- Deram-te a vida homem! Agora quer tirá-la assim, sem mais nem menos?
O médico dirigiu-se a ele com aquelas palavras decoradas, sem emoção, cuspidas por quem as sabia inúteis, ou quase. Fosse qual fosse o hospital, os médicos pareciam sempre os mesmos, vazios de essência, mecânicos, desinteressados. A cada tentativa frustrada sentia-se mais impotente, mais incompetente diante da vida. Não conseguia sequer livrar-se dela. Enquanto tantos iam sem desejar, ele, que queria ardentemente o fim, não o alcançava. Ironia! Doce e amarga ironia. Desta vez ingerira “chumbinho de rato”, veneno infalível, ouvira dizer. Até nisso estava deslocado no tempo. Havia um antídoto sendo testado na UERJ, nele aplicado, que o salvara por milagre. Agora seguiria um ritual já bem conhecido; o manicômio; internação; tranqüilizantes; eternas e mentirosas seções de análise com o psiquiatra. Até que, convencidos de que a normalidade voltara, vinha a libertação e nova tentativa. A ironia era não poder se socorrer da sua profissão: médico, cura-se a ti mesmo, diz o ditado. Para ele valeria outro: assassino, mata-te a ti mesmo. Nem os médicos se curavam, nem ele se matava.
O vácuo tinha começado com o fim do governo militar. Acabava a repressão política, homens como ele, treinados na arte do interrogatório, da eliminação insidiosa, da perseguição, já não tinham utilidade alguma. Antes poderosos e temidos, tornaram-se um fardo. Os que tiveram maior visão simplesmente desapareceram na penumbra, antes que o pior chegasse, mantendo contato esporádico com alguns membros do alto escalão. A lei da anistia dava-lhes tranqüilidade jurídica, mas só. Passaram a sentir-se perseguidos, e realmente o eram, num crescendo, na medida em que o tempo passava. Ao contrário de serem esquecidos, sendo cada vez menos temidos, eram cada vez mais perseguidos. Viviam nas sombras, numa verdadeira clandestinidade legal.
Alguns, valendo-se dos contatos que ainda mantinham com militares diretores de empresas estatais, para lá migraram, guardando em sigilo sua origem, sempre com um olhar de esguelha, no temor de que alguém os reconhecesse. Muitos chegaram às raias da neurose. Havia principalmente o temor de que alguém almejasse a vingança atingindo os filhos. Mas ele não se importava com os filhos. Não tinha medo, não tinha nada. Sequer queria realmente morrer, apenas não queria continuar vivo. De torturador passou pouco a pouco a torturado. Não conseguia manter vínculos afetivos, não demonstrava emoções, mas tinha-as, e muitas. Perdera a esposa, os dois filhos o viam, mas sem nenhum entusiasmo. Nenhum Natal em família, nenhuma nesga de carinho ou preocupação. A pensão de oficial reformado do exército dava para viver; mas e daí! Nem pensão a ex-esposa quis. Não sobrou o menor vínculo. Tudo porque se fechara, sem mesmo notar que o fazia. Não tinha passado; não tinha futuro. O presente era o nada, a ser preenchido pela morte.
Era 31 de dezembro, rompia o novo ano. Ele, sozinho, no pequeno apartamento de Copacabana, ouvindo a trovoada de fogos a anunciar novos tempos, como se realmente algo de novo viesse. Para ele viria. Finalmente encetou o plano que há muito imaginava, agora infalível. Foi à praia bem depois dos fogos, ainda povoada de alguns festeiros, todos bêbados, indiferentes ao que quer que ocorresse. Adentrou-se no mar, a ponto de molhar as calças até os tornozelos, pôs-se de cócoras, de costas para o oceano. Tirou o .38 da cintura, colocou o cano dentro da boca e desferiu um tiro. O corpo caiu para trás e com o tempo foi levado pela maré, finalmente livre.