A invasão
ISAQUE P MILIANO FIQUE LONGE, assinala em letras garrafais azuis sobre fundo branco a tabuleta de madeira dependurada no arame farpado do lote. Um signo de propriedade e de notória ameaça, embora aquela tenha sido impunemente desrespeitada, soçobrando em inconcebível defenestração e sem que, em momento algum, quem de direito tenha ameaçado utilizar, via reintegração, do aparelho policial, para lhe fazer valer a legal prerrogativa de posse. Diria que a ocupação foi perpetrada por Sem-Tetos, a face urbana dos Sem-Terras, cujos movimentos têm exposto as fraturas e os pés de barro de um modelo perverso que privilegia o mercado financeiro em detrimento ao produtivo, exacerbando ainda mais o abismo entre uma minoria e a grande massa de milhares de brasileiros inapelavelmente excluídos em todo o país, processo que, paradoxalmente, recrudesceu sob a égide de um governo presumivelmente de esquerda. Mas essa complexidade temática há de ficar por aqui; ao assunto têm-se debruçado a grande imprensa e abalizados formadores de opinião.
Há cerca de um ano e meio, hoje, a invasão já está quase que tomada de moradores, ou em fase de ocupação, reconhecida por algumas casas em construção, exceto o terreno nu e cru do tal ISAQUE, protegido pela draconiana ameaça: FIQUE LONGE.
Sem infra-estrutura adequada, em mutirão, estendeu-se uma rede de energia baseada em tudo o que lhe era possível transportar, inclusive arame farpado (o conhecido "gato")... Pendurada em raquíticos e desaprumados postes de paus-roliços, a miúdo, completados por pedaços de vergados ripões, a rede atende precariamente à quela gente. A água é retirada de poços escavados a pouca profundidade, considerando-se que a área é baixa e fica próxima a um igarapé em inexorável processo de poluição. Mesmo assim, vê-se ali, nos fins de semana, jovens e até adultos banharem-se e extraírem - sob nervosos e estridentes chilreares de maracanãs ou grasnares de alguns marrecos, que, em sobrevóos parecem, de algum modo, tentar proteger seus ninhos nos topos de troncos de buritis afogados à custa da elevação do nível das águas represadas -, a caniço ou à tarrafa, pequenos carás e outros espécimes que conseguem sobreviver em condições tão severas... Isso de dois trechos interditados por barragens de terra, utilizados pelos antigos proprietários, na época da estiagem, como reserva de água para o gado e plantio.
A vida parece, ali, não ter pressa. Sem identificação, sem carteira assinada, ela vai devagar, quase parando. As casas, na maioria, são de uma singeleza exasperadora. Um senhor de vasto e tisnado bigode é visto sentado numa cadeira perneta, entre baforadas de tabaco, esquálido, olhos fundos, tez macilenta, lobrigando o esvaziar de mais um dia inútil... Perto dali, de uma casa de paredes desaprumadas de tábuas e sarrafos reutilizados, sob um velho pé de cajueiro, sentada em um banco fixo de tábua serrada, uma mulher, presumi-se, de seus cinquenta anos, mulata, enfiada numa bermuda desbotada de cor indefinida, deixa, à mostra, um par de pernas longas, levemente inchadas nas extremidades, marcadas por doridas varizes e surradas por amorfas cicatrizes, concentra-se esmiuçando os fartos e emaranhados cabelos de uma menina magrela à cata de incómodos ectoparasitos... Do outro lado, uma jovem e magérrima mãe de uma criança rechonchuda e marcada por picadas de pium e de carapanã, vestida de um short curtíssimo a mostrar-lhe os contornos do buzanfã desnutrido, lava num jirau improvisado na lateral do casebre, algumas peças do parco vestuário da família... Perto da barragem de jusante, reúnem-se alguns passarinheiros com suas gaiolas camufladas; uns moradores da invasão, outros, de bairros circunvizinhos...
A vida segue tediosa, quase vazia...
ISAQUE P MILIANO FIQUE LONGE, assinala a tabuleta, em movimento pendular, mercê de uma brisa suave... Súbito, enervado pipilar das maracanãs corta o silêncio... Depois se ouve uma imprecação:
- Cachorro miserável!...
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