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Cronicas-->Perdido na Metrópole (27) Espelho, espelho meu -- 01/08/2003 - 17:42 (Silvio Alvarez) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Sapatos. As pessoas olham para os nossos sapatos, reparam mesmo. Não sabia. Como ando sobre eles e eles sobre o imprevisível chão da minha metrópole o desgaste é inevitável. Não sabia. É necessário engraxá-los às vezes, disseram. Novidade. Noto que meus calçados estão horríveis. Sujos mesmo. Ando uns cinco quilómetros por dia no centro de São Paulo. Minha querida avenida São João está eternamente em obras. Pedregulhos, cal, areia, cimento, chicletes, buracos e outras coisas que prefiro não citar, são inimigos naturais dos meus pisantes. Compreendo, enfim, a utilidade dos engraxates no ecossistema urbano.

A solução é apelar para um destes profissionais. O eleito está situado na pacata esquina das avenidas Rio Branco e Ipiranga. Caetano Veloso deve frequentar o quarteirão ao lado. Fez até música homenageando o cruzamento vizinho. O movimento por ali é de, mais ou menos, um Maracanã lotado por hora.

Cinco reais por um trato completo no desgastado couro sintético do meu humilde e sofrido parceiro de caminhada. O problema é que a cadeira na qual devo me aboletar não é nada discreta. Um trambolho enorme. Tem até escadinha. Sentado ali, em meio ao formigueiro humano da calçada, a sensação é estranha. Percebo chamar a atenção dos transeuntes. Por que será? Naquela situação é provável estar sendo confundido com um monumento. Uma escultura de terno e gravata, muito mal acabada por sinal.

Encaro a parada numa boa. Enquanto o simpático engraxate, em seu banquinho, aos meus pés, como que louvando um deus pagão, desempenha sua tarefa com maestria, vou admirando a multidão daquele discreto mirante. Quinze minutos passados, vem a preocupação. Raciocino. Uso meias brancas e a graxa é preta. Estas cores não são muito amigas nestes casos. Apreensão seguida de alívio. O homem é gabaritado no que faz, pensa em tudo. Protegera devidamente a alva vestimenta antes do serviço.

Revela ser também um profundo conhecedor dos mais variados assuntos, além de orador contumaz. Fala sobre economia, moda, cultura, política, futebol, química, física quàntica, biologia, gastronomia, tragédias em geral, sociologia, filosofia, mitologia grega, história, fofocas do meio artístico televisivo... Tudo e mais um pouco. E o monumento ali, petrificado, abestalhado com o excesso de informação auditiva e visual. Saio ileso e satisfeito com sapatos ofuscantes.

No campo profissional capitalista a embalagem é tão importante quanto o produto, ou mais, segundo os especialistas em marketing. Seguindo esta regra básica, resolvi atentar para alguns detalhes que havia relegado e deixado para o segundo, terceiro, vigésimo plano.

No isolamento, acarretado pelo período depressivo que passei, não pensava nisto. Com os dois neurónios em paz, vida nova. Voltei a trabalhar depois de dez anos concertando a cachola. Administro os sintomas sobreviventes com empenho e, assim, vou levando, navegando como posso neste revolto mar existencial. O que realmente importa é o nosso interior. Concordo. Entretanto, preciso ganhar dinheiro para comprar meu macarrão instantàneo de cada dia. Certo? Frequento todos os tipos de lugares e lido com profissionais das áreas mais diversas. Certo? Minha aparência é levada em conta. Certo?

Certíssimo.

O problema é que me julguei feio a vida inteira. Estou mudando este incómodo conceito. Neste quesito, deixo os comparativos de lado, esqueço que tenho de agradar alguém, penso em mim, capricho e sigo em frente. Competir com os padrões da mídia é covardia.

O Adilsom, meu rádio, tagarelando todos os dias, tem ajudado.
- Eu me amo, Eu me amo...

Tento manter a linha fashion. Não é fácil. Com um espelho de quinze centímetros por cinco no banheiro do meu apertamento é complicado.

Querem saber? No fundo, bem lá no fundo, me adoro. Sou apaixonado por mim mesmo. Sou lindo por dentro e por fora. É verdade. Ninguém acha, mas... Tudo bem. A cada nova manhã travo um corajoso e narcísico diálogo.
- Espelho, espelho meu, existe alguém no mundo mais belo do que eu?... Entendo, digníssimo senhor espelho. Creio que o senhor, de qualquer forma, poderia ter um pouco mais de consideração com minha auto - estima e aprender a mentir de vez em quando. Não custaria nada.

Desisti de brigar com este pedaço de vidro metido a besta há um bom tempo. Sei que sou bonito e modesto.

Saio às ruas da minha metrópole todos os dias para que as pessoas possam admirar a belezura deste precioso e extraordinário ser acidentalmente perdido na metrópole. Este singelo poço de humildade. Outro dia, aconteceu algo inédito. Mesmo acostumado ao impacto visual causado pelo magnetismo natural que possuo, estranhei. Não teve uma pessoa que tenha deixado de fixar o olhar neste fenómeno da natureza enquanto percorria os habituais cinco quilómetros do escritório à compacta mansão onde moro. Qual o motivo? Simples! O zíper da minha calça estava aberto.

Silvio Alvarez é assessor de imprensa da banda rock pop YSLAUSS, artista plástico de colagem e colunista. silvioalvarez@terra.com.br
Ilustração - Bruno César: brunoartes@uol.com.br
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