as caixas, a mochila, e pór fim aos trabalhos daquele roteiro final. O relógio ainda não marcava três da tarde.
Como se essa sensação me fosse permitida naquele momento, estava feliz. Tanhaçu não era apenas a última dentre sete cidades, mas dentre muitas; de muitos outros roteiros. Só que, a rigor, minha barriga não tinha nada a ver com isso. E reclamava. E mexia. E me fazia tremer com calafrios intoleráveis. Até que não aguentei:
- Tem banheiro aqui? - Perguntei ao colega da filial. A resposta, naturalmente, eu já sabia e era positiva.
Minha natureza naquele instante já estava mais próxima da de um vulcão. Creio que em muitos poucos aspectos eu me assemelhasse a um ser humano. Se quisessem, portanto, à quela hora me batizar, não tenho dúvida que Vesúvio seria um nome bastante apropriado. Mas, embora vulcão, ainda me restava um pouco de dignidade humana. Em pé e sozinho dentro do limpíssimo banheiro que servia tanto à filial como à s outras empresas do lugar, não tive outra alternativa senão conter minha própria erupção. É que - economicamente falando - não seria em um único balancete que crédito e débito se equilibrariam novamente. Aquilo era coisa para uma ação plurianual. Algo que pertencia ao universo do longo prazo!
Não tive outra alternativa: passei um pouco de água no rosto e dei meia volta. Com um sorriso amarelo, agradeci a colaboração dos colegas, o suco, e fui para a minúscula rodoviária carregando pesadamente a mochila cheia de tralhas. O caminho, não muito maior que quinhentos metros, se agigantou a ponto de parecer sem fim.
A minha última alternativa, não tinha dúvida, seria mesmo a rodoviária. Um banheiro - pequeno e sujo que fosse - haveria ali. E havia. Pequeno e sujo, exatamente como o previsto. Ou, para ser mais exato: bem pior que o previsto. Porcos não chafurdariam naquele lamaçal. É inimaginável o que jazia atrás da porta surrada que separava da civilização aquele antro. Uma única tonalidade marrom escura cobria chão, paredes e teto. Uma pia quebrada e sem torneiras pendia logo abaixo do que restou de um espelho oval cujos cacos, espalhados pelo piso e quase totalmente encobertos por uma nada misteriosa substància ocre, refletiam com dificuldade a luz abafada que invadia o cubículo através de uma única e minúscula janela elevada. O calor de Tanhaçu era intenso. Cozia. Atiçava os odores daquele submundo.
Minhas mãos então já tremiam. Meus pêlos já não se quietavam e eu sabia o que precisava ser feito. Da maneira como as coisas estavam, o perigo era iminente! Eu poderia entrar em erupção a qualquer momento! Não havia, pois, outra saída a não ser aceitar os fatos. Aquela era mesmo a minha sina e ponto final. Como um boi seguindo para o abate, fui dar providência do último e valioso recurso que me faltava: papel! Caminhei praticamente arrastando os pés até um pequeno mercado onde comprei sem palavras um "pacote" unitário e voltei respirando raso. A partir de então, tudo passou a acontecer meio que em càmara lenta. Cada passo era um obstáculo a ser vencido e quanto mais perto chegava, maiores eram os calafrios e dificuldades. A coisa chegou a tal ponto que quando finalmente entrei no subterràneo para passar as minhas notas, nem me preocupei com mochila, disquetes e carteira que havia deixado, à mercê da sorte, bem no meio da rodoviária. Sabia que quando acabasse aquela provação e se fechasse atrás de mim a porta do caos, pouco me importaria se algo, ou tudo, tivesse sido pilhado. Eu estaria leve e puro demais para me ater à matéria.
Os detalhes acerca do ocorrido durante a minha - digamos - erupção antípoda, pertencem ao mundo dos pesadelos. É prudente, então, que de lá não saiam. Mas, apenas como referência aos malabarismos que viabilizaram toda a operação, um nome: Kama Sutra!
Às dezesseis e trinta embarquei - com mochila, disquetes e carteira - de volta para Conquista. Estava lépido. Não subi simplesmente os degraus de acesso ao ónibus, saltei-os. E com o sorriso incontrolável que exibia no rosto, devo ter parecido, aos que me olhavam curiosos, um idiota. Mas eu não estava nem um pouco preocupado com isso. Tinha certeza que o fim do trabalho, das agruras e do sufoco trariam à reboque a paz para a viajem de retorno. Só que o ónibus quebrou! E depois de quase sessenta minutos, todos os sete passageiros uniram seus polegares para pedir carona. Foram mais outros longos minutos até que outro ónibus parasse e conduzisse a todos para um bairro do subúrbio de Conquista. De lá, fui para a rodoviária, comprei minha passagem para Salvador e segui em outra carona - desta vez minha cunhada - para a casa da sogra. Banho quente, sabonete, toalha macia... - Ah, que delícia!
Agora sim. Limpo, cheiroso e penteado, entrei à s vinte duas e cinquenta no ónibus CAMURUJIPE de linha Vitória da Conquista - Salvador. Estava mesmo voltando para casa. Apesar de tudo, consegui concluir o roteiro, conhecer novos lugares, novas pessoas e, principalmente, viver novas histórias. O corpo, cansado de tanta labuta, pedia para descansar. Meus sentidos já se inebriavam ao som daquele canto envolvente e eu apenas procurava a minha poltrona para me sentar, reclina-la ao máximo e dormir.
Mas, pera aí! Tem um cara sentado em meu lugar! Ei amigo, essa poltrona é minha! Claro que é, olhe aqui o número. Como assim, duas passagens iguais? Mas, mas... isso não é possível!
- MOTORISTA...
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