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Cronicas-->Zé e o Gabiru -- 30/07/2003 - 17:54 (Paulo Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos



Quando Zé o viu pela primeira vez, o seu pensamento viajou por toda a culinária mundial. Imaginou gabiru ao molho branco, gabiru ao alho e óleo, filé de gabiru temperado com trufas brancas, gabiru flambado no vinho rosé, ou um singelo cozido de gabiru na água suja.
Zé era um mendigo. Um maltrapilho que vagava há anos pelo centro do Recife. Não lembrava como havia chegado a tal ponto. Não lembrava se perdera tudo que tinha com mulheres, bebidas e jogatina. Ou se nunca tivera nada para perder com mulheres, bebidas e jogatinas. A verdade era que Zé a muito não tinha mais nenhuma esperança de sair do flagelo em que se encontrava. Ser um pedinte era o seu único talento, era a sua arte. Cultivava uma barba de décadas, daquelas na qual vive um verdadeiro ecossistema, um universo paralelo se desenvolvia na barba de Zé. Era tão sujo quanto o centro do Recife.
Só uma coisa prendia Zé a vida. Um gabiru gordo. Sonhava em comer tão obeso animal. Zé se perguntava como aquele maldito roedor, que vivia na mesma miséria que ele conseguira engordar tanto. Ele se alimentava do mesmo lixo que Zé. Tudo bem que em matéria de lixo o centro do Recife é farto, um paraíso pra quem vive de sobras. Era o caso de Zé e o seu adversário, o gabiru.
Eles se viram pela primeira vez a alguns meses atrás. Zé estava faminto, dormente de tanta fome. Era madrugada na Rua do Riachuelo quando ele viu o gabiru saindo de trás de uma barraca de caldo-de-cana. Aquelas dobrinhas, as coxinhas gordinhas, aquele lombo. Aí que lombo. Era um banquete que Zé não podia deixar escapar. Aquele era o gabiru mais gordo da cidade do recife, quiçá do mundo. Zé reuniu as últimas força do dia e partiu atrás do gabiru. A corrida foi frustrada. Apesar da avantajada silhueta o gabiru não era tão lento a ponto de perder em velocidade para um mendigo faminto. A derrota não abateu Zé. Pelo contrário, lhe deu mais força. Comer aquele gabiru era o sentido da sua vida. Nada, absolutamente nada, iria detê-lo.
Por várias noites Zé fez, em vão, tocaia na frente daquela velha barraca de caldo-de-cana na esperança de encontrar a toca do gabiru. Mas Zé não desistia, continuava a vagar durante toda a madrugada pela Rua do Riachuelo na busca pelo gabiru. Passou a comer mais lixo buscando se fortificar para a grande batalha. Pediu mais esmolas, tomou vitaminas, comeu casca de ovo, mastigou folhas de capim elefante, fez musculação com uma lata velha de tinta Coral cheia de lama do mangue da Aurora, correu, teve aulas de jiu-jitsu com um cobrador de Kombi amigo seu, para o caso de um confronto corporal com o gabiru. Ele estava pronto.
Aconteceu. Às três e trinta e cinco da madrugada de uma terça-feira, ele o viu. Caminhando na lateral do edifício Ébano, lá estava o gabiru. Zé, de posse de um pedaço de pau, lentamente foi se aproximando. Apesar da cautela na aproximação o gabiru o viu. Zé parou. O gabiru o olhava. Zé estava a poucos metros de agarrar o seu sonho, no entanto não poderia se afobar, conhecia e respeitava o seu adversário e sabia que qualquer movimento brusco podia por tudo a perder.
Parados, um diante do outro, eles se entreolharam. Era impossível não notar o clima de faroeste italiano no ar. A cada pequeno passo de Zé. O gabiru respondia. Às vezes, avançava, como que desafiando o pobre mendigo. Por vezes recuando, como que temendo a barba lendária da figura que o desafiava. Ficaram assim alguns minutos, quando de repente. Começou a perseguição.
O gabiru partiu em direção a Rua da Aurora em desabalada carreira com Zé no seu encalço. O gabiru olhava para trás e não acreditava na rapidez daquele mendigo que estava quase lhe alcançando. O gabiru só tinha uma saída: a bueira.
Colada com o meio-fio, aquela via de acesso ao esgoto era a única forma de escapar da ira de Zé. Foi em direção da bueira salvadora que o gabiru apressou a carreira. Zé percebeu a sua intenção. Ele sabia que se o gabiru conseguisse alcançar a bueira o seu sonho de comê-lo estaria enterrado. Foi então que Zé, tomado com uma força sobrenatural, saltou, de tal forma que passou sobre o gabiru, parando na entrada da bueira. Foi um salto digno de Matrix. Zé voou como o escolhido.
O gabiru freou bruscamente. Lá estava Zé, obstruindo a entrada da bueira, com um ar de superioridade, dando a batalha por vencida, já sentia o gosto suculento do gabiru. Mal sabia Zé que aquele gabiru ofegante a sua frente não estava derrotado. O gabiru franziu a testa, olhou nos olhos de Zé, fez meia volta e partiu tão rápido quando um guepardo. Zé partiu atrás dele.
Foi uma perseguição implacável. Corriam como campeões olímpicos. Atravessaram a conde da Boa Vista como raios. Algumas testemunhas que estavam em um ónibus elétrico, afirmam que era impossível definir quem era quem, tamanha a velocidade dos dois. Alguns metros depois do cinema São Luiz o gabiru entrou em um estreito beco a sua direita. Era uma viela. Com o sua vítima encurralada, Zé foi lentamente se aproximando, curtindo o momento, saboreando a sua grande vitória. O gabiru viu a morte chegando no olhar sanguinário daquele mendigo.
Em um movimento rápido o gabiru passou por entre as pernas de Zé, que ainda conseguiu tocá-lo antes de cair no chão. Estatelado no chão Zé o olhou pela última vez. O gordo gabiru foi rebolando o farto lombo até a entrada de esgoto mais próxima. Antes de entrar, olhou singelamente para aquele mendigo estirado no chão e sorriu.Um sorriso lànguido.
Hoje se você encontrar com Zé nos corredores do Hospital da Tamarineira, ele vai segurar você pela camisa, olhar profundamente nos seus olhos e dizer: "ele sorriu pra mim".
E o gabiru? Continua gordo, vagando pelos esgotos de Recife e rindo da cara dos mal afortunados.


PAULO J. TEIXEIRA
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