Felizmente para meu bem estar íntino, só após cerca de um mês e pico de seu passamento é que soube que o meu deveras amigo António Pinto, de Guimarães, tinha falecido. Mais um estúpido acidente de viação me enlutou o espírito.
O Pinto, afecto do coração ao ambiente do fado bem cantado - sua esposa Maria de Lurdes é uma conceituada fadista vimarenense - convidou-me um dia para participar na concretização de um projecto de homenagem a um grande cidadão empresário de Guimarães. Como o aludido, entre as suas sete empresas, era dono do melhor hotel da cidade, logo que a minha disponibilidade se abriu, fui comodamente lá alojado, onde passei 15 maravilhosas jornadas diárias a recolher elementos e a conceber a obra para o dia da homenagem.
O Senhor Herculano, inconsoladoramente afectado por abrupta viuvez, era um empresário muito bem realizado e situacionado na vida, integral proprietário do grupo H&P e chefe incontestado de uma numerosa família de elevada posição social.
Comecei pois a delinear o meu trabalho de conformidade com os factos recolhidos, relacionando-os poeticamente a fim de produzir um todo que só os bem identificados, e sobretudo lestos de raciocínio sobre o assunto, entenderiam.
Anotei assim algumas equivalências factuais:
POEMA - I
Elementos:
Grupo H&P = Navio da liberdade
Sete estrelas = Sete empresas
Capitão = O homenegeado
Oito cadetes = Oito filhos
Duas grumetes = Duas filhas
Imediato = Sr. Silva, pessoa de confiança
Cidade = Guimarães
Netos = Os que esperam
E produzi:
NAVIO DA LIBERDADE
Sete estrelas sobre o ombro
Reluzentes de assombro
Traz o nobre capitão
Comandante do navio
Em constante desafio
Contra os mares da solidão
A bordo oito cadetes
E duas belas grumetes
Com o seu imediato
Vão de vela porto em porto
Para vencer o mar-morto
E voltar ao cais do parto
Que belo ruma o navio
Sobre o mar rumando ao rio
Para atracar na cidade
Onde ansiosos esperam
Aqueles que mais veneram
O mundo da liberdade !...
POEMA - II
Elementos:
Lar e família = Jardim da vida
Cravo antigo = O homenageado
Rosa namorada = Falecida esposa
Oito cravos = Oito filhos
Duas rosas = Duas filhas
Mãe-rosa = Alma da falecida esposa
E obtive:
JARDIM DA VIDA
Conheço um cravo antigo
Que namorou uma rosa
Com quem casou florido
E tornou flor ditosa
Ternamente apaixonado
E todo dado de amores
Muito rubro e perfumado
Pôs-se a plantar flores
Oito cravos, duas rosas
No seu jardim fez brotar
Flores belas e ditosas
Que soube amar e regar
No canteiro da saudade
A mãe-rosa adormecida
É a flor da eternidade
No outro lado da vida !...
Bem... No dia da festa, o Senhor Herculano apenas sabia que havia algo em torno de si, mas sobre o pormenor dos conteúdos desconhecia tudo em absoluto.
Trezentos e muitos convidados enchiam o salão de festas do hotel. Comeu-se, bebeu-se, discursou-se e finalmente aconteceu o espectáculo que eu e o Pinto tínhamos rigorosamente preparado.
Duas guitarras portuguesas eximiamente dedilhadas, viola de acompanhamento, viola-baixo e duas excelentes vozes, Nuno de Aguiar e Maria de Fátima.
Em primeiro lugar, o Nuno interpretou o "Navio da Liberdade" sob espectacular silêncio e devoradora atenção. Finda a actuação, as palmas ouviram-se trepidantes e em uníssono. As pessoas levantaram-se e quiseram felicitar o artista com calorosos abraços e manifestações de viva admiração.
De seguida, a entrada musical dos instrumentos repôs de novo a serenidade e a Maria de Fátima entrou solene a esgrimir com a sua bem timbrada voz os versos do "Jardim da Vida" com o público suspenso e completamente agarrado à sua interpretação.
Reparei que uma comoção imensa tomava de lés-a-lés o Senhor Herculano, que deixava soltarem-se de seus marejados olhos grossas lágrimas escorrendo em seu enrugado mas muito bem tratado e conservado rosto.
No termo do espectaculozinho, que apenas durou cerca de 20/25 minutos, mais palmas, muitas palmas, abraços, muitos abraços e felicitações. Depois bebeu-se ainda mais e dançou-se até altas horas da madrugada.
No dia seguinte, acordei às duas da tarde. Preparei-me e preparei meus atavios para regressar ao Porto. Quando desci à recepção a empregada de serviço interpelou-me e entregou-me um envole fechado com a marca do hotel. - "Foi o snr. Herculano que mandou entregar-lhe", disse. Meti o envelope no bolso, despedi-me e saí, rumo à cidade para onde quero sempre regressar quando estou fora.
Quando cheguei a casa, abri o envelope. Surgiram, dobrados um no outro, um cartãozinho pessoal de agradecimento e... Um cheque! - Ena, pá, ora deixa cá ver... 500 contos !!!... (7.500 reais) Apre... O velhote de Guimarães tinha gostado mesmo a sério da festa... E das minhas relacionadas palavras que, felizmente, há ainda bastante gente que também gosta.
Torre da Guia = Portus Calle |